17 Abril 2024
“Quase isolados na luta pela pela vida.” A frase, em tom de desabafo e desalento, é de Damião Huni Kuin, liderança que vê o sofrimento de seu povo ser ignorado pelas autoridades quando os indígenas mais precisam delas. A partir da última semana de fevereiro, o Acre vivenciou uma das maiores inundações de sua história, com o transbordamento de rios e igarapés que afetou cerca de 19 municípios. Neles, vivem sete etnias de diferentes localidades que ainda sofrem com o impacto dos eventos climáticos extremos. Se antes era a água que invadia as suas moradias, hoje é a falta de assistência de saúde que prejudica essa população.
A reportagem é de Hellen Lirtêz, publicada por Amazônia Real, 15-04-2024.
O problema, explica Damião, é que as aldeias ficam distante dos cuidados médicos, que eles tanto precisariam depois que as águas começaram a baixar. Essa distância, agora, mantém os doentes afastados e desassistidos de políticas públicas da saúde. Para tratar de casos frequentes de febre e outras enfermidades, os indígenas têm recorrido à medicina índigena.
“Temos um posto de saúde, mas é distante. Acho que dá mais um dia de motores baixando para chegar. Na aldeia, temos atendimento de saúde, mas só vão de dois em dois meses e não é muito bom. Tem aldeia que eles passam um dia, tem aldeia que é só meio dia”, afirma Damião Huni Kuin.
Marechal Thaumaturgo e Jordão estão entre os municípios mais afetados e são eles que concentram grande parte da população indígena no Acre. Nessas regiões, o grau de destruição está para além do bem físico e material. Enquanto para alguns a enchente vem se tornando “uma história a ser esquecida”, para muitos povos ainda é difícil deixar para trás algo que ainda se faz tão presente.
A aldeia São José do Rio Breu, do povo Huni Kuin, está localizada em Marechal Thaumaturgo. Ela está muito distante da cidade mais próxima. Leva-se em torno de um dia e algumas horas para se deslocar e o único transporte é fluvial. Não se trata de uma viagem barata: é preciso desembolsar um galão de 100 litros para realizar a viagem e cada litro custa em torno de 9 reais.
Em casos mais graves, Damião conta que é preciso se deslocar por conta própria para postos de saúde, como no município vizinho de Cruzeiro do Sul. A viagem de lancha demora entre 5 e 7 horas, dependendo da estabilidade do rio. Para retornar para a aldeia é preciso um barco pequeno e encarar uma viagem que leva em torno de um dia. Em entrevista, Damião relatou que a aldeia “grita” por ajuda e espera que possam ser ajudados, pois se sentem esquecidos.
“Tem muitas doenças que afetam os parentes, chegando a um ponto em que parece que não tem quase saída, falta medicamento. Moramos em um lugar distante do município e não temos acesso às pessoas que trabalham na saúde”, explica a liderança. Às vezes, falta a eles até “alegria para viver”, confessa Damião.
As inundações no Acre deste ano tiveram a dimensão de uma catástrofe ambiental, relata a liderança Huni Kuin. A luta é para ter o que comer e, ao mesmo tempo, para descobrir outras formas de sobreviver. Damião se preocupa com o futuro e bem estar de sua aldeia, que sem o atendimento de saúde correto, fica comprometido.
“Eu sou um jovem, aí penso na vida, penso que não tenho nada de trabalho, penso como é que vou seguir minha vida um dia e conseguir um futuro para ajudar meus parentes? Se eu ajudasse, já faria muita diferença, porque vejo um parente sofrendo e eu sofro junto. Não sei nem o que fazer com eles para melhorar a vida de cada um diante disso”, conta.
Paira nas aldeias uma sensação de instabilidade e insegurança frente a tantos extremos como a seca e enchente, uma atrás da outra, e a falta de soluções definitivas para essas situações. Pela sua observação, Damião vê níveis de ansiedade entre os povos indígenas e populações de diferentes grupos, especialmente os etnicamente marginalizados, sempre os mais atingidos pelos efeitos das mudanças climáticas.
“Estamos reconstruindo a nossa vida pouco a pouco”, diz a liderança da juventude do Jordão Txai Shane, pertencente à aldeia Chico Curumim, do povo Huni Kuin. Em entrevista à Amazônia Real, ele relata uma situação muito parecida com a de Marechal Thaumaturgo. As equipes de saúde índigena vão até as aldeias, mas elas não são capazes de atenuar os sofrimentos diante da situação deixada pelas inundações no Acre. Ele conta que a situação tem se agravado pelo alto número de pessoas afetadas e pela falta de remédios. Um dos motivos, explica, é o uso da água do rio para os afazeres domésticos que pode estar contaminada.
“A questão da saúde é que a população está sofrendo muito depois da alagação, porque a enchente trouxe muitas doenças para população, como febre, gripe, coceira, diarreia, dengue, anemia entre outras”, explica Txai Shane.
Ao falar sobre o atual momento que a comunidade vive, a jovem liderança cita que a enchente destruiu as plantações dentro da comunidade. Sem ter o que comer, a alimentação dos indígenas mudou. Shane explica que o governo disponibiliza um sacolão por família, insuficiente para suprir as necessidades básicas, e com o problema de mudar a dieta alimentar das famílias, que são numerosas. Neste momento de reconstrução, ele relata que seu povo quer a oportunidade de plantar para se alimentar, com apoio do governo. O jovem enxerga a ação como uma forma de recomeço frente à destruição.
“O que nós queremos hoje é que o governo ajude dentro da área indígena, apoiando, dando uma muda de plantações para as famílias. Dar um sacolão para uma família não é suficiente para sustentar por muito tempo. Gostaria que o governo olhasse para a população indígena prestando apoio dando mudas para fazermos plantações”, diz.
De acordo com dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), foram recebidas 343 notificações de doenças e agravos no período da enchente. Dessas, 119 casos eram de diarreia e gastroenterite de origem infecciosa. Todas as faixas etárias foram atingidas diretamente ou indiretamente. Por sorte, não houve notificação de mortes no período da cheia dos rios e igarapés.
Uma das estratégias adotada pela Sesai para prestar assistência a essas populações foi a instalação de uma Sala de Operações de Resposta Federal, na capital Rio Branco. Várias instituições integraram essa resposta governamental, como o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, Ministério da Saúde; a Vigilância em Saúde Ambiental Associada aos Desastres de Origem Natural, a Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente e o Comitê de Resposta a Eventos Extremos na Saúde Indígena, da Sesai.
A Sesai informou que se comunica diariamente com prefeituras municipais, Defesa Civil Estadual, organizações indígenas e lideranças em território para o monitoramento, compartilhamento de informações e ações rápidas. Insumos essenciais à população, como cestas básicas adaptadas, kits de limpeza, redes de dormir, mosquiteiros, filtros de barro, hipoclorito de sódio 2,5% e galões de água, têm sido entregues com apoio da Força Aérea Brasileira.
O governo federal afirma mobilizar equipes multidisciplinares de saúde e saneamento ambiental indígena, incluindo ações como plano pós-inundação com monitoramento dos cenários de risco para insegurança alimentar e transtornos mentais. Em 4 de março, a União liberou mais de 20 milhões de reais para as ações de assistência aos atingidos pelas enchentes no Acre, na capital e no interior, com o prazo de execução de 180 dias. Para o Jordão foram destinados 1,8 milhão de reais e para Marechal Thaumaturgo, 1,7 milhão.
Ainda que o governo federal afirme estar mobilizado, o Ministério Público Federal (MPF) abriu um procedimento para levantar o que está sendo feito para mitigar os efeitos das alagações. Em 4 de março, o procurador da República Luidgi Merlo Paiva dos Santos reuniu-se presencialmente com Ítalo César Soares de Medeiros, coordenador da Casa Civil do governo estadual; Francisca Arara, Secretária da Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas; Deusdete Souza, coordenador do Dsei-ARJ; Eldo Shanenawa, coordenador da CR-JUR/Funai, acompanhado da indigenista Ruama Santos; e Francisco Piyãko, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá. A reunião focou nos problemas da cheia, especificamente na área do Juruá.
Em 12 de abril, o MPF recomendou a criação de um grupo de trabalho (GT) para lidar com os efeitos das inundações no Acre sobre as comunidades indígenas. O GT deve ser estabelecido em até 20 dias, coordenado pela Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas (Sepi) e organizado em eixos temáticos: infraestrutura, saneamento e segurança alimentar.
Em 60 dias após a criação do GT, deve ser apresentado um plano de trabalho com detalhamento de ações nas terras indígenas e os órgãos responsáveis. Essa resposta só surgiu após uma reunião que discutiu a logística de aplicação de um questionário elaborado pela Funai às comunidades afetadas. Para o MPF, houve falta de planejamento de políticas públicas para lidar com os impactos das mudanças climáticas, que aumentam a vulnerabilidade das comunidades indígenas, especialmente aquelas que habitam áreas de difícil acesso. Os destinatários têm 15 dias para informar se acataram a recomendação relatando sobre quais ações foram tomadas para sua implementação.
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Indígenas reclamam de abandono depois das inundações no Acre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU