03 Mai 2024
"Esse mito, acalentado pelos czares, foi ofuscado pela União Soviética comunista; agora, porém, na Rússia brilha na “Weltanschauung” do presidente Vladimir Putin e do Patriarca Ortodoxo de Moscou, Kirill", escreve Luigi Sandri, jornalista italiano, em artigo publicado por L'Adige, 29-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O antigo mito das três Romas – aquela no Tibre, Constantinopla e Moscou – ainda paira sobre o mundo. A gravíssima situação de guerra que hoje domina o mundo e que de alguma forma implica numa referência a elas, de fato, traz à tona contrastes antigos e novos.
Ainda na semana passada, aconteceu no Campidoglio um seminário sobre o tema "Rim ves' mir" (Roma é o mundo inteiro), organizado por instituições italianas e pela Academia das Ciências de Moscou. Deixando de lado as semelhanças e as divergências em relação à atualidade, a revisitação do passado também foi marcada por narrativas históricas nem sempre componíveis.
O segundo Concílio Ecumênico (Constantinopla I, em 381) estabeleceu: “O bispo daquela cidade terá o primado de honra depois daquele de Roma, porque tal cidade é a nova Roma”. Tese melhor esclarecida por Concílio Ecumênico da Calcedônia, em 451, que citou, como motivação do privilégio, o fato que “a nova Roma é honrada pela presença do imperador e do Senado”.
Mil anos mais tarde, uma reviravolta: depois que, em 1453, Constantinopla caiu nas mãos dos turcos muçulmanos e acabou o Império Bizantino Cristão Ortodoxo, foi se formando na Rússia, aos poucos, uma ideia assim expressa, no alvorecer do século XVI, pelo monge Filoteu de Pskov: “Duas Romas caíram, mas a terceira permanece, e não haverá uma quarta".
Esse mito, acalentado pelos czares, foi ofuscado pela União Soviética comunista; agora, porém, na Rússia brilha na “Weltanschauung” do presidente Vladimir Putin e do Patriarca Ortodoxo de Moscou, Kirill.
Os dois, cada um do seu lado, aplaudiram as conclusões do “Congresso Mundial do Povo Russo" (organização paragovernamental que representa não apenas os russos, mas também grupos russófonos da ex-URSS): essas conclusões, redigidas em novembro, mas aprovadas formalmente por aquele órgão em 27 de março, argumentam que a Rússia hoje tem o dever messiânico de salvar, pelo menos na Europa, o cristianismo, à beira de ser engolido pelo Ocidente “satânico”.
Portanto, consideram “santa” a guerra travada contra a Ucrânia. Nesse contexto, nos últimos dias o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, voltou a contestar na sua raiz o mito de Moscou como a "Terceira Roma" e reiterou a sua condenação pelo ataque russo contra a Ucrânia, iniciado em fevereiro de 2022; para ele só existem duas Roma: a antiga, aquela no Tibre e a “nova”, onde hoje, porém, há bem poucos cristãos. Francisco, o bispo da "antiga" Roma vê, obviamente, esse turbilhão, mas não fala: no entanto, como ontem em Veneza, reza, desanimado, "pela martirizada Ucrânia".
Como observadores externos de eventos históricos e eclesiais tão complicados, podemos sugerir uma previsão? Até que as três Romas não encontrarem, a partir do Evangelho, palavras e ações compartilhadas sobre a paz e contra a guerra, a sua missão real ou suposta será prejudicada no Tibre, no Bósforo ou em Moscou; cada uma seguirá seu próprio caminho. Para onde? A história o dirá.
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As divergências radicais das três Romas. Artigo de Luigi Sandri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU