22 Abril 2024
A guerra não tem rosto, não tem nome, não tem idade. A guerra são dois corpos presos em um abraço que não é mais possível. Uma mulher viva que aperta junto a si os restos mortais de uma menina morta. O branco de um lençol, o azul de um vestido, as lágrimas escondidas por um véu amareladiço que também cobre o cabelo.
O comentário é de Viola Ardone, publicado por La Stampa, 19-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A representação humana de uma dor muda, tão antiga quanto o mundo, como a injustiça, como a guerra. O grito de uma mão, a esquerda, quatro dedos beirando um invólucro disforme são o único fragmento de carne visível, uma carícia de piedade a nos sugerir que, apesar de tudo, somos humanos, que ainda podemos sê-lo.
"A Pietà de Gaza" (Foto: La Stampa)
Temos que chorar diante dessa foto, porque o sofrimento não tem pátria, não existe bandeira sob a qual não se possa reconhece-lo, assim como a compaixão.
Devemos chorar se estamos vivos, devemos chorar por todos os nossos mortos, aqueles que amamos e aqueles desconhecidos. Chorar pelos mortos de Gaza, por aqueles de Israel, por aqueles da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, chorar por aqueles naufragados no mar, por aqueles esmagados pelo rompimento de uma barragem, por aqueles mortos no trabalho.
Chorar diante dessa imagem que ganhou o World Press Photo é a nossa oportunidade de não correr o risco de extinção, de não ficarmos ressequidos pela contagem cotidiana das vítimas que endurece as feições porque são demasiadas para poder pranteá-las uma por uma, e porque estão longe, e porque são desconhecidas, e porque não entendemos ainda quem está errado e quem está certo.
Temos que chorar diante dessa foto sem pretender explicações, sem querer entender, porque os mortos nunca estão errados, porque uma menina de cinco anos envolta num lençol branco tem sempre razão, seja qual for a sua nacionalidade, seja quem for o bandido.
Chorar pelo afago obstinado da tia que a segura e não a deixa ir, chorar pela nossa boa e pela nossa má consciência, ficar acordados à noite pensando nessa foto, porque há noites em que a consciência deve permanecer vigilante e não se deixar entorpecer pelo descaso.
Temos que chorar porque nessa foto está Maria de olhos baixos com o filho marmóreo entre os braços, está a Madalena de Masaccio aos pés da cruz fechada num grito de dor tão vermelho quanto o seu vestido, tem aquele cerúleo companheiro de jogos cantado por Pascoli, que ao vento só via cair pipas, e ao lado dele está sua mãe penteando seus lindos cabelos encaracolados, "devagar, para não o machucar".
Todos deveríamos chorar sem vergonha, como só as crianças sabem fazer, um choro fragoroso e não silencioso, com os soluços, as lágrimas, o nariz escorrendo. Um uivo longo e perpétuo, cadenciado como uma cantilena que se espalha de terra em terra para dizer não à guerra.
Retornar, diante dessa foto, à ingenuidade de um “não e basta”, de um “não porque não”, que não admite razões, bater os pés no chão, chorar e dizer não.
Esses dois corpos que formam um xis são a cruz que deve nos lembrar dia após dia que a cruz todos a carregamos, e é a mesma, menor ou maior, é sempre cruz.
Talvez seja por isso que, entre as muitas imagens de morte, de devastação, de dor que passaram diante dos nossos olhos agora ofuscados pelos horrores, essa está destinada a permanecer: porque se aquela mulher sem rosto levantasse os olhos poderíamos nos reconhecer no espelho.
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Aqueles corpos abraçados e mudos, símbolo da dor universal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU