08 Março 2024
"Com dor e consternação, ao aproximar-se o 8 de março, vejo-me constatando que o feminismo morreu", escreve Lucetta Scaraffia, jornalista e historiadora italiana, em artigo publicado por La Stampa, 06-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Denunciando "o silêncio das feministas sobre as terríveis revelações sobre os estupros e os feminicídios perpetrados em Israel durante o ataque de 7 de outubro pelo Hamas" e sobre "as numerosas religiosas abusadas pelo clero e religiosos no Igreja Católica, ela desafia: "Lembremo-nos desse silêncio culpado quando será celebrado o 8 de março, quando gritarmos sobre a necessidade de lutar contra os feminicídios, os estupros e todo tipo de violência. Lembremo-nos da nossa rendição à hipocrisia dos tempos: as mulheres são vítimas não segundo as nossas ideias, são vítimas simplesmente pelas feridas que cada uma delas carrega na própria carne e na própria alma".
Com dor e consternação, neste 8 de março, vejo-me constatando que o feminismo morreu. Sim, acho que morreu apesar das manifestações após o assassinato de Giulia Cecchettin, depois da proliferação de bancos e sapatos vermelhos por toda a Itália, depois dos badalos tocarem para dizer que os estupros e os feminicídios devem fazer barulho e não permanecer enterrados no silêncio.
Eu acho que morreu, porque morreu a afirmação básica do feminismo, proclamada desde 1800 e depois reafirmada ao longo do tempo, ou seja, que as mulheres são todas irmãs na opressão, sem distinguir entre origem étnica, filiação política, classe social. O silêncio, porém, e não só no nosso país, cancelou aos olhos da opinião pública, duas graves ofensas à dignidade das mulheres. Nos últimos meses, de fato, os movimentos feministas fizeram grandes distinções entre feministas a serem defendidas, ou seja, boas feministas e outras a serem deixadas no silêncio. Distinções motivadas por tomadas de posições ideológicas, que rompem, portanto, com a promessa de solidariedade que estava na base do feminismo das origens.
Vimos isso quando o silêncio das feministas acolheu as terríveis revelações sobre os estupros e os feminicídios perpetrados em Israel durante o ataque de 7 de outubro pelo Hamas. A publicação do relatório sobre os crimes sexuais cometidos durante o ataque do Hamas a Israel, feito pela Association of Rape Crisis Centers in Israel, tão detalhado e cheio de informações sobre o que aconteceu, tira qualquer dúvida sobre o fato de que tenha se tratado de uma violência não só contra judias, mas contra as mulheres como mulheres, atingidas nos seus corpos, mortificadas e estupradas como sexo. Informações importantes nesse sentido já haviam chegado após a tragédia, de reportagens que não podiam ser postas em dúvida, fornecidas como prova de triunfo pelos próprios guerrilheiros. Uma violência contra as mulheres praticada com força e crueldade sem precedentes e, além disso, exibida de tal forma de modo a multiplicar a humilhação das vítimas.
"Mulheres em Gaza tendo que usar restos de tenda para absorver o sangramento pós-parto. Mas para as feministas de mísseis de cruzeiro, parece não haver sororidade. Isso não é feminismo. É uma abominação".
— FEPAL - Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) March 8, 2024
Clare Daly, deputada irlandesa. #8deMarçopic.twitter.com/uMg9CRD0lb
Em vez disso, diante de tal massacre, nem sequer uma manifestação, uma passeata, uma assembleia, nada. Nada para fazer sentir ao pequeno número de mulheres sobreviventes e aos seus familiares aquela solidariedade tão necessária para retomar o controle da própria vida, como todas as feministas bem sabem. Mas não estávamos bem conscientes, por ter repetido isso muitas vezes, que nesses casos o silêncio equivale à cumplicidade?
A razão desse silêncio deve ser procurada na cultura woke, que agora já contagiou os novos feminismos, que tendem a se irmanar com os movimentos LGBQ sem perceber que seus próprios pedidos são contra as mulheres. A cultura woke tem um único código moral: o de defender as vítimas sim, mas as vítimas designadas conforme a ocasião, dependendo das situações, das partes e das ideologias em jogo. Hoje, num momento em que o inimigo indicado é sempre e apenas o colonialismo branco, de matriz judaico-cristã, as pessoas de cultura islâmica são sempre consideradas as vítimas, independentemente das circunstâncias e da verdade factual. E assim a verdade dos fatos desaparece, continuamente questionada como uma obra de falsificação, de modo que qualquer busca por justiça desaparece diante de uma confusão da qual só se pode sair com uma escolha ideológica.
O silêncio das feministas também afetou as numerosas religiosas abusadas pelo clero e religiosos no Igreja Católica, algumas das quais tiveram a coragem de denunciar os abusos. Não são muitas, porque é particularmente difícil, mas há apenas algumas semanas houve uma coletiva de imprensa de duas ex-religiosas que denunciaram os abusos sexuais, psicológicos e espirituais perpetrados pelo poderoso jesuíta Rupnik. São apenas uma pequena vanguarda das vinte que o denunciaram, no silêncio e na ambiguidade da Igreja que, como acontece nesses casos, tenta transformar esse tipo de abuso em transgressões consentidas ao voto de castidade. Algumas menções nos jornais e depois silêncio.
De parte das feministas, nenhum interesse, nenhuma solidariedade para com essas mulheres que pagaram e ainda pagam um preço muito alto pela sua rebelião. Talvez seja porque, com o seu voto de castidade, perderam o direito de serem defendidas por movimentos que assumiram cada pedido da revolução sexual? Mas esses casos não seriam também vítimas que precisam ser defendidas e ajudadas?
Lembremo-nos desse silêncio culpado quando será celebrado o 8 de março, quando gritarmos sobre a necessidade de lutar contra os feminicídios, os estupros e todo tipo de violência. Lembremo-nos da nossa rendição à hipocrisia dos tempos: as mulheres são vítimas não segundo as nossas ideias, são vítimas simplesmente pelas feridas que cada uma delas carrega na própria carne e na própria alma.
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Falo isso com dor: o feminismo está morto. Artigo Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU