São José, o homem dos sonhos: história de uma longa devoção. Artigo de Giovanni Maria Vian

São José com o Menino Jesus nos braços. (Imagem: Wikimedia Commons)

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

19 Março 2024

"A presença de José nos evangelhos concentra-se nos dois primeiros capítulos de Mateus e no segundo de Lucas, isto é, nos relatos do nascimento e da infância de Cristo, que são muito diferentes entre si: os dois evangelistas destacam respectivamente as figuras de José e de Maria", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Domani, 17-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Uma das figuras mais evanescentes dos evangelhos é a de José, que se acreditava ser o pai de Jesus, como Lucas anota na genealogia de Cristo. É, portanto, um pai aparente, cujo perfil é mal e mal mencionado. Mas justamente por isso é também um personagem fascinante, como o título do romance já sugere – A Sombra do Pai – que lhe foi dedicado há quase meio século pelo polonês Jan Dobraczyński.

Marginal, a figura de José é, no entanto, forte no imaginário coletivo, a ponto de sua data litúrgica de 19 de março atrair - em países de tradição católica como Itália e Espanha - o "dia dos pais", relativamente recente e de origem profana. A festa laica é de fato comemorada nos Estados Unidos desde 1910 para contrabalançar o “Dia das Mães”, iniciado dois anos antes. Comemorada no terceiro domingo de junho e depois espalhada em muitos países, o Dia dos Pais com uma lei assinada por Nixon tornou-se um feriado oficial em 1972.

No entanto, o aniversário litúrgico de São José é suprimido como feriado na Itália desde 1977 e acaba sendo absorvido pelo “Dia dos Pais” de vieses comerciais. As origens da festividade cristã são obviamente muito mais antigas. Nos calendários o pai de Jesus é lembrado em dias diferente, e a data de 19 de março já se encontra em alguns textos do século IX.

História de uma devoção

Mas a plena aceitação de José na cultura popular do Ocidente medieval foi difícil, como reconstruiu Paul Payan. A antiga crença da virgindade de Maria sugere à arte de representá-lo como alguém de idade avançada, sempre subalterno a Maria e a Jesus. Chegando a retratá-lo não apenas como carpinteiro, mas também envolvido em trabalhos domésticos, até mesmo lavando e pendurando roupas: um exemplo muito apreciado nos tempos mais recentes.

Pai especial mesmo nessas tarefas inéditas e guardião de uma família excepcional, José é um modelo de humildade difundido pelos franciscanos, que chamam os superiores dos seus conventos de custódios. Mas noutro aspecto, presumivelmente desaparecido antes da pregação de Jesus, é também o último dos judeus, não raramente pintados no final da Idade Média com os sinais distintivos a eles impostos na realidade.

A devoção difunde-se depois na época moderna, com a festa de preceito decretada em 1621. Depois, em 1870, São José é declarado por Pio IX padroeiro da Igreja Católica, e padroeiro de trabalhadores pelo Papa Pacelli em 1955 - em evidente função anticomunista - e em 1989 é descrito justamente como “o guardião do redentor” por João Paulo II.

Bergoglio o celebra no documento Patris Corde de 2020 como “o homem que passa despercebido, o homem da presença cotidiana, discreta e escondida”. O Papa declarou muitas vezes que reza a ele todos os dias e é seu devoto, tanto que o símbolo heráldico do santo – uma flor de nardo, segundo a tradição hispânica – figura em seu brasão, junto com o sol onde se destaca o monograma do nome de Jesus e da estrela que representa Maria.

Nos evangelhos

A presença de José nos evangelhos concentra-se nos dois primeiros capítulos de Mateus e no segundo de Lucas, isto é, nos relatos do nascimento e da infância de Cristo, que são muito diferentes entre si: os dois evangelistas destacam respectivamente as figuras de José e de Maria.

Simplificando questões debatidas desde a antiguidade, pode-se dizer que expressam pontos de vista complementares dos pais de Jesus. Para ambos os evangelistas, que também relatam genealogias quase inteiramente diferente, José é da linhagem real de Davi. Mas ele nunca fala, e enfrenta acontecimentos inesperados no silêncio.

No relato de Mateus, ele é o homem dos sonhos, como o homônimo patriarca, filho de Jacó, cuja longa história fecha o livro de Gênesis. Em um sonho, um anjo tranquiliza José, "homem justo" transtornado pela gravidez repentina de Maria antes do casamento e que, sem acusá-la, quer repudiá-la em segredo: “O filho que nela há vem do Espírito Santo”.

Num sonho, um anjo ordena-lhe, nascido Jesus em Belém, que "pegue o menino e sua mãe" e fujam para o Egito, após a adoração dos Magos, para escapar do massacre ordenado por Herodes. Em sonho um anjo lhe diz novamente para retornar à terra de Israel, pois já estão mortos "aqueles que procuravam matar a criança". Em sonho, um anjo finalmente o avisa para deixar a Judeia, onde “reinava Arquelau no lugar de seu pai Herodes", e a "sagrada família" se estabelece em Nazaré, na Galileia.

A perspectiva de Lucas é diferente, limita-se a nomear José, originário de Nazaré e que para o censo deve ir até Belém, nas montanhas da Judeia. Aqui ele e Maria acolhem a visita dos pastores que vieram adorar o salvador. Depois de circuncidar o menino, leva-o com Maria ao templo de Jerusalém, onde acontece o encontro com Simeão, “homem justo e piedoso que esperava a consolação de Israel", e com uma idosa mulher, a profetisa Ana.

Por fim, de Nazaré os pais sobem todos os anos para a Páscoa até Jerusalém, onde acreditam tenha se perdido Jesus, então com doze anos. Depois de três dias, o encontram no templo conversando com os mestres: “Seu pai e eu, angustiados, procurávamos você" o repreende Maria. “Vocês não sabiam que eu tinha que cuidar das coisas de meu Pai?” responde o filho. “Mas eles não compreenderam”.

Exceto por essas histórias muito populares, Jesus no Evangelho de João é chamado de "filho de José" duas vezes (1,45 e 6,42). Mas na segunda vez a expressão tem um intuito polêmico em relação ao mestre de Nazaré que acabava de se apresentar como "o pão que desceu do céu" enviado de Deus: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e a mãe?" observam seus adversários.

Nos apócrifos

Depois disso, José desaparece dos evangelhos. A integrar as histórias de Mateus e Lucas, iluminando a penumbra que envolve a sua figura, são os apócrifos, que inspiram muita arte. Com o objetivo de reforçar precisamente a crença muito antiga no nascimento milagroso do salvador e explicar a reação dos habitantes de Nazaré narrada pelo Evangelho de Mateus (13,55-56): “não é este o filho do carpinteiro? E sua mãe não se chama Maria? E seus irmãos, Tiago, José, Simão e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs?

Segundo vários apócrifos, José, já idoso, é apresentado como viúvo que, quando se casa com Maria, já tem filhos e filhas: os irmãos e irmãs de Jesus mencionados nos evangelhos. E na História de José, o Carpinteiro - provavelmente de origem egípcia e datada do século VII - grande espaço é reservado à história da sua morte, semelhante à dos "homens que nasceram nesta terra".

Ao lado do leito do moribundo estão Maria e Jesus, que na história fala na primeira pessoa e segura as mãos de José enquanto este lhe pede que não o abandone. Traduzido do copta e do árabe para o latim, o texto divulga no Ocidente a invocação a São José por uma “boa morte”.

Com uma comparação surpreendente, o Papa Montini fala em 1966 de São José como uma “lâmpada doméstica, que espalha uma luz modesta e tranquila, mas previdente e íntima, e dissipa as trevas da noite, convidando à vigília pensativa e laboriosa, conforta o tédio do silêncio e o medo da solidão, vence o peso do cansaço e do sono, e parece falar com voz calma e confiante sobre o amanhecer que virá”.

A entrevista de Ratzinger

Mas o último a falar sobre São José foi Joseph Ratzinger, que numa entrevista de 2021 ao Tagespost citou “uma das mais conhecidas e belas canções de Natal alemãs”, onde Jesus é apresentado “como uma pequena rosa (Röslein) que nos foi doada pela Virgem Maria na noite santa”. No início desse cântico de Natal, porém, fala-se de uma rosa (Ros) e o Papa emérito explica a mudança lexical com sutileza filológica (e teológica): “Minha suposição pessoal é que originalmente não existia a palavra Ros, mas Reis, isto é, broto”, e a alusão é à profecia messiânica de Isaías (11,1), pois “um broto aparecerá do tronco de Jessé”, o progenitor da dinastia de Davi.

Padroeiro do pai e do filho mais novo, o santo era muito festejado na casa dos Ratzinger: “Bebíamos café moído, de que o meu pai gostava muito, mas que normalmente não podíamos nos permitir.

Por fim, sempre havia uma prímula à mesa em sinal da primavera que São José traz consigo.

E para finalizar a nossa mãe preparava um bolo com cobertura que expressava plenamente a natureza extraordinária da festa". Que Bento XVI, um ano e meio antes da sua “boa morte”, ainda recordava.

Leia mais