11 Mai 2024
Há 60 anos, no dia 13 de outubro de 1964, falecia Madeleine Delbrêl. Uma mulher desconhecida pela maioria das pessoas, até mesmo por muitos que frequentam as nossas comunidades. Mas, segundo o cardeal Martini, ela foi “uma das maiores místicas do século XX”.
A reportagem é de Daniele Rocchetti, publicada em La Barca e il Mare, 02-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Madeleine Delbrêl foi uma fiel que soube delinear uma forma de espiritualidade cotidiana útil para mostrar ainda hoje – em um contexto radicalmente diferente – um caminho possível para o testemunho cristão na cidade “plural”.
Madeleine nasceu no dia 24 de outubro de 1904 em Mussidan, na região centro-oeste da França, em uma família burguesa e pouco praticante. Era filha única. Seu pai, empregado nas ferrovias, mudava-se frequentemente de uma cidade para a outra. Por isso, Madeleine não pode seguir um curso de estudos regular.
Após a infância, abandonou a prática religiosa, a ponto de, em 1919, declarar-se completamente ateia. Aos 17 anos, escreveu um texto, intitulado “Deus está morto... viva a morte”, de uma extraordinária lucidez. Assumiu como objetivo “desmascarar o absurdo”, uma fé consoladora.
Nenhuma sabedoria humana é capaz de satisfazer seus trágicos porquês sobre a dor, sobre a doença, sobre a guerra, sobre a velhice, sobre a morte. Nela, “convivem o lúcido desespero e o amor pela vida” (Boismarmin).
Uma amiga recorda: “Fazíamos juntas os cursos de filosofia na Sorbonne, em Paris. Saindo um dia com a cabeça cheia de teses e antíteses, subíamos o Boulevard Saint-Michel trocando impressões. Veio à tona uma grande decisão, em sintonia com a primavera que adornava de flores o cruzamento Medici, com as árvores verdejantes do Luxemburgo, debaixo de um sol deslumbrante: a de permanecer sempre jovens, aconteça o que acontecer, não importa quantos anos se passassem... Ser jovens, eis a nossa vocação. Ela manteve sua palavra.”
Aos 18 anos, apaixonou-se: ele, Jean, era alto, desportivo, sério, cheio de interesses, intelectual e politicamente engajado, e evidentemente dotado de uma profunda vida espiritual. Tornam-se um casal fixo, mas de repente o rapaz desaparece: chocada, Madeleine descobre que Jean entrou no noviciado dos dominicanos, e foi uma separação absoluta. Não entendia. Seu anticlericalismo reacendeu-se violentamente, e, além disso, o sofrimento também se espalhava na família: o pai de Madeleine – um poeta fracassado – ficara cego.
Em 1924, aos 20 anos de idade, a mudança. É a lembrança da bela humanidade de Jean e de outros amigos conhecidos naquele período feliz:
“Não eram mais velhos, nem mais estúpidos, nem mais idealistas do que eu, viviam a mesma vida que eu, discutia tanto quanto eu, dançavam tanto quanto eu. Na verdade, tinham algumas superioridades a seu favor: trabalhavam mais do que eu, tinham uma formação científica e técnica que eu não tinha, convicções políticas que eu não tinha... Falavam de tudo, mas também de Deus, que parecia ser tão indispensável para eles quanto o ar. Estavam à vontade com todos, mas – com uma impertinência que chegava ao ponto de pedir desculpas – misturavam, em todas as discussões, nos projetos e nas recordações, palavras, ideias e apontamentos de Jesus Cristo. Eles até poderiam convidar Jesus a se sentar, de tão vivo que parecia...”
Foi uma conversão violenta. Feita em nome do Evangelho e graças ao encontro com um grande sacerdote, o abade Jacques Lorenzo. Seria ele quem a reaproximaria do mistério do Deus-Crucificado, um Deus que não fica lá em cima olhando os sofrimentos humanos do céu, mas que se faz “companheiro” da dor dos seres humanos, partilhando-a na carne.
Madeleine descreve assim a sua conversão: “Triste, angustiada, inquieta, decidi rezar... Não podia mais deixar Deus no absurdo”. E a oração a levou do Nada do mundo ao Tudo de Deus.
“Aos 20 anos, fiquei literalmente ‘deslumbrada por Deus’ – confessaria ela anos mais tarde –, aquilo que eu havia encontrado Nele não havia encontrado em mais nada.” E ainda: “Foi o abade Lorenzo quem, para mim, fez explodir o Evangelho... Ele se tornou não só o livro do Senhor vivo, mas também o livro do Senhor a ser vivido”.
Um Senhor que ela descobriu que está do lado da vida. Seu slogan não era mais: “Deus está morto, viva a morte!”, mas sim “Deus vive, viva a vida!”. Sua obsessão pela morte deu lugar a uma paixão pela vida. E, ao mesmo tempo, a descoberta de que Deus não nega tudo isto: dança, poesia, música, literatura, teatro, filosofia…
“Eu já considero a vida como os prelúdios das esplêndidas sonatas que nos esperam mais tarde. Toda sua poderosa riqueza já está contida no prelúdio”. Agora que ela vê a vida dessa forma, “cada minuto adquire uma importância singular”.
Naquela época (estamos em 1925, ano da canonização de Teresa de Lisieux), a busca da fé leva Madeleine a pensar no Carmelo. Também renunciou a isso para poder cuidar de seus pais doentes. Mas, se isso não era possível, então inevitavelmente o mundo deveria se tornar o seu Carmelo, o seu mosteiro.
Rezou muito, dedicou-se a viver o Evangelho. E foi ao se deixar moldar e transformar pelo Evangelho que Madeleine encontrou aquele que poderia ser seu caminho. Com uma convicção que a acompanharia durante toda a sua existência: “A fé não deve ser vivida para ser dada – porque a fé é um dom de Deus, não nosso –, mas para fazê-la explodir em nós, para manifestar o conteúdo de sua mensagem” (Paolo Giuntella).
Com o grupo de cerca de 20 escoteiras com as quais trabalhava intensamente, ela passou a formar um grupo chamado “Caridade”, em memória da obra de São Vicente de Paulo, que dera esse nome às comunidades de mulheres que cuidavam dos doentes e dos marginalizados. Ela tinha um projeto que aos poucos ia ficando claro para ela:
“Ser voluntariamente de Deus, por mais que uma criatura humana possa querer pertencer a quem ama. Ser voluntariamente propriedade de Deus, da mesma maneira total, exclusiva, definitiva, pública como uma religiosa que se consagra a Deus.”
O objetivo era “fazer com que os conselhos evangélicos penetrem na vida laical, isto é, dedicar-se às bem-aventuranças em um dom total de si, não para viver fora do mundo, mas no mundo”.
Como viver o espírito das Bem-aventuranças no coração de um mundo ignorante de Cristo, sem ser obrigada por certas disposições institucionais a se separar dele? A exigência missionária de Madeleine exigia mais flexibilidade e mais disponibilidade do que as formas e as instituições eclesiais pressagiavam à época. Pelo contrário, era preciso imaginar formas futuras de uma nova vida comunitária e religiosa.
Estamos em uma época – os anos 1930 – em que a justaposição desses termos ainda parecia estranha. Ainda não existem os modernos “institutos seculares” e nem sequer se imagina a possibilidade de uma vida comum entre cristãos leigos. Madeleine insiste nesse caminho e opta por um trabalho que possa mantê-la em contato estreito com os pobres, submetendo-se aos estudos necessários para se tornar assistente social.
Em 1933, embora permanecesse leiga, decidiu consagrar-se ao Senhor e, algum tempo depois, foi viver com um pequeno grupo de amigas em Ivry-sur-Seine, uma cidadezinha de operários na periferia sul de Paris, conhecida pela presença massiva de comunistas. Em Ivry, Madeleine defrontou-se com um marxismo triunfante.
Ivry era “a capital política do Partido Comunista Francês”, sede do secretário-geral do partido. Nos prédios públicos, não havia a bandeira tricolor francesa, mas sim a bandeira vermelha. As paredes estavam cobertas de manifestos convidando a assistir filmes soviéticos, conferências ideológicas, batismos civis, páscoas vermelhas e coisas do gênero. O cumprimento é com o punho levantado.
Depois de algumas desconfianças iniciais (no início, as três mulheres da equipe vestiam um uniforme parecido com o das escoteiras, mas entenderam que eram “pinguins” e escolheram roupas comuns para se confundir com o povo e, logo depois, saíram da casa que lhes havia sido oferecida pela paróquia, porque, em troca do alojamento gratuito, eram engolidas pelos compromissos paroquiais), a administração comunista lhe ofereceu um trabalho como assistente social: ela aceitou e, dia após dia, tinha a possibilidade de descobrir aquela miséria e aquela injustiça tão combatidas por seus “amigos-adversários”.
Descobriu que os cristãos estão resignados à injustiça e que muitos dos proprietários das 310 fábricas da cidade são católicos que pagam somas imensas para a construção das duas novas igrejas, mas ignoram deliberadamente a miséria dos 43 mil operários de suas fábricas.
À luz do Evangelho, meditado todos os dias, ela amadureceu uma clara distinção entre a ideologia marxista, a ser rejeitada claramente, e as pessoas concretas, que merecem atenção e amor, qualquer que seja sua militância política. Lutava ao lado dos comunistas em favor dos pobres e da justiça, mas sem confundir a emancipação do proletariado com o ideal evangélico.
Descobriu a dura realidade em que viviam muitas famílias de operários, mas também a generosidade de inúmeros militantes comunistas, com os quais colaborava. A questão das relações entre católicos e comunistas não era teorizada nem discutida por Madeleine, mas resolvida abruptamente com base em um princípio muito simples: “Deus nunca disse: amarás o teu próximo como a ti mesmo, exceto os comunistas”, por isso, deve-se apenas acolher a evidência: os comunistas são, de fato, “seu próximo” mais imediato. Por isso, ela não os evitava, como recomendavam os bem-pensantes, e estava pronta para reconhecer o que havia de bom – como a aspiração à justiça e a dedicação recíproca – naqueles rudes militantes da primeira hora.
Ela ficou impressionada com o fato de que, nesse contexto difícil, a Igreja estava quase totalmente ausente. As paróquias estavam curvadas sobre si mesmas, com uma fé que ela considerava atrofiada, mutilada.
Com essas dificuldades, a identidade do grupo tornou-se mais clara. Em 1938, Madeleine escreveu um texto programático que ficaria célebre. Intitulava-se: “Nous autres, gens de la rue” [Nós, pessoas da rua] e proclamava que há cristãos para os quais “a rua” – isto é, o pedaço de mundo para onde Deus, de vez em quando, os envia – “é o lugar da santidade”, assim como o mosteiro para as pessoas consagradas.
É a vocação específica das “pessoas quaisquer”, em “um lugar qualquer”, que realizam “um trabalho qualquer”, junto com outras “pessoas quaisquer” e que, no entanto, “mergulham em Deus” com o mesmo movimento com que “se mergulha no mundo”.
Mas onde encontrar o silêncio que as freiras de clausura conservam em seus mosteiros? Madeleine explica que, no mundo, certamente não é difícil encontrar “massas humanas em que o ódio, a ganância, o álcool marcam o pecado”, mas justamente aí é que se torna possível experimentar “um silêncio de deserto no qual o nosso coração se recolhe com facilidade extrema”.
E onde encontrar a solidão? Ela responde: “A nossa solidão não é estar sós… A nossa solidão é encontrar Deus em todo o lugar”.
Em suma, como nota Sicari com perspicácia, Jesus não diz simplesmente a Madeleine: “Segue-me!”, mas: “Segue-me pela rua!”, e pede-lhe que caminhe com Ele, ao lado de todos os pobres da terra, especialmente daqueles que não sabem mais aonde os caminhos da existência os levam.
Portanto, se o mosteiro é para ela simplesmente o mundo – sem distinção entre espaços sagrados e profanos –, nem mesmo a oração deve se distinguir mais da ação, não porque os momentos de oração sejam esquecidos, mas para que a ação também se torne oração. A quem lhe objeta, segundo uma mentalidade bastante difundida, que não é possível ser totalmente de Deus quando somos chamados a viver como leigos, no meio do mundo, Madeleine rebate:
“Não é concebível que um Deus onipotente, embora queira ser amado, dê a seus filhos uma vida na qual não possam amá-lo”.
Ela escreve:
“Cada pequena ação é um acontecimento imenso no qual o paraíso nos é dado e no qual podemos dar o paraíso. Falar ou calar, consertar algo ou fazer uma conferência, cuidar de um doente ou datilografar. Tudo isso nada mais é do que a casca de uma realidade esplêndida: o encontro da alma com Deus, um encontro renovado a cada minuto, cada minuto que se torna, na graça, cada vez mais belo para o próprio Deus. Estão batendo na porta? Rápido, vamos abri-la: é Deus que vem nos amar. Uma informação?... Ei-la: é Deus que vem nos amar. É hora de se sentar à mesa? Vamos: é Deus que vem nos amar. Deixemo-lo fazer isso.”
Não se pode entender Madeleine sem o contexto daquele renascimento inspirado no Evangelho que varreu o catolicismo francês nos anos 1940 e 1950, e preparou o caminho para o Concílio. Naqueles anos, o cardeal Suhard, arcebispo de Paris, intuiu com grande perspicácia que a França estava se tornando uma “terra de missão” e declarou: “Um muro divide a Igreja das massas. É preciso derrubá-lo a todo o custo para levar novamente a Cristo as multidões que o perderam”.
Para demolir o muro que separa a Igreja da classe operária, Madeleine Delbrêl decidiu compartilhar a vida nas banlieu de Ivry. “Para viver a caridade de Jesus no meio dos pobres, ‘prisioneira de Cristo’, de sua vida, de seu pensamento, de seu impulso, mas livre pela própria liberdade de Deus” (Giuntella).
Sua casa – o famoso “número onze” da rua Raspail – uma casa como todas as outras, como as casas das pessoas comuns, seria um lugar aberto a todos e onde qualquer pessoa seria acolhida (outras casas nasceriam depois em Longwy entre os mineiros, em Paris, em Tizi Ouzou, na Argélia, e na Costa do Marfim).
Ela não pretendeu nem converter nem lançar anátemas, mas no máximo, no rastro do querido Charles de Foucauld, “gritar o Evangelho com a vida”. Levava a vida comum dos homens e das mulheres do bairro, conquistando respeito e confiança. Com suas amigas, optou por ser plenamente leiga, simples cristã, ligada a Jesus Cristo pelo vínculo do batismo.
A pequena célula inspirada no Evangelho não pensava em emitir votos, mas queria pôr no centro da vida os preceitos do Evangelho. Essas mulheres, nem individual nem coletivamente, seriam proprietárias e optariam sempre pela condição de assalariadas com preferência por cargos modestos, comprometendo-se a não seguir carreira de forma alguma.
A vida comum se baseava na partilha e na caridade fraterna: a vida de oração, que se pretendia intensa, seria vivida na maioria das vezes em solidão. O único elemento institucional era um recurso comunitário ao Evangelho. Todas as semanas, uma noite seria dedicada a acolher juntas seus ensinamentos e a confrontar a própria vida com eles.
Tentada por um instante pela ideia de criar uma nova ordem religiosa, renunciou a isso. A pedido de Dom Veuillot, mais tarde cardeal secretário de Estado de Paulo VI, que lhe perguntou o que “ela mesma, por si mesma” pensa, ela escreveu, de uma só vez, um texto em que as frases se sucedem todas ao ritmo de uma apaixonada: “Eu gostaria…”.
“Eu gostaria unicamente de pertencer inteira e exclusivamente a Jesus, Nosso Senhor e nosso Deus; gostaria de tentar viver seu Evangelho, de estar completamente disponível à sua vontade, no mais íntimo da Igreja e pela salvação do ser humano... Gostaria que isso bastasse para explicar tudo.”
Sem saber, porém, Madeleine não estava apenas oferecendo à Igreja uma fiel a mais que levava a sério a vocação à santidade: estava descrevendo um “novo tipo de cristão”, que não suporta mais a fé encolhida, burguesa, reduzida a bons sentimentos, a uma “mentalidade cristã”, a pura herança familiar, a propriedade social, e que reduz o Evangelho a um livro de máximas moralistas, de bom senso comum.
Mulher de paixão e de luta, de oração e de contemplação, Madeleine era frequentemente convidada a falar de seu testemunho em vários grupos por toda a França. Sofria muito com as tensões que surgiam em relação à experiência dos padres operários: inquietava-se com as imprudências de alguns deles, mas também com a rejeição preconceituosa que certos ambientes eclesiásticos demonstravam em relação a esse novo tipo de missão.
Quando a experiência foi impedida por Roma, ela ficou entristecida, mas convidou todos seus amigos à obediência filial à Igreja e os encorajou a manter viva a esperança.
Madeleine faleceu no dia 13 de outubro de 1964, enquanto se celebrava o Concílio Vaticano II convocado por João XXIII, um papa que ela apreciava muito pela sua corajosa simplicidade. Em seu missal, as companheiras encontraram algumas palavras que datam de 10 anos antes e que foram escritas por ela para comemorar o 30º aniversário de sua “conversão”:
“Eu quero o que tu queres
sem me perguntar se posso
sem me perguntar se desejo
sem me perguntar se quero.”
Seu testamento foi encontrado entre seus documentos, na forma de um simples conselho, destinado a suas amigas:
“Deixo-lhes um parecer, e que não seja a minha memória a fazer-lhes segui-lo... pois o meu desejo é que vocês sejam verdadeiramente livres.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Madeleine Delbrêl: a espiritualidade da rua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU