Martírio e profecia na Amazônia: testemunhos para os nossos tempos. Artigo de Gabriel Vilardi

Foto: Bruno Almeida | FOSPA | Reprodução Comin

05 Março 2024

No presente ano vivemos duas efemérides bastante significativas, em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completa 40 anos de luta e se faz memória dos 60 anos do golpe civil-militar. O Brasil é um país extremamente desigual, em que a questão da terra nunca foi enfrentada, tanto da perspectiva dos povos indígenas quanto dos pequenos agricultores. Foi também no terrível e ainda não de todo superado autoritarismo ditatorial em que a concentração fundiária se aprofundou e os povos originários sofreram sistemáticas violações de direitos humanos. Portanto, conhecer mais sobre o Ir. Vicente Cañas e a Ir. Dorothy Stang significa também um caminho de teimosa resistência.

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e foi membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima (2022-2023), tendo convivido com os povos Wapichana e Macuxi, na região Serra da Lua. Colaborador no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

Na homilia da celebração que canonizou Dom Oscar Romero, mártir de El Salvador, o Papa Francisco asseverou que o seguimento de “Jesus é radical”, pois Ele “dá tudo e pede tudo”. Em seu testemunho iluminador o bispo latino-americano, continuou o pontífice, “deixou as seguranças do mundo, incluindo a própria incolumidade, para consumir a vida – como pede o Evangelho – junto dos pobres e do seu povo, com o coração fascinado por Jesus e pelos irmãos” [1]. Como Santo Oscar Romero, assassinado em 24 de março de 1980, existem muitos outros mártires dos nossos tempos, homens e mulheres que ousam assumir seu chamado à profecia até as últimas consequências.

Essa inspiradora fidelidade marcar forte e profundamente a Igreja da Amazônia, lugar teológico em que Deus se faz carne em meio a uma realidade complexa e desafiadora, com uma imensa sociobiodiversidade de povos indígenas, comunidades tradicionais e pessoas migrantes. Nesse sentido, como reconhece o Documento Final do Sínodo para Amazônia, trata-se de uma história encharcada de sangue e resistência:

“Uma das páginas mais gloriosas da Amazônia foi escrita pelos mártires. A participação dos seguidores de Jesus em sua paixão, morte e ressurreição gloriosa acompanhou a vida da Igreja até hoje, especialmente nos momentos e lugares em que ela, por causa do Evangelho de Jesus, vive em meio a uma contradição acentuada, como acontece hoje com aqueles que lutam corajosamente por uma ecologia integral na Amazônia. Este Sínodo reconhece com admiração aqueles que lutam, com grande risco de vida, para defender a existência deste território”. [2]

Como nos primeiros séculos, viver a radicalidade do compromisso da Boa Notícia de Jesus, que prometeu a libertação aos cativos e a vida em abundância, é perigoso. Na região amazônica, que fez a opção preferencial pelos pobres nos rostos dos indígenas (DFSA, nº 55 a 58) e migrantes (DFSA, nº 62 e 63), implica em assumir lado e tomar posição. Posições que desagradam forças poderosas e, invariavelmente, acarretam perseguições e reações violentas. Em muitos casos, o preço a pagar é alto, pondo-se em risco a vida de bispos, padres, religiosas, leigos e leigas.  

Cobiçada pela sua considerável riqueza natural, a Pan-Amazônia sofre dos mesmos tipos de selvagens ataques e mortais ameaças, nos nove países que integram o bioma. Desmatamento, invasão de terras indígenas, garimpo ilegal, pesca predatória, contaminação do solo e dos rios pelo despejo de agrotóxicos, tráfico de drogas e de pessoas, megaempreendimentos hidroelétricos e outras obras de infraestrutura que afetam o território.     

A Igreja não tem ficado inerte diante desses descalabros e, nas últimas décadas, os martírios não tardaram. Solidária com os oprimidos, sua sorte tem sido partilhar, inclusive, os seus sofrimentos e as suas cruzes. Como diz o Documento de Santarém de 2022 (nº 35), “no altar da terra manchada de sangue se oferece o pão do martírio, pois numa região em que a Eucaristia é tão escassa, a Igreja se faz eucarística no corpo doado, fazendo da vida pão partido e sangue derramado por amor aos irmãos e ao Reino”.

Em meio a essas situações conflitivas muitos cristãos tombaram por sua fidelidade ao Reino, integrando uma longa lista, que passa pela religiosa do Conselho Indigenista Missionário Ir. Cleusa Rody, pelo comboniano defensor dos indígenas e pequenos camponeses Pe. Ezequiel Ramin, pelo coordenador local da Comissão Pastoral da Terra Pe. Josimo Tavares, pelo líder seringueiro e protetor da floresta Chico Mendes, pela liderança indígena guarani Marçal de Souza Tupã-i, além de muitos outros e outras que honraram seu batismo. Dentre esses, vale destacar dois exemplos inspiradores desses mártires dos dias de hoje: Ir. Vicente Cañas e Ir. Dorothy Stang.

O missionário jesuíta, nascido na Espanha, foi destinado para trabalhar no Brasil e chegou na Missão Anchieta, em Mato Grosso, em 1969. Após um breve período de adaptação, começou o seu apostolado com os povos indígenas, um universo cultural totalmente outro. Para tanto foi preciso iniciar um intenso e radical processo de despojamento e desconstrução de muitas certezas que não faziam sentido naqueles novos mundos a que era apresentado.

Tornou-se membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e responsável por desenvolver uma nova e fundamental abordagem em relação aos povos indígenas. Juntamente com outros companheiros indigenistas, o irmão jesuíta fez parte da equipe que realizou os primeiros contatos com os povos Myky e Enawenenawe, nos anos de 1971 e 1974, respectivamente.

Os Enawenenawe encontravam-se seriamente acossados pelos insaciáveis latifundiários e sua sobrevivência estava ameaçada, o que levou o jesuíta espanhol a mudar-se para essa aldeia em 1977. Sua presença amiga passou a ser bastante apreciada e Vicente era considerado um importante xamã, em razão de suas habilidades na saúde e sua valiosa intermediação com o mundo dos não indígenas. Sua encarnação naquela realidade foi total!

Como atestou o bispo-profeta Pedro Casaldáliga “será difícil encontrar entre os antropólogos e missionários de todos os tempos alguém que tenha pretendido viver com mais radicalidade a inculturação em um povo indígena e a evangelização inculturada, como a entendemos hoje”, “Vicente Cañas é único” [3], arremata o pastor de São Félix do Araguaia.

Todavia, os interesses nas terras ocupadas ancestralmente por esse povo eram avassaladoramente cruéis e violentos. Os fazendeiros e os madeireiros avançavam impiedosamente contra os Enawenenawe, mas no meio do caminho havia um obstáculo, o Ir. Cañas. Apesar das constantes ameaças, o indigenista não retrocedeu um milímetro no apoio ao processo de demarcação do território indígena. Em 6 de abril de 1987 foi covardemente assassinado, no seu barraco de madeira e seu corpo só encontrado quarenta dias depois. O jesuíta amava aquele povo e sua opção consciente foi levada às últimas consequências a exemplo do Mestre de Nazaré.

De fato, como disse a seu respeito o Pe. Luis Espinal, SJ, “gastou sua vida pela causa indígena, quebrando os esquemas culturais e religiosos, e se encontrou a si mesmo, reconhecendo-se semelhante a seus irmãos indígenas”. Afinal, continua o jesuíta-poeta, “integrou seu ser estrangeiro, seu ser religioso, seu ser jesuíta e seu ser Kiwxi” [4] (nome indígena dado pelo povo Myky).

No mesmo sentido, a Ir. Dorothy Mae Stang, estadunidense de nascimento, naturalizou-se brasileira e fez-se uma entre os camponeses do interior do Pará, onde viveu por quase quarenta anos. Religiosa das Irmãs de Nossa Senhora de Namur, trabalhou como agente da Comissão Pastoral da Terra, desde a sua fundação pela CNBB. A Amazônia, lugar em que exerceu sua missão junto aos empobrecidos posseiros, é uma região de muitos conflitos agrários, em que os grandes grileiros expulsam os pequenos trabalhadores rurais. Geralmente, à base da força e das intimidações violentas.

A Ir. Dorothy era uma grande defensora da reforma agrária e da justiça social para milhões de famílias sem-terra, que viviam marginalizadas nas periferias urbanas ou eram exploradas nas monoculturas dos grandes latifúndios, com condições indignas de vida. Nessa região o trabalho análogo à escravidão é mais comum do que se imagina, com um índice de mortes por execuções escandaloso, servindo de um forte aviso para aqueles que ousam se insurgir contra tais desmandos.

Educadora popular e animadora das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Ir. Dorothy acreditava na proteção do bioma tropical e na produção agroecológica dos pequenos agricultores. Junto com outras lideranças, articulou o modelo de assentamento rural chamado “Projeto de Desenvolvimento Sustentável”, em que 20% da área era destinada à agricultura familiar e os 80% restantes eram áreas comuns de extrativismo ambiental, em plena harmonia com a natureza. Tais projetos alternativos ao agronegócio predatório, aliados à conscientização e formação dos camponeses, geraram a reação virulenta daquela elite local que se achava senhor da terra.

Avisada das ameaças, a irmã manteve-se serena e convicta da sua missão. “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta”, disse pouco antes de ser morta. Sua vida havia sido uma luta incansável junto a essa população oprimida e decidiu que não os abandonaria. Porque “eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar” [5], estava convencida a missionária do Xingu.

Em 12 de fevereiro de 2005, aos 73 anos de idade, a Ir. Dorothy Stang recebeu sete tiros, porque lutar por justiça junto àqueles trabalhadores do campo e desafiar o status quo era absolutamente inaceitável para seus algozes. Como mártir da floresta, sua morte aponta para aquilo que foi sua vida, compromisso e amor aos deserdados da terra. Na fragilidade de uma mulher idosa, munida de sua bíblia quando do seu assassinato, a missionária deveria soar perigosamente ameaçadora para os truculentos fazendeiros que lhe perseguiam. Afinal, sua força só podia vir do Evangelho da Vida.

Tanto o Ir. Vicente Cañas quanto a Ir. Dorothy Stang foram cristãos profundamente comprometidos com o caminho de Jesus e o seu Reino de Justiça e Igualdade. Em tempos de extremismos e perseguições político-ideológicas, seriam acusados de comunismo e heresia. Como não lembrar do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, que certa vez desabafou: “quando dou comida aos pobres, me chamam de santo”, mas “quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista”.

No presente ano vivemos duas efemérides bastante significativas, em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completa 40 anos de luta e se faz memória dos 60 anos do golpe civil-militar. O Brasil é um país extremamente desigual, em que a questão da terra nunca foi enfrentada, tanto da perspectiva dos povos indígenas quanto dos pequenos agricultores. Foi também no terrível e ainda não de todo superado autoritarismo ditatorial em que a concentração fundiária se aprofundou e os povos originários sofreram sistemáticas violações de direitos humanos. Portanto, conhecer mais sobre o Ir. Vicente Cañas e a Ir. Dorothy Stang significa também um caminho de teimosa resistência.

Felizmente, o sangue profético dos mártires dos nossos tempos tem sido muito fecundo. Seus exemplos não foram esquecidos, mas ardem no coração do povo simples por quem deram a vida. Suas lutas continuam vivas porque assumidas por muitos outros que se deixaram inspirar pelo Deus dos pobres.

No apostolado de milhares de agentes de pastoral e missionários do CIMI e da CPT, assim como nos movimentos camponeses e indígenas, a defesa pela dignidade dos oprimidos da Amazônia se fortaleceu. Nesse sentido constatam os bispos da região:

“A fecundidade e o engajamento profético da Igreja na Amazônia fazem desta uma Igreja obediente até a morte, e morte de cruz. A referência aos mártires é, ao mesmo tempo, um louvor orante e uma denúncia aos níveis de violência a que chegam os enfrentamentos nos territórios amazônicos. Quanto mais irmãos e irmãs tombam por causa do Reino, mais a Igreja tem a consciência de estar sendo fiel à missão recebida e vivenciando com radicalidade seu processo de encarnação na realidade e evangelização libertadora”. [6]

“Bem-aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5, 6), prometeu Jesus aos seus discípulos. Que a memória dos mártires que nos precederam nas últimas décadas possa nos inspirar em um discipulado cada vez mais autêntico e desejoso de amar e servir os irmãos e as irmãs injustiçados pelas forças do mal. O Senhor nos conceda a graça de encontrar Deus nesses testemunhos instigantes, deixando-nos tocar por esse convite de sentir com os empobrecidos e explorados desse mundo. E juntos com os/as mártires da caminhada digamos com o Papa Francisco: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos! Então, a aurora de um novo tempo já despontará no horizonte e saberemos que estamos no caminho de uma nova humanidade.

Notas

[1] PAPA FRANCISCO, Homilia da Canonização de D. Oscar Romero, em 14 out. 2018. Disponível aqui.

[2] Documento Final do Sínodo para Amazônia, nº 16, 2019. Disponível aqui.

[3] CASALDÁLIGA, Pedro. Prólogo in Terol et Pardo, 2006, p. 7 e 159.

[4] PACINI, Aloir. Vicente Cañas. Kiwxi: mártir da fé e da justiça. Coleção Jesuítas, vol. 10. Ed. Loyola: São Paulo, 2021. p. 66.

[5] IRMÃ DOROTHY. Testemunhos do Sínodo Pan-amazônico. Disponível aqui.

[6] Documento Final do Sínodo para Amazônia, nº 34, 2019. 

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