02 Mai 2024
"Talvez a "Pieta de Gaza" domestique o drama numa pose que faz escola, ainda que de dor? Existem muitos precedentes de repórteres fascinados pela ambiguidade de uma cosmética com forte pós-produção de alta qualidade e grande apelo midiático. Talvez o "Abutre e a menina" seja ainda demasiado documental para aspirar a uma metamorfose simbólica completa? Pode ser, não faz qualquer diferença. A força diferente e controversa das duas imagens é tal que pode contornar qualquer crítica estética e qualquer estúpido capricho moralista", escreve Raul Gabriel, artista plástico e pesquisador italiano, em artigo publicado por Avvenire, 01-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu não a teria chamado de "Pietá de Gaza", um título chamativo que lembra categorias demasiado usadas no mercado onívoro e cínico das notícias. A imagem captada por Mohammed Salem, vencedor do World Press Photo 2024, diante da evidência inacessível, testemunha a obstinação de existir mesmo nas dobras escondidas do sudário às quais parece impossível restituir a redenção de alguma esperança.
"A Pietà de Gaza" (Foto: La Stampa)
Composição, construção, direção de plano são magistrais, o afloramento do mistério incompreensível emerge no oceano de práxis cotidianas como uma minúscula boia, cuja finalidade controversa é afogar-nos na nossa indiferença.
A "Pieta de Gaza" (vou chamá-la assim mesmo por simples razões de clareza) imediatamente me lembrou a imagem de um apocalipse arrasador que nunca mais me abandonou desde que a vi, "o abutre e a menina", foto premiada pelo Pulitzer de 1994, arrancada da poeira no Sudão em meio à fome, autor Kevin Carter, fotógrafo sul-africano cujo destino ficou para sempre ligado àquele furto perfeito e horrível.
Ambas as fotografias sugam a linfa do drama para transformá-la em algo diferente. Existem dois retratos do rosto ausente que nos observa com olhares sempre diferentes e desnorteadores, um rosto que escapa, um rosto de consternação, centelha de uma graça inseparável da condenação. A "Pietà de Gaza" é uma profecia cumprida e elevada ao lugar mitológico onde a dor aspira competir com a revelação, engaiolada numa harmonia ingrata que não se preocupa com os assuntos humanos e os resolve na contemplação de uma paz obscura. A sua tragédia se cristaliza num equilibrado casulo de cores e volumes que falam de morte e vida juntos e parece nos aguardar na brecha que teremos que atravessar, mais cedo ou mais tarde, onde estará toda aquela beleza, toda aquela compostura sobre-humana.
A "Pietá de Gaza" é uma porta, e fica ali, fechada no seu admirável equilíbrio, memória de um destino que não carece de futuro, o nosso. Na sua estrutura suspensa, ao contrário, o "abutre e a menina", com a qual a criança acaba se assemelhando na brincadeira zombeteira e doentia, mas ferozmente verdadeira das partes, não é uma porta, é a travessia na sua feitura, um emaranhado espinhoso em que a morte ocupa todo o palco, cuidadosamente destilada na captura de cada suspiro de dor, até torná-lo insuportável.
É uma travessia que, ao contrário da "Pietà de Gaza", coloca a questão de como e se acompanhá-la; não há como escapar, mais cedo ou mais tarde a escolha negada exigirá seu tributo. Os juízos morais e as belas frases perdem o sentido no deserto que drena os poucos líquidos residuais de um corpo desidratado e destinado ao abutre, que espera, alerta e disciplinado por sabedoria antiga, piedoso à sua maneira, pronto para cobrar uma dívida contraída quando e por quem não é dado saber. O abutre não tem culpa, faz o seu trabalho, ao contrário de quem, a favor da câmera, se alimenta da morte alheia para restituir o bolo de suas próprias misérias e frustrações, instintos de vingança, pequenas revanches, a lei de talião, a carne para o matadouro, aquela dos outros, como se fossem um parâmetro de juízo da história.
Gaza e a Menina, apesar de terem nascido em contextos diferentes da mesma tragédia humana, à qual falta apenas a semelhança nos detalhes, descortinam vertigens opostas. Li que alguns criticam à "Pietà" de Salem ser desprovida de sangue, amputações e feridas, descontextualizada, expropriada à tragédia, ou melhor, exatamente o que lhe permite ascender a símbolo do quanto a beleza não é garantia de sobrevivência nem de salvação, nem de respeito, nem de paz, não é garantia de nada. A beleza não salva nada nem ninguém, é e ponto, antítese de pequenas lições, pudores e boas legendas para os hipócritas e as ideologias sempre anti-humanas, sempre instrumento de poder. A beleza, seja o que for, é outra coisa, é poesia, é profecia, é o que permanece além e antes de um insondável que nos é negado conhecer.
No "Abutre e a menina" de Carter, o labirinto da claustrofobia mais a céu aberto que se conhece e do qual é impossível escapar uma vez lá dentro, a sujeira da existência é perfeitamente visível numa pureza absoluta, livre de qualquer insistência ética. Olhar para ela, pensar nela, me causa um incômodo profundo que não consigo gerir, não sei de que lado o encarar, me faz sentir como Carter por um momento e entendo que não queria ter sido ele, preso por sua própria armadilha, contaminado pelo processo irreversível da decomposição, vírus que aquele clique retém na íntima cultura de sua forma insolúvel.
O abutre e a menina, de Kevin Carter (Foto: Wikimedia Commons)
No momento do clique, talvez um pouco antes ou um pouco depois, Carter selou seu pacto como o Fausto de Goethe sem suspeitar que o abutre esperava justamente por ele e não pela menina. O "Abutre e a menina" está condenado a reiterar uma morte que pede em vão a "Piedade" de uma forma finalmente cumprida, concedida em dom a Salem por uma mãe e sua filha.
Eu me pergunto onde, entre dois símbolos tão desorientadores, a verdade é mais verdadeira.
Talvez a "Pieta de Gaza" domestique o drama numa pose que faz escola, ainda que de dor? Existem muitos precedentes de repórteres fascinados pela ambiguidade de uma cosmética com forte pós-produção de alta qualidade e grande apelo midiático. Talvez o "Abutre e a menina" seja ainda demasiado documental para aspirar a uma metamorfose simbólica completa? Pode ser, não faz qualquer diferença. A força diferente e controversa das duas imagens é tal que pode contornar qualquer crítica estética e qualquer estúpido capricho moralista.
Ambas as imagens, que escaparam das mãos dos seus criadores como toda grande obra, pedem silêncio a todos aqueles que fazem da devastação mercadoria para talk show, vingadores, puristas, ideólogos, âncoras de vaudeville, generais em busca de fama e intrusos de todos os tipos.
Aí você olha em volta e vê novamente o abutre, a terra já está aí, até o fundo, você assiste e não acompanha. Carter não aguentou, vítima de um mal-entendido ao qual não soube opor objeção. Somente a piedade, não sei se a "Piedade" até demasiado perfeita de Gaza virá em socorro. Não da criança da qual já nos alimentamos, mas de nós mesmos, e porque não, do abutre que, inocente, espera.
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As perguntas da Pietá de Gaza. Artigo de Raul Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU