20 Janeiro 2024
Leila Ghanem é uma antropóloga libanesa de reconhecido prestígio. Analista brilhante do Oriente Médio, sua vida foi marcada por seis guerras devastadoras em seu país que aguçaram seu olhar sobre uma região onde a crueldade e a selvageria atingiram níveis assustadores. "Algo mudou desde 7 de outubro e será necessário avaliar profundamente, não apenas entre aqueles que se opõem a Israel, mas também entre todos os cidadãos do mundo contrários a um capitalismo predatório cada vez mais agressivo", observa com certa perturbação de Paris, onde reside, nesta entrevista realizada por videoconferência.
A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por ctxt, 18-01-2024.
Declaradamente marxista, Ghanem foi precursora dos tribunais populares para julgar os crimes de guerra israelenses em Sabra e Shatila; e outro contra a multinacional Monsanto pelos danos ecológicos causados no Iraque após a ocupação dos Estados Unidos. Ela acredita que a batalha desencadeada agora no Mar Vermelho apresenta ao Ocidente um novo dilema sobre qual é a forma adequada de proteger uma rota marítima vital para sua economia. "A ofensiva huti perturbou os planos dos Estados Unidos na região e questionou a eficácia de sua política de dissuasão militar. São os regimes retrógrados e despóticos, como o saudita ou o bareinita, que estão incentivando as coisas para que os Estados Unidos fiquem empacados no Mar Vermelho", acrescenta. Autora de vários ensaios em francês e árabe traduzidos para vários idiomas, incluindo o espanhol, Leila Ghanem volta seus olhos para Gaza devastada. "Israel não alcançou nenhum de seus objetivos iniciais enquanto os palestinos continuam lutando após 100 dias de apocalipse", diz a intelectual libanesa.
Estados Unidos e Reino Unido bombardearam posições hutis no Iêmen para "garantir as comunicações navais entre a Europa e a Ásia" através do Canal de Suez. O Mar Vermelho é o terceiro foco de tensão na guerra de Gaza?
A batalha no Mar Vermelho é uma contenda estratégica de grande importância. Em primeiro lugar, por seu impacto na navegação marítima e no transporte internacional. Cerca de cinquenta navios passam pelo estreito de Bab El-Mandeb diariamente, transportando cinco milhões de barris de petróleo e 700 bilhões em mercadorias, a maioria com destino aos mercados europeus. Mais de 20.000 navios por ano cruzam um canal que encurta em 58% a distância entre Bombaim e Gênova. Mas esta contenda esconde outra mais virulenta, a das rotas comerciais terrestres e marítimas que China e Estados Unidos disputam secretamente. Nos últimos dez anos, as crônicas não param de falar da Nova Rota da Seda chinesa, da Rota das Especiarias e da construção de um cinturão econômico marítimo da Europa à Ásia Oriental. O projeto chinês já investiu bilhões de dólares na renovação de portos e ferrovias, e criou 56 novas zonas comerciais em cerca de vinte países. O exemplo mais revelador é que o volume de negócios entre Pequim e Riade atingiu 116 bilhões de dólares. Diante desses projetos gigantescos, os Estados Unidos anunciaram seu contraprojeto na cúpula do G20 realizada em julho passado em Déli: a criação do "corredor econômico entre a Índia e a Europa" junto com Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel. Trata-se de uma espécie de parceria político-comercial na região, cuja realização requer a normalização das relações entre Tel Aviv e Riade. A isso se somaria o megaprojeto do Canal Ben Gurion, apresentado por Netanyahu a Biden na última cúpula de Sharm El-Sheikh, cuja construção depende do resultado da destrutiva guerra que Israel iniciou contra Gaza.
Você está surpresa com as dificuldades que uma força armada dissuasora, como a formada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, está enfrentando para controlar a situação em Bab El-Mandeb?
A ofensiva huti não apenas perturbou os planos dos Estados Unidos na região, mas também lhes apresentou um novo dilema sobre a forma mais adequada de proteger uma rota marítima vital para o Ocidente. O New York Times revelou recentemente os debates desencadeados no seio do exército americano sobre a necessidade de reorganizar a força de dissuasão após o revés que estão sofrendo no Iêmen. Eles têm sérias dúvidas sobre continuar militarizando o Mar Vermelho, pois correm o risco de obter o efeito oposto. Na minha opinião, ocorreu o colapso da política de dissuasão dos Estados Unidos, e isso implica uma mudança no equilíbrio de poder entre Washington e seus aliados, mas também com seus concorrentes do BRICS.
Você acha que o controle do Canal de Suez é crucial para o desfecho do conflito?
Não. Este passo estratégico não é o tema principal da guerra. Certamente está experimentando algumas perturbações devido à batalha desencadeada no Mar Vermelho, mas desde 1973 está sujeito a várias convenções internacionais respeitadas pelo Egito, pois fornece receitas vitais para sua economia combalida. O verdadeiro perigo para os egípcios é que o projeto do Canal Ben Gurion se concretize, um antigo sonho de Israel para conectar o Mar Mediterrâneo a Akaba, ao sul da Faixa de Gaza, no Mar Vermelho, com o dobro da capacidade de tráfego do Canal de Suez e acompanhado pela construção de dezenas de pequenas cidades turísticas. Mas para executar esse projeto, Israel precisa esvaziar Gaza de habitantes e empurrá-los para o Sinai. Obviamente, o Egito se opõe veementemente ao projeto porque significaria perder o monopólio do transporte marítimo que detém hoje, bem como sua condição de ponte turística para a Arábia Saudita e para sua gigantesca cidade futurista Neom, a cidade de 26.000 quilômetros quadrados que Mohammad Ben Salman pretende construir às margens do Mar Vermelho. Para construí-la, ele precisa normalizar as relações diplomáticas com Tel Aviv, aderindo aos Acordos de Abraão que os eventos em Gaza provavelmente atrasaram.
Na sua opinião, o que mudou na região desde 7 de outubro?
Prefiro falar sobre o que aconteceu nos últimos três meses. Pessoalmente, estou convencida de que algo mudou. Será necessário avaliar profundamente o que o genocídio em Gaza significa, não apenas para aqueles que se opõem a Israel, mas também para todos os cidadãos contrários a um capitalismo predatório cada vez mais agressivo, à ditadura dos mercados, às instituições financeiras e a todos aqueles que tentam minar as conquistas sociais que a classe trabalhadora alcançou ao longo de séculos de luta. Em 7 de outubro, ficou claro que a derrota do quinto exército do mundo porá fim ao seu papel como cabeça de ponte imperialista e o impedirá de impor suas decisões pela força. A imagem dos Estados Unidos ficou manchada para sempre, não apenas por sua cumplicidade com os crimes em Gaza, mas porque participaram diretamente das operações e forneceram apoio financeiro no valor de 14 bilhões de dólares. Além disso, representou o fim ou a desaceleração do processo de normalização das relações entre as monarquias petrolíferas e Israel. Regimes como o saudita ou o bareinita, retrógrados e despóticos, temem uma vitória do Hamas e continuam incentivando as coisas para que os Estados Unidos fiquem empacados no Mar Vermelho.
O jornal britânico The Times informou recentemente sobre a possibilidade de Israel estar preparando a invasão do sul do Líbano. Você acha possível a abertura de uma nova frente de guerra no norte?
Esta análise está completamente errada. Desde sua derrota em 2006, Israel deixou de se aventurar no território libanês para não sofrer uma nova afronta. Em 7 de outubro, marcou o fim do mito da invencibilidade de seu exército. A vulnerabilidade de sua segurança foi tão escandalosa que surpreendeu mais seus amigos do que seus inimigos. Isso explica o envio imediato de frotas ocidentais à região dispostas a resgatar sua cabeça. Como o sofisticado exército sionista está completamente emperrado em um território que não ultrapassa 365 quilômetros quadrados como Gaza depois de três meses de intensos bombardeios, e que não alcançou nenhum dos três objetivos anunciados - parar o Hamas, libertar os reféns e empurrar os palestinos para o êxodo - é um indicador claro de sua situação. Então, pergunto: como poderia liderar uma guerra contra o Hezbollah, cuja capacidade de fogo chega até Tel Aviv?
Mas a superioridade militar israelense é indiscutível. Como a resistência palestina pode vencer esta guerra?
O principal argumento já foi apresentado pelo próprio Estado-maior de Israel, que culpa Netanyahu pela derrota, e também pelo ex-chefe do Mossad, Yossi Cohen, que em 4 de janeiro enviou uma carta aberta ao governo pedindo um cessar-fogo, pois o que está em jogo agora é a existência de Israel. Também o diretor do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby, apontou que, após 100 dias de guerra impiedosa, o Hamas mantém sua força de ataque e um apoio inegável entre os palestinos. Outro argumento revelador é que, depois de três meses de combates, Israel ainda está enfrentando os comandos do Hamas no norte de Gaza, uma área que foi completamente devastada. A razão é que sua campanha de terror se concentra em lançar foguetes contra civis, mas é incapaz de lutar no terreno, de acordo com especialistas. Foi assim que foram derrotados no Líbano em 2000 e 2006. A imprensa israelense começa a falar em grandes perdas humanas e no colapso da moral de suas tropas. Algumas fontes indicam que 2.500 soldados teriam desertado e que um milhão e meio de israelenses deixaram o país desde 7 de outubro. Isso, na minha opinião, anuncia o fim do projeto sionista. De qualquer forma, as operações causaram danos à resistência, mas não mudaram a situação no terreno, como reconheceu Kirby. Gaza continua lutando após 100 dias do "Apocalypse Now" descrito por Coppola.
Israel descreve sua ofensiva militar como uma guerra do bem contra o mal. É a necessidade de despolitizar um conflito político como o palestino?
Não se trata de despolitizar o conflito, mas de demonizar os palestinos que lutam por sua liberdade. O mesmo ocorreu em outras batalhas anticoloniais, onde os colonizados foram rotulados de terroristas pelo ocupante. Há inúmeros exemplos, desde os comuneros franceses e os vietnamitas até o FLN argelino, Nasser quando nacionalizou o Canal de Suez em 1956 e a OLP. O Hamas é alvo de uma campanha de difamação para justificar o genocídio. Desde 7 de outubro, há uma espécie de macartismo na mídia, onde qualquer declaração sobre os crimes de Israel em Gaza está condicionada à condenação prévia do Hamas como organização terrorista. No entanto, todo esse derramamento de sangue está gerando resultados. Hoje, são Israel e os EUA que começam a ser consagrados como símbolos do mal por muitos cidadãos em todo o mundo.
A formidável mobilização de solidariedade internacional que ocorreu abre perspectivas para que a justiça finalmente prevaleça.
O Hamas é um movimento palestino enraizado nas camadas populares de Gaza, Cisjordânia e nos campos palestinos de Líbano, Síria e Jordânia. Foi democraticamente eleito em 2007 em eleições supervisionadas pela ONU, e desde então, a Faixa ficou sob bloqueio colonialista. Não é o Islã que incomoda, mas sua recusa em abandonar as armas sem a prévia libertação da Palestina e sua rejeição aos chamados tratados de paz, como o de Camp David ou Oslo, que só resultaram na perda de território. Sua estrutura não tem nada a ver com organizações mercenárias supostamente islâmicas como Daesh, Al-Qaeda, Al-Nusra e Junud al-Sham, criadas pela CIA para semear problemas no mundo árabe e minar as instituições estatais por meio da expansão da "guerra civil permanente". O Hamas é um movimento de libertação surgido do povo palestino sitiado, cuja popularidade não está na aplicação da doutrina islâmica, mas em sua resistência à capitulação buscada pelas potências coloniais. Seu discurso não fala mais de 'Umma', mas de uma trama social diversificada onde até os cristãos têm que lutar pela liberdade e dignidade desta pátria. Seus apelos ultrapassam fronteiras e apelam aos homens livres do mundo, à classe trabalhadora e aos sindicatos, cuja mobilização se tornou, dizem, "a única esperança para deter essa barbárie". Isso é completamente novo. E a formidável mobilização de solidariedade internacional que ocorreu abre grandes perspectivas para que a justiça finalmente prevaleça.
Gaza tem sido o bastião do Hamas, enquanto a Cisjordânia era da Autoridade Palestina e do Fatah. Você acredita que a guerra modificou essa relação?
Sim, certamente. A Autoridade Palestina, que tinha apenas um papel de segurança a favor de Israel, está completamente denegrida. Abu-Mazen (Mahmud Abás) é vaiado em manifestações, e a organização Fatah se dividiu. Apesar da terrível repressão na Cisjordânia, onde já há 360 mortos e 1.200 detidos desde 7 de outubro, comitês de apoio ao Hamas foram formados em Jenin, Nablus, Haifa e Jaffa. O Hamas esteve no centro de todas as intifadas e mobilizações que a Cisjordânia experimentou, incluindo aquelas que ocorreram nas prisões, e muitos de seus líderes atuais nasceram lá. Eles lideraram a batalha pelo bairro de Sheikh Jarrah em Jerusalém e organizaram manifestações por dois anos na linha de demarcação para deter os assentamentos. Vale ressaltar, por fim, que seu líder, Yehya Al-Sinwar, reivindica em seus discursos a continuidade da linha de emancipação fundada por Arafat, abrindo a porta para reunir um grande número de ativistas do Fatah, insatisfeitos com a brandura de Abu Mazen, cujo governo já não tem nenhum poder real.
Você viveu a guerra do Líbano em 2006, que causou milhares de mortos. É comparável ao que está acontecendo agora em Gaza?
Sim, é comparável do ponto de vista da intensidade da força de ataque operada pela aviação israelense. Em 2006, anunciaram que o objetivo era "devolver o Líbano à Idade Média". Derrubaram toda infraestrutura possível: estradas, pontes, fábricas, usinas elétricas, hospitais, escolas, casas, campos de cereais e despejaram combustível na costa libanesa para eliminar toda forma de vida marinha. Apesar disso, acredito que em Gaza é muito pior, com a agravante de que a Faixa tem estado fechada e sob bloqueio por 17 anos, tornando impossível fugir ou se refugiar. No Líbano, a população fugiu para o interior, e a resistência estava melhor equipada militarmente. Mesmo assim, mataram 1.200 civis e 450 combatentes. Em Gaza, houve uma intenção deliberada de aniquilação. Eles até anunciaram o desejo de reduzir a população pela metade, seja através do êxodo para o Sinai ou pela morte. E já liquidaram 4% da população, de acordo com as cifras oficiais divulgadas em 10 de janeiro.
Se a solução de dois Estados é impossível, que futuro aguarda o povo palestino?
Quando queremos resumir a história da ocupação da Palestina em algumas datas, dizemos que foi ocupada em três fases: a Nakba de 1948, a Naksa de 1967 e os Acordos de Oslo de 1993. Os chamados Acordos de Paz, cujo processo durou 32 anos, só serviram, segundo o chefe da delegação palestina encarregado das negociações entre 1992 e 1997, Elias Sanbar, para erodir a Palestina, que agora possui apenas 6% de seu território original. Na mesma linha, outras organizações se manifestaram, incluindo as facções do Fatah, a maioria dos líderes da OLP e figuras próximas a Arafat, como o poeta Mahmoud Darwish ou o intelectual Edward Said. Como afirma Michèle Sibony, porta-voz da União Judaica Francesa pela Paz, todos sabemos há muito tempo que o objetivo de Israel é esvaziar o território de palestinos para abri-lo à colonização, através de uma verdadeira substituição da população. Gideon Levy disse em uma coletiva de imprensa em Washington que Israel nunca quis a paz, e o historiador Ilan Pappé afirmou que a solução de dois Estados não é nada além de criar um Estado tampão ao lado de um Estado expansionista.
O que parece claro é que o direito internacional humanitário foi pelo ralo. Para onde estamos indo?
Eu teria preferido encerrar a entrevista com uma nota de esperança, mas a questão dos direitos humanos não está mais na pauta neste momento da história. A impotência das instituições internacionais ficou evidente, incapazes de obter um voto para deter a carnificina em Gaza. Acredito que a falha está no sistema de funcionamento das Nações Unidas, não na ideia em si, que continua sendo nobre. Todos nós precisamos de recursos diante da barbárie, mas quando são os próprios bárbaros que financiam, influenciam e exercem o direito de veto, o que podemos fazer? É possível reformar essas instituições? Acredito que isso só é viável se libertarmos essas instituições do jugo das finanças e criarmos um fundo internacional de cidadãos para conter a lei da selva, que é o que está acontecendo na Palestina.
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“A disputa do Mar Vermelho esconde outra mais virulenta: a disputa pelas rotas comerciais entre a China e os Estados Unidos”. Entrevista com Leila Ghanem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU