08 Março 2024
Nos primeiros dois meses do governo de Javier Milei, a pobreza aumentou 13 pontos percentuais, passando de 44% para 57% da população, o número mais alto em 20 anos. Não menos vertiginoso foi o aumento da população em situação de indigência, que passou de 9,6% no terceiro trimestre de 2023 para 15% em janeiro de 2024. Estes números são retirados do índice de pobreza elaborado pelo Observatório Social da Universidade Católica Argentina, instituição claramente conservadora.
A reportagem é de Eduardo Giordano, publicada por El Salto, 07-03-2024. A tradução é do Cepat.
Este panorama social é consequência direta do enorme aumento dos preços da cesta básica após a gigantesca desvalorização realizada pelo governo, mantendo estagnada a renda da população. O salário mínimo atual, de 156 mil pesos, passará para 180 mil em fevereiro e 202 mil em março (pouco menos de 200 dólares), conforme antecipou o ministro da Economia, Luis Caputo. Muitos trabalhadores ocupados estão engrossando as fileiras dos pobres, já que o custo da cesta básica para uma família típica era de 596 mil pesos em janeiro, sem contar o aluguel.
As aposentadorias vão subir 27% em março, depois de uma inflação acumulada de 50% entre dezembro e janeiro, que se estima poderá ultrapassar os 100% entre dezembro e o final de março. A inflação interanual subiu para 254% no final de janeiro de 2024, destacando a Argentina como o país com a maior taxa de inflação do mundo.
Neste contexto já descontrolado, a população será afetada nos próximos meses por brutais aumentos nas tarifas dos serviços básicos, desde o transporte público à energia e combustíveis. Os preços dos alimentos e de outros produtos essenciais tiveram aumentos alucinantes em janeiro: 70% para o café, 60% para o sal, 65% para as fraldas, 37% para o leite... A Argentina é um paraíso para especuladores.
O Decreto Nacional de Emergência (DNU) do governo revogou a Lei das Gôndolas e a Lei do Abastecimento, que permitiam uma regulamentação mínima do acesso a bens básicos. Na ausência de controles de preços, os fornecedores e intermediários aumentam infinitamente os preços dos produtos para obter lucros substanciais com a espiral inflacionária. O caso extremo é o de um alimento básico produzido pelo oligopólio do agronegócio, o arroz, cujo preço aumentou 950% em um ano, entre janeiro de 2023 e janeiro de 2024. A indústria alimentícia está hiperconcentrada em pouquíssimos grupos que atuam em condições de duopólio ou de monopólio, expulsando outros atores do mercado através do seu domínio das redes de distribuição. Estas poderosas empresas estão aumentando os preços quase diariamente, gerando enormes lucros para os seus proprietários, uma vez que o DNU de Milei eliminou completamente os controles de preços.
O transporte é outro item que ficou mais caro, neste caso devido à retirada dos subsídios estatais às empresas e ao aumento da energia e dos combustíveis. O metrô de Buenos Aires, por exemplo, apresentou uma escala segundo a qual o preço aumentará mensalmente de 125 pesos em fevereiro para 757 pesos em junho, nada menos que 505%. O preço das passagens de trem e das viagens de ônibus também será indexado mês a mês de acordo com a inflação.
Um comentário à parte merece o aumento dos preços da moradia, que não estão incluídos na cesta familiar. O DNU revogou a lei do aluguel e, desde então, os novos contratos são celebrados livremente em pesos ou dólares – ou indexados ao valor do dólar – e pelo tempo acordado entre as partes, eliminando o prazo mínimo de três anos estabelecido pela lei que foi revogada.
Embora o sistema anteriormente vigente fosse rigidamente restritivo para os proprietários de imóveis para aluguel, porque os seus rendimentos eram sempre prejudicados pelas elevadíssimas taxas de inflação e pelas sucessivas desvalorizações, a atual falta de regulação do setor mergulha milhões de pessoas na instabilidade e no desespero que ficaram desprotegidas pela ausência do quadro jurídico anterior, sem que este fosse substituído por qualquer outro. O resultado é a lei da selva.
Após a revogação da Lei do Arrendamento através do DNU, em janeiro o preço médio dos aluguéis aumentou 21% mensalmente, o maior aumento em 12 anos. Segundo imobiliárias e associações de inquilinos, os contratos anteriores permanecem válidos até expirarem, mas os novos são negociados com aumentos que chegam a 400%, e mais de 40% desses contratos são assinados em dólares, por períodos que podem variar de alguns meses a anos e cláusulas de indexação a critério dos proprietários. Muitas famílias estão ficando nas ruas porque não conseguem enfrentar as novas regras do mercado.
A recessão induzida pela política econômica do governo já é bem visível na queda da atividade industrial, que diminuiu 0,9% em janeiro, pelo segundo mês consecutivo, e contraiu 6,3% em termos interanuais. As fábricas começaram a reduzir a produção, em alguns casos demitindo trabalhadores ou suspendendo a atividade de algumas fábricas.
Em fevereiro, foi anunciada a paralisação por um mês das quatro fábricas da siderúrgica Acindar – do grupo AcerlorMittal, com 3.100 trabalhadores –, devido a uma queda “abrupta” nas vendas entre 35% e 40%, segundo a empresa, devido ao efeito combinado da recessão e da inflação. As perspectivas não são mais favoráveis para a indústria automobilística, depois de um mês de janeiro em que as vendas caíram 33%. Entre as empresas mais afetadas pela queda no consumo estão as fábricas dos setores do vestuário, têxtil e calçados.
A Topper, uma das maiores fabricantes de calçados esportivos, com quase mil funcionários, demitiu no final de fevereiro 85 trabalhadores de sua fábrica em Tucumán devido à queda “brutal” nas vendas, estimada em 40%. Além disso, este setor teme os efeitos previsíveis da abertura das importações, o que poderá significar a sua extinção definitiva.
As consequências imediatas da crise são ainda maiores em diversas áreas do setor de serviços, como o turismo e a gastronomia. A desvalorização fez disparar os custos para os turistas estrangeiros – mais do que duplicando o alojamento – que já não gozam de vantagens comparativas para excursões e compras no país. No setor gastronômico, segundo depoimentos de donos de restaurantes divulgados pela mídia mais conservadora, os rendimentos caíram 70% entre dezembro de 2023 e fevereiro deste ano.
Não há dúvida de que o programa explícito de Milei de conduzir a Argentina rumo à estagflação – estagnação + inflação – está dando o resultado esperado: destruição de empregos, liquefação do salário real e das aposentadorias, agonia de todos os setores econômicos que não dependem da exportação de bens primários mas do consumo interno, desproteção dos setores mais vulneráveis.
Já presidente, Milei reafirma suas convicções teóricas mais disruptivas: “Continuo pensando que o Estado é uma organização criminosa violenta que se financia com uma fonte coercitiva de renda chamada impostos”, disse ele em entrevista em fevereiro, após ter aumentado os impostos sobre lucros, retenção de impostos sobre exportadores, impostos sobre importações, etc. É óbvio que a personagem Milei está dividida entre sua fé dogmática nas teorias que o seduzem e sua atual investidura como chefe de Estado.
Milei fez campanha empunhando uma motosserra, seu instrumento para “ajustar a casta”. Uma vez no governo, juntou-se ao pior da casta, o setor que endividou o país junto ao FMI e que o mergulhou na recessão enquanto enviava remessas de dólares para o exterior, e o ajuste recaiu claramente sobre o povo, sobre a classe trabalhadora, os trabalhadores informais e a classe média. A espiral inflacionária que desencadeou a sua abrupta desvalorização permitiu “liquefazer” o poder de compra dos assalariados e pensionistas.
O liquidificador é aplicado com mais rigor aos aposentados, o setor mais afetado pela inflação. As aposentadorias representam aproximadamente 36% das despesas correntes do Estado. Este setor é especialmente afetado pelos explosivos aumentos dos medicamentos e das taxas de medicamentos pré-pagos (desregulamentados). As aposentadorias mínimas são de 200 mil pesos (menos de 200 dólares), incluindo um prêmio complementar concedido pelo governo para não aumentar permanentemente os salários dos aposentados. Quando um jornalista ‘amigável’ perguntou ao presidente como um aposentado com esse valor poderia sobreviver, Milei disse sem vacilar: “O problema na Argentina é que todos os argentinos ficaram mais pobres”, e após assumir a falácia de que os aposentados são o segmento etário com maior poder aquisitivo, recorreu ao seu conhecido refrão: “O problema é que não tem dinheiro”.
Durante a campanha Javier Milei falava apenas em aplicar a motosserra para ajustar a casta, mas agora admite que o liquidificador é uma perna fundamental do seu plano. Em fevereiro, disse abertamente que “a motosserra e o liquidificador, que são os pilares do ajuste, não são negociáveis”. Poderia ter sido um lapso, mas não foi. Ambos os instrumentos são essenciais para impor o seu modelo econômico: a motosserra para cortar ao máximo os gastos públicos, o liquidificador para dissolver os rendimentos da população devido à defasagem dos salários e das pensões em relação aos preços.
Desde os primeiros dias de governo, Milei tentou refundar a configuração jurídica da Argentina com o Decreto de Necessidade de Emergência (DNU) e a Lei “Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, conhecida como Ley Ómnibus. Entre ambas as iniciativas, pretendeu-se legislar mais de mil artigos que abrangem quase todas as áreas significativas da vida dos cidadãos, rivalizando em vários aspectos com a própria Constituição federal.
Vários artigos do DNU foram contestados com sucesso pelos afetados, como a tentativa de incluir a reforma trabalhista por decreto, o que levou os sindicatos a ajuizar medidas cautelares suspendendo sua entrada em vigor por decisão judicial. No caso dos autos iniciados pela CGT, a Justiça se pronunciou sobre o mérito da questão e declarou a inconstitucionalidade das reformas.
No entanto, o DNU rege todos os aspectos não contestados pela justiça, como é o caso da lei de aluguéis e a lei de terras. Com a abertura das sessões ordinárias do Congresso, no início de março, o DNU deverá ser debatido em sessão bicameral e depois cada câmara decidirá se o aprova ou não. Só será desativado com a rejeição de ambas as câmaras. A pior possibilidade para o governo é que o DNU acabe por ser declarado inconstitucional devido à tentativa de Milei de se apoderar da soma do poder público.
Por outro lado, o presidente convocou em janeiro sessões extraordinárias do Congresso para debater a Ley Ómnibus, que com os seus 664 artigos é uma tentativa de refundar as bases da vida política, social e econômica da Argentina. O projeto de lei agrupava tal número e diversidade de temas que sua discussão aprofundada era impossível. O ponto mais polêmico foi, sem dúvida, a concessão de poderes ao presidente para dispensar o Congresso em decisões futuras, o que dividiu a direita tradicional que o apoiou nas eleições. A força política de Milei, La Libertad Avanza, é uma minoria em ambas as casas. O partido tem apenas 38 dos 257 deputados e 7 dos 70 senadores. Para alcançar maiorias, precisa da adesão dos legisladores de outras forças de direita dispostos a apoiar o seu projeto, principalmente de Macri, mas também da direita radical e do peronismo anti-kirchnerista que prevalece em províncias como Tucumán e Córdoba.
Após os primeiros debates sobre o megaprojeto de lei, o ministro da Economia, Luis Caputo, devido à discordância de numerosos governadores, anunciou que o capítulo fiscal estava sendo retirado (mais de uma centena de artigos), e depois outros aspectos foram abandonados. A pressão conjunta dos governadores do PRO, UCR e PJ conseguiu que o governo descartasse outras partes da Ley Ómnibus referentes à atividade econômica da pesca, mineração, viticultura e açúcar que afetavam várias províncias. O governador de Chubut, Ignacio Torres (PRO), garantiu que aceitar essas mudanças significaria “dar um tiro no próprio pé”.
Por fim, o próprio Milei decidiu retirar o projeto e fez a comunicação desde Israel, país para onde foi em sua primeira viagem oficial. Numa mensagem divulgada nas suas redes sociais, o presidente afirmou que iria continuar com o seu programa de governo “com ou sem o apoio da liderança política que destruiu o nosso país”. Enfurecido com o seu primeiro tropeço político, ele também publicou uma lista de deputados nas redes sociais, chamando-os de “leais e traidores” com base no voto na sessão extraordinária da Câmara. Após o fracasso no legislativo, Milei disse sentir-se satisfeito com o debate sobre esta lei por ter reordenado “o espectro ideológico”, esclarecendo quem apoia a mudança que promove e quem se comporta como “casta” por se opor às suas propostas.
Milei dedica várias horas por dia para expressar opiniões nas suas redes sociais, que admite gerir pessoalmente, e que servem tanto para anunciar medidas políticas como para insultar publicamente os seus detratores. Entretanto, o governo sequer apresentou uma Lei Orçamentária.
A falta de papas na língua do presidente com suas respostas impulsivas nas redes sociais volta-se contra ele. Sua forma de expor os conflitos é sempre por meio de insultos. Quando forçado a retirar a Ley Ómnibus, tratou o Congresso como um “ninho de ratos” e acusou os governadores de defenderem os seus interesses através de um “plano de extorsão”. Os governadores geralmente têm uma influência decisiva nos votos dos legisladores de suas respectivas províncias. Em uma reunião de gabinete, Milei teria dito: “Vou deixar vocês sem um tostão, vou derreter todos vocês”. O vazamento teria sido do ministro da Infraestrutura, Guillermo Ferraro, que foi imediatamente demitido.
Para além do ataque verbal, Milei retaliou todas as províncias, independentemente da sua cor política, retirando a sua participação nos subsídios ao transporte público, precisamente quando as tarifas estavam subindo mais devido à liberalização dos preços. Também suspendeu a vigência do Fundo de Incentivo aos Professores, que complementa os salários dos professores pagos pelas províncias com o rendimento nacional. Com tudo isto, o governo conseguiu aumentar a indignação dos governadores que faziam parte da chamada “oposição aberta ao diálogo”, ou seja, daqueles que tinham instruído os seus legisladores a votarem favoravelmente à Ley Ómnibus em geral, rejeitando apenas as medidas que afetavam os seus interesses regionais.
No seu discurso de abertura das sessões do Congresso, no dia 01 de março, Milei mostrou pela primeira vez um tom conciliatório com aquela parte da “casta” que poderia viabilizar legislativamente o seu projeto político, a chamada “oposição amigável”. Assim, convocou “governadores, ex-presidentes e dirigentes dos principais partidos políticos” para uma reunião na província de Córdoba para assinar “um novo contrato social que estabeleça os dez princípios da nova ordem econômica argentina”.
Mas a nova atitude supostamente aberta do presidente baseia-se na tática da cenoura e do chicote. A assinatura com outros líderes do chamado “Pacto de Maio” está condicionada à aprovação prévia da Ley Ómnibus, que Milei pretende assim reanimar, e estabelecer um novo acordo fiscal. O pacto entre o governo central e as províncias seria baseado em um decálogo pré-estabelecido por Milei: “As dez políticas de Estado que o país precisa para abandonar o caminho do fracasso”.
Estas políticas enunciadas pelo presidente não seriam o resultado de um debate entre as partes, nem de uma negociação; implicariam a adesão incondicional aos slogans do anarcocapitalismo preconizado por Milei. A primeira, “a inviolabilidade da propriedade privada”, tem apenas um propósito propagandístico, uma vez que este direito está consagrado constitucionalmente na Argentina e ninguém o põe em causa. Em segundo lugar aparece “o equilíbrio fiscal inegociável”, seguido da “redução das despesas públicas” para níveis históricos, em torno de 25% do PIB. Também uma “reforma tributária que reduza a pressão tributária” e rediscutindo a coparticipação federal com as províncias.
Seguem-se as reformas trabalhista e previdenciária, com a opção de privatizar o sistema de aposentadorias, a reforma política e a abertura do país ao comércio internacional. Com estas dez diretrizes básicas Milei pretende “estabelecer as condições para o crescimento argentino nos próximos cem anos”. Esses “princípios” que Milei apresenta como fundamentais para uma nova Argentina são essencialmente um plágio dos dez pontos apresentados pela primeira vez em 1989 pelo economista americano John Williamson, o ideólogo por trás do Consenso de Washington, que desde então rege como dogma do neoliberalismo em toda a América Latina.
Antes da data prevista, o presidente anunciou que convocará os governadores à Casa Rosada para a assinatura de um pré-acordo, que incluiria “a sanção tanto da Lei de Bases como de um pacote de alívio fiscal para as províncias”. E deixando claro que se trata de uma troca de favores com parte da vilipendiada “casta”, aquela que ainda não foi incorporada ao seu governo, Milei reiterou: “Assim que ambas as leis forem aprovadas como sinal de boa vontade, poderemos começar a trabalhar num documento comum baseado nestes dez princípios”. Toma lá, dá cá no “ninho de ratos”.
Os funcionários do governo e o próprio presidente não escondem o fato de que a situação econômica não atingiu o seu nível mais baixo. Especulam que março e abril serão os piores meses, já que a inflação se combina com a recessão (a almejada estagflação) e com uma maior perda do poder aquisitivo da população, estimada em 40% nas análises mais conservadoras. Neste contexto de total liquefação das rendas, surpreende e é pouco convincente a garantia de Milei de que não haverá uma explosão social contra as suas políticas de ajuste.
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A economia ultraliberal de Milei: ajuste, pobreza, estagflação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU