13 Janeiro 2024
Em carta, Sophia “La Roja” Hernández, irmã da artista circense venezuelana, diz que ela se sensibilizou com as cinco crianças vulneráveis que estavam com a mãe na rua pedindo ajuda para comprar comida. Os pais das crianças estão presos pelo assassinato da palhaça Miss Jujuba no dia 23 de dezembro, antevéspera do Natal.
A reportagem é de Kátia Brasil e Nico Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 10-01-2024.
A artista, bonequeira, cicloviajante e feminista Julieta Inés Hernández Martínez, 38 anos, antes de tudo era a palhaça “Miss Jujuba” que andava pelo mundo com sua bicicleta encantando as crianças por onde passava. E não foi diferente quando ela chegou a cidade de Presidente Figueiredo, no Amazonas, para pernoitar. Era dia 21 de dezembro, quatro dias antes do Natal, e faltava mais de 1,3 mil quilômetros para Julieta cruzar a fronteira brasileira e percorrer rodovias até chegar em casa, em Puerto Ordaz, no sul da Venezuela, para passar as festas de final de ano com sua família. Sua irmã, Sophia Hernandez, contou em uma carta, divulgada no site Pluriverso, como foram os últimos momentos de Julieta antes de perder o contato por telefone com amigos e parentes.
“Com o último dinheiro que tinha, ela comprou leite para as crianças do casal”, diz Sophia, falando de Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos, que confessaram, no dia 5 de janeiro, serem os autores dos crimes de latrocínio – roubo seguido de morte-, roubo e ocultação de cadáver contra Julieta Hernández, no dia 23 de dezembro. O casal está preso preventivamente pela Polícia Civil do Amazonas.
“Num dia sombrio, em seu caminho, ela [Julieta] encontrou cinco grandes razões para se martirizar, cinco crianças, crianças pobres. Os assassinos dela [o casal Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos], foram os monstruosos pais dessas criaturas. Com o último dinheiro que tinha, ela comprou leite para essas crianças e decidiu ir para a casa dessa família pobre e miserável. Possivelmente, pelo que as pessoas contam, ela percebeu o abuso contra elas. Não era a primeira vez que Julieta se comovia diante do sofrimento infantil e se disponibilizava para lhes levar ao menos um pouco de alegria e amor, e foi naquela casa que aconteceu tudo o que não conseguimos mencionar”, escreveu Sophia Hernández, que está em Manaus com sua mãe para acompanhar o velório da artista e o translado do corpo à Venezuela.
Sophia Hernández disse na carta que a família quer que Julieta seja lembrada como uma mulher corajosa, que se imortalizou como artista. “A imprensa sensacionalista faz o seu trabalho, mostrando-nos informações e detalhes horríveis que fizeram muitos terem medo. Mas Julieta sempre rejeitou o medo, ela era uma ariana poderosa, nunca teve medo, pelo contrário, rebelava-se com o poder de uma tempestade. Hoje, devemos contar essa parte de sua história, que não é de forma alguma a mais importante nem a que queremos que seja lembrada, mas sua trágica morte é uma história de proeza inimaginável. Julieta se imortalizou e essa é a maior expectativa de qualquer artista!”, diz a irmã. Leia a íntegra da carta aqui.
Julieta como a palhaça Miss Jujuba. (Foto: Reprodução | Redes sociais)
Também médica veterinária de formação na Venezuela, Julieta Inés Hernández Martínez vivia há nove anos no Brasil como artista circense, mas nos últimos dois anos partiu do Rio de Janeiro com o objetivo de percorrer várias cidades brasileiras para retornar à Venezuela pela fronteira de Roraima, no extremo norte do país. Ela registrava suas viagens e apresentações da palhaça “Miss Jujuba” na rede social Instagram. No Pará, ela esteve na Ilha do Marajó, em Belém, e, em Alter do Chão, em Santarém. Como tinha uma rede de amigos, sempre agradecia a hospedagem e o acolhimento. No dia 2 de dezembro, Julieta chegou em Manaus, ocasião que iniciou uma campanha para comprar um celular novo:
“Olá, passando por aqui com uma vaquinha urgente pra comprar um celular, equipamento básico e necessário na vida de todo artista, um celular que assegure a barra de editor de vídeo e programas pra escrever projetos. Pode parecer simples mas eu não estou conseguindo juntar o dinheiro suficiente. Estou chegando a Manaus, zona Franca e última cidade grandona onde estarei antes de mergulhar na Venezuela, por tanto considero que é a última oportunidade de resolver esta situação que vem prejudicando meu trabalho já faz mais de nove meses desde que perdi o meu celular Motorola.”
Na rede social, Julieta contou que a campanha foi um sucesso e ela comprou um novo celular. “Obrigada pela confiança, carinho e o apoio…”.
No dia 16 de dezembro, Julieta fez sua última postagem agradecendo o acolhimento em Manaus, mas sem citar o seu destino final, a cidade de Presidente Figueiredo. Ela viajou mais 125 quilômetros pela BR 174 (Manaus/Boa Vista (RR)). “Agradeço a pela locação, pelo carinho e por me dar pouso nestes dias! E Dale que o caminho me aguarda…”.
De acordo com informações da Polícia Civil do Amazonas, em Presidente Figueiredo, Julieta tentou pernoitar em duas pousadas, mas sem sucesso. Também não obteve apoio da rede de mulheres feministas e nem de ciclistas na cidade. A artista então seguiu para o Espaço Cultural Mestre Gato, no dia 21 de dezembro, local de apoio a viajantes da rodovia BR-174, que fica a 15 minutos a pé do centro da cidade.
De acordo com os familiares, no dia 23 de dezembro Julieta não entrou mais em contato pelo celular, como ela fazia sempre como um monitoramento de segurança com os amigos. Em entrevista ao G1, Ana Melo, amiga de Julieta, relatou a estranheza diante do desaparecimento repentino da artista circense: “O que a gente achou estranho foi o fato dela não ter avisado que ficaria sem sinal. Simplesmente as mensagens pararam de chegar e a gente não conseguia mais localizá-la”.
No dia 4 de janeiro, 13 dias após o desaparecimento da artista, um Boletim de Ocorrência online foi registrado pelos amigos na Polícia Civil do Amazonas. Conforme o delegado Valdinei Antônio da Silva, titular da 37ª Delegacia Interativa de Polícia (DIP) de Presidente Figueiredo, um vizinho avisou na delegacia que encontrou numa área de mata pedaços da bicicleta de Julieta, pois seu desaparecimento naquele dia tinha sido anunciado na imprensa local.
O terreno fica próximo do Espaço Cultural Mestre Gato. Lá, estavam abrigadas as cinco crianças, que Julieta se encantou. Há sete meses o casal Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos estava abrigado no local com cinco filhos de até 6 anos, sendo dois bebês, todos vivendo em situação de vulnerabilidade, pois os pais são usuários de drogas e pedintes, segundo a polícia.
“Após o vizinho indicar os objetos na mata, fomos ao Mestre Gato, onde o casal vivia de favor. Como a meia noite e trinta, do dia 23 de dezembro, a família informou que foi o horário do último contato com a Julieta, a suspeita recaiu para o casal”, disse o delegado Valdinei Silva.
Durante os depoimentos, o delegado afirmou que Thiago Silva e Deliomara Santos confessaram os crimes. “O Thiago mandou a Deliomara roubar o celular. A Julieta estava dormindo na rede na varanda da casa. Deliomara se negou a roubar. Então Thiago pegou uma faca para roubar e foi até a rede. A Julieta reagiu, ele deu uma gravata nela, a jogou no chão. Ela ficou desacordada. Thiago mandou Deliomara amarrar os pés de Julieta”, relatou o delegado, dizendo que o aparelho foi achado pelos investigadores.
À Amazônia Real, o delegado Silva também relatou a sequência da violência de gênero contra Julieta Hernández. “Depois que a Deliomara amarrou os pés da Julieta, o Thiago arrastou a Julieta, que estava desacordada, para dentro da casa e apagou as luzes. Deliomara ligou a luz e, segundo ela, se deparou com a cena do estupro. Ela disse que ficou com ciúmes. Em seguida, pegou álcool e jogou nos dois e ateou fogo. O Thiago saiu de casa e foi para o Hospital Geral Eraldo Neves Falcão, em Presidente Figueiredo, pois teve o tronco e os braços queimados. Deliomara contou que amarrou a corda no pescoço da Julieta e a matou”.
O delegado disse que Thiago foi transferido e ficou internado com queimaduras pelo corpo por quatro dias em um hospital público em Manaus. No dia 28 de dezembro, voltou para Presidente Figueiredo. O casal passou o ano novo com Julieta enterrada no quintal numa cova rasa. Lá ocultaram o corpo da artista e seus pertences, a bicicleta, avistados pelo vizinho no dia 4 de janeiro. “Eles assumiram o crime, indicaram o local onde o corpo estava enterrado, além dos objetos que estavam na residência. O celular estava escondido no forro da casa. Eles queriam roubar o celular, depois veio outros crimes: o estupro e a ocultação do cadáver”, afirmou o policial à reportagem.
Sobre o crime de feminicídio, o delegado disse que a tipificação pode ser avaliada pela Justiça. “Considerando o conceito de feminicídio, eu acredito que a justiça pode tipificar considerando a execução do crime, mas não está bem claro, a investigação não foi concluída”, afirma Silva.
A decretação das prisões preventivas de Thiago e Deliomara foi por crimes de latrocínio (roubo seguido de morte): a pena prevista é de 20 a 30 anos de reclusão e multa; estupro: com pena de prisão de 6 a 10 anos; e ocultação de cadáver: prevê reclusão de um a três anos e multa. Eles também foram indiciados pela polícia.
Conforme especialistas no tema, o assassinato de uma mulher também é considerado feminicídio mesmo quando cometido por pessoas desconhecidas da vítima. Um exemplo é um caso de estupro com morte, quando o autor não conhece a vítima. O feminicídio é o ato de matar uma mulher por razões que envolvam a violência doméstica e familiar, o menosprezo ou a discriminação à condição feminina. O tempo mínimo de reclusão sobe de 12 para 20 anos, com o máximo de 30 anos em regime fechado.
A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), em resposta à agência Amazônia Real, informou que atuou somente na audiência de custódia de Thiago Agles da Silva e Deliomara dos Anjos Santos, durante a audiência que foi realizada no dia 6 de janeiro. “Esclarecemos que durante a audiência de custódia não são analisados o mérito ou os fatos contidos no auto da prisão em flagrante, mas sim a existência de violência policial contra as pessoas presas e a necessidade ou não da manutenção da prisão. Ressaltamos que as investigações estão em andamento e são conduzidas, exclusivamente, pela Polícia Civil do Estado do Amazonas”.
Durante a audiência, a DPE-AM pediu a substituição da prisão preventiva de Deliomara Santos pela prisão domiciliar pelo fato dela ser mãe de cinco crianças. “É possível, dentre outras hipóteses, quando a pessoa presa é “imprescindível aos cuidados de pessoa menor de 6 anos de idade ou com deficiência” (art. 318, inciso III, do Código de Processo Penal). Esse é o fundamento legal do requerimento formulado em sede de audiência de custódia. No entanto, o pedido foi negado pelo magistrado”, informou o órgão.
Com relação ao crime de feminicídio contra Julieta Hernandez, a DPE disse que a competência “é exclusiva do delegado de polícia, na oportunidade do indiciamento, e do Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia”.
Ato de repúdio contra o feminicídio de Julieta Hernández, em Manaus. (Foto: Ricardo Miranda | Divulgação)
Segundo a estatística da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, 16 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado, de janeiro a outubro de 2023. Neste período foram registrados 3.620 estupros – são 9 mulheres vítimas da violência por dia.
O feminicídio de Julieta Hernández lembrou outro crime brutal contra mulheres no Amazonas. Em 13 de setembro de 2017, a atleta canoísta britânica Emma Kelty foi assassinada quando percorria sozinha o rio Solimões, na zona rural do município de Coari, no Amazonas, por uma organização criminosa denominada “piratas do rio”, segundo a denúncia do Ministério Público do Estado (MPAM).
Os criminosos roubaram a atleta na praia do Boieiro, que fica nas proximidades da comunidade Lauro Sodré, zona rural de Coari, onde ela acampou. O sonho da atleta era navegar sozinha da nascente à foz do Rio Amazonas, em viagem que começou no Peru e terminaria no Brasil.
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Amazonas. Julieta comprou leite para filhos do casal que a matou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU