Josés e Marias uberizados construindo o futuro do trabalho. Uma reflexão da Economia de Francisco e Clara para o 1º de maio. Artigo de Talita Guimarães e Frei Marx Rodrigues

Foto: CUT

03 Mai 2024

"Assim se convencionou mundialmente no dia 1º de maio celebrar o dia internacional do trabalhador. Há 138 anos, trabalhadores e trabalhadoras nos EUA exigiam melhores condições de trabalho num contexto de segunda revolução industrial, onde as tecnologias como a energia e a metalurgia modificaram significativamente as relações de trabalho e precarizavam substancialmente as condições de vida dos trabalhadores/as, ao mesmo tempo que essas contradições aconteciam, abriam-se possibilidades ímpares, para exigirem melhores condições e jornada de trabalho, dado o papel inovador das máquinas e equipamentos com advento da eletricidade", escrevem Talita Guimarães e o frei Marx Rodrigues.

Talita Guimarães é economista, contribui no secretariado nacional da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC) pela Ação Social Franciscana.

Frei Marx Rodrigues é filósofo, compõe a membresia da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC) pela Ação Social Franciscana.

Eis o artigo.

“Não é da benevolência do açougueiro, cervejeiro ou padeiro que garantimos nosso jantar, mas da preocupação deles com o próprio interesse. Não devemos nos dirigir à humanidade deles, mas ao amor próprio, e jamais falar das nossas necessidades, mas sim das vantagens que eles têm a receber” (Riqueza das Nações, 1870).

Em cada período da história a humanidade se organiza e cria formas de trabalho específicas, respondendo às necessidades e às identidades. Nas sociedades mais antigas haviam modelos distintos de plantio, coletoria e até auto-organização para o labor. A coletividade e a cooperação foram predominantes na organização histórica de muitos povos e culturas. No período medieval, por exemplo, o excedente dos servos possibilitou um grau relativo de liberdade para o fortalecimento do comércio, iniciou-se um processo histórico de prática cultural de trocas de produtos a partir das feiras, que se encontravam nos burgos à margem do modelo feudal. Esse processo, com o acontecimento das cruzadas, desencadeou formas de comércio lançando as bases para o mercantilismo e todas as relações do renascentismo. Foram séculos de relações sociais de reestruturação que revolucionaram o trabalho, até a forma deste último se tornar predominantemente uma mercadoria.

Cabe ressaltar que as formas capitalistas do trabalho humano se apresentam como uma mercadoria qualquer. Na atualidade, a fase neoliberal leva a ordem de precarizar as condições de trabalho ao ponto de alcançar pessoas para situações de extrema vulnerabilidade, como parte das exigências da reprodução do capital. Aliás, não por acaso o Dia Internacional do Trabalhador surge no bojo das contradições históricas do capitalismo para reivindicar melhores condições de trabalho.

Assim se convencionou mundialmente no dia 1º de maio celebrar o dia internacional do trabalhador. Há 138 anos, trabalhadores e trabalhadoras nos EUA exigiam melhores condições de trabalho num contexto de segunda revolução industrial, onde as tecnologias como a energia e a metalurgia modificaram significativamente as relações de trabalho e precarizavam substancialmente as condições de vida dos trabalhadores/as, ao mesmo tempo que essas contradições aconteciam, abriam-se possibilidades ímpares, para exigirem melhores condições e jornada de trabalho, dado o papel inovador das máquinas e equipamentos com advento da eletricidade.

Hoje, passados pouco mais de um século, somos atravessados por mudanças quantitativas e qualitativas no chamado mundo do trabalho, fazendo uma analogia com o tempo histórico, nos dias atuais a robótica, a inteligência artificial e muitas inovações ligadas a tecnologia compacta, tem modificado as relações de trabalho, sobretudo, no modo de acumulação e seus mecanismos de regulação, cada vez mais interligado e financeirizado pelo sistema rentista. No entanto, diferentemente das revoluções industriais anteriores, assistimos à intensificação da retirada de direitos trabalhistas e sociais conquistadas nos períodos anteriores rente às necessidades da fase neoliberal do capital.

Para o trabalhador no Brasil, a desregulamentação das leis trabalhistas, tem se apresentado como a possibilidade de empreender, sem ter garantias sociais, a lógica neoliberal propaga uma autonomia em relação a regulação do Estado, com o verniz da máxima liberal do altruísmo smithiano no qual os esforços individuais contribuirão para maximizar os ganhos.

Nessa conjuntura a precarização do trabalho tem como papel transferir recursos públicos para turbinar e garantir os ganhos das esferas financeiras que dominam as decisões políticas, como as privatizações dos setores estratégicos, de terras e titularização das dívidas públicas transferindo recursos públicos para a esfera privada. A instrumentalização política a narrativa é fundamental, pois ela garante a mensagem que os gastos sociais como saúde, educação e outras rubricas como a seguridade social, devem ser reduzidas e compreendidas pela a maioria da população como gastos, e a estabilidade para o mercado tem que ser a partir da austeridade social.

Nesse sentido, o desafio para o trabalhador está, mais uma vez, na sua capacidade de organização para ultrapassar o cálculo mercadológico da cultura neoliberal – do empreendedor de si mesmo, para a condição de auto organização cooperada do trabalho onde a vida esteja no centro das decisões econômicas, políticas e sociais. Como lembra o professor Ricardo Antunes do negociado sobre o legislado, é que encontramos a flexibilidade da jornada de trabalho, a deterioração das condições e garantia de direitos com a restrição ao acesso da justiça do trabalho. Logo, responder ao tempo histórico do São José operário do século XX, ao São José uberizado para a potencialidade contra-hegemônica do cooperado do século XXI, passa por compreender as possibilidades concretas dado o contexto atual.

Pistas essas já sinalizadas, a partir do comando cooperado da organização do trabalho, através da pedagogia estratégica que muitos movimentos já fazem, a luz da Economia Solidária e animados pelo chamado da Economia de Francisco e Clara, forjar formas inabituais de relações de trabalho voltados para o cuidado à vida.

O grito da terra e dos povos das periferias das florestas até os grandes centros urbanos apresentam as pistas para a reconciliar a integralidade humana, o trabalho contemporâneo tem tido condições únicas de auto organização, a reconciliação com a origem maior de que tudo está interligado, e a partir disso, a primazia do comum. Como ilustra o teólogo Humberto Maturana em Ontologia da Realidade de 1997: ressaltar a centralidade da cooperação na dinâmica antropológica do ser humano, pois na evolução das espécies não foram os mais fortes e violentos que sobreviveram, mas ao contrário, aqueles que mais cooperaram. A marca da evolução das espécies não é a competição, mas a cooperação. A saída da cooperação é a tecnologia social antídoto para “adiar o fim do mundo” (Krenak). E os trabalhadores/as precarizados e precarizadas possuem o mapa e a chave das possibilidades de organização.

 

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