22 Março 2024
"Auschwitz é o momento terminal de uma rampa que começa muito antes, com pequenos atos de fechamento e discriminação, quando se deixa de ver o outro como ser humano", escreve Benedetta Tobagi, jornalista italiana, em artigo publicado por Repubblica, 21-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em tempos de guerra, a memória é muitas vezes reduzida a uma arma. Até mesmo aquela do Holocausto. O que significa visitar os campos de extermínio dois anos depois da invasão da Ucrânia e seis meses depois de 7 de outubro, enquanto o epíteto "nazista" e a acusação de antissemitismo são brandidos como armas táticas para truncar qualquer debate, enquanto ressurgem os ataques mais odiosos aos judeus e as sensibilidades “alternadas”, aqueles que ignoram as vítimas do massacre do Hamas e aqueles que se mostram cegos à carnificina que se realiza há meses em Gaza? Podemos cultivar uma memória que alimente a cultura dos direitos humanos e a empatia pela dor do outro, em vez de reduzir-se a monumento retórico ou, pior ainda, a um crédito não reembolsável para brandir como justificativa para novos horrores?
Para descobrir isso, participei de uma das tantas viagens de memória organizadas há mais de uma década pela associação Deina que, partindo da fábrica de Oskar Schindler na Cracóvia, leva centenas de jovens dos 17 aos 25 anos (mas felizmente alguns adultos também são admitidos) em um percurso de conhecimento que termina no anus mundi do século XX, os campos de Auschwitz e Birkenau.
A experiência é forte, intensamente perturbadora. O poder nu dos lugares anula os partidarismos obtusos, o eco das polêmicas ideológicas arrefece rapidamente. No silêncio, germinam as dúvidas, as perguntas sem resposta. Caminhando no gueto da cidade polonesa, a poucos passos da fronteira ucraniana, quando o guia narra os terríveis meses de 1939 que antecederam a agressão nazista, os dilemas sobre as perspectivas de rearmamento europeu e o apoio militar a Kiev assumem proporções ainda mais angustiantes. Deina trabalha justamente nessa direção, pois a partir do encontro com o abismo surge um novo sentido de responsabilidade em relação ao presente e ao futuro: Auschwitz é o momento terminal de uma rampa que começa muito antes, com pequenos atos de fechamento e discriminação, quando se deixa de ver o outro como ser humano.
A preparação histórica se constrói em um percurso de encontros nos meses anteriores à viagem; chegado no local se trabalha sobre a vivência, principalmente no tema da escolha. “Tentamos chamar a atenção sobre tudo o que acontece antes da avalanche", explica-me Francesco Filippi, historiador e escritor, vice-presidente da Deina, “sem esquecer que, nessa história, nós seríamos os algozes”. Entre os textos básicos das oficinas com as quais se prepara a etapa mais importante da viagem está, de fato, o esplêndido ensaio Uomini comuni, no qual Christopher Browning reconstruiu as histórias de membros de um batalhão da polícia alemã a quem o comandante ofereceu a possibilidade de escapar da tarefa de assassinar todos os judeus da aldeia de Józefóv, para se questionar profundamente sobre o que o move quem atira e quem se recusa, além dos estereótipos e dos clichês. Para lembrar sempre que nós, humanos, somos ao mesmo tempo maravilhosos e terríveis, deinós, em grego antigo, que é o nome dessa associação flexionada no plural: a escolha é nossa.
“Auschwitz não se visita, se atravessa”, explica Michele, que trabalha como guia nos campos há cerda de doze anos, aquecendo as mãos com um copo de café no breve intervalo entre as visitas ao grande campo de trabalho de Auschwitz 1 e à ex máquina de extermínio de Birkenau. Para se tornar guia estudou mais de um ano, há um exame, a Fundação exige uma preparação rigorosa e contínuos cursos de atualização. “Mas a verdadeira dificuldade é quando você sai”, acrescenta, viver em coerência com o sentido profundo daquilo que estamos aqui para transmitir, num mundo cada vez mais desumano.
Na entrada de Birkenau, um dos tutores da Deina lê a página de É isto um homem de Primo Levi em que ele narra a sequência de pesadelo de sua chegada na noite de 26 de fevereiro de oitenta anos antes, naquela mesma plataforma onde um grupo de jovens se aglomera em silêncio.
Michele nos lembra que, coincidentemente, justamente 26 de fevereiro também é aniversário do massacre dos migrantes naufragados em Cutro, em 2023.
Na assembleia final com os jovens, Deina lembra a odisseia do navio St. Louis, com mais de 900 judeus que a Alemanha deixou zarpar em maio de 1939 de Hamburgo, à qual Cuba, EUA e Canadá recusaram o desembarque. Convida a ver outras histórias e novos rostos, juntamente com os dos judeus que, com os ciganos, os homossexuais e os presos políticos, foram assassinados naquele pedaço de campo rodeado de bétulas, hoje suspenso numa paz irreal.
Então, enquanto você atravessa, Auschwitz atravessa você, penetra em você de uma forma que, antes de você entrar, não teria imaginado, em vez de se reduzir a um fetiche memorial cuidadosamente esterilizado, como na surpreendente "fuga para frente" do final do filme vencedor do Oscar Zona de Interesse (não é um spoiler, mas gela o sangue). Sem tirar nada de ninguém, sem forçar ou violar a história, simplesmente refletindo sobre a raiz humana daquele mal feito de indiferença, egoísmo, ganância, desumanização e monstruosa eficiência burocrática, Deina convida os jovens a reconhecê-lo e enfrentá-lo, dentro e ao redor de si, em todas as suas formas. Assim o Holocausto se torna memória viva, humana e pulsante, sem perder um pingo de sua trágica singularidade. Precisamente nesse espírito, em última análise, dois grandes juristas, Hersch Lauterpacht e Raphael Lemkin, inspiraram-se nesse horror para moldar as duas categorias mais importantes do direito internacional pós-bélico, aquelas dos crimes contra a humanidade e do genocídio (como conta Philippe Sands no belíssimo livro La strada verso est) e, no passado 29 de janeiro, o Tribunal Internacional de Haia ordenou a Israel para “prevenir atos de genocídio” em Gaza, frisando que o tribunal “tem competência para pronunciar-se sobre o assunto", diante de tudo o que o país está fazendo e fará.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Por que fui para Auschwitz. Artigo de Benedetta Tobagi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU