09 Janeiro 2024
"É exasperante constatar que alguns líderes políticos e militares israelenses abusem dos temas bíblicos para legitimar as suas ações de morte. Prejudicam a imagem da sua religião e de todas as religiões do mundo", escreve dom Johan Bonny, bispo de Antuérpia, em artigo publicado por CathoBel, 09-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Penso raramente, na verdade nunca, no Papa Pio XII (1876-1958). Exceto nestes últimos dias e semanas, depois das violências do Hamas de 7 de outubro e dos bombardeios em Gaza. O Papa Pio XII teria permanecido neutro por tempo demais, não teria reagido com a dureza necessária contra a poderosa Alemanha. Isso lhe valeu o apelido de “papa nazista” em determinados círculos.
Do passado ao presente há apenas um pequeno passo. No jornal de hoje li que quatro mil crianças já morreram em Gaza, ou seja, cerca de quatrocentas por dia. “Gaza tornou-se um cemitério para as crianças”, disse o porta-voz da UNICEF, James Elder. “E é um inferno para todos”.
O Ocidente reage com confusão e contradição. Muitos adotam uma posição "neutra". Entretanto, as grandes potências militares apoiam o exército israelense. Porque “tudo é muito complexo!” Ou: “Devemos defender uma democracia ocidental como Israel!” Por que estou sentado aqui, como bispo, e fico calado? De quem e do que devo me cuidar?
Moro na cidade flamenga que tem a maior comunidade judaica do país. Tenho muitos conhecidos na comunidade judaica. Sou membro do Conselho Consultivo dos Cristãos e Judeus da Bélgica. Devo falar ou calar e por quem? Quem será meu amigo ou meu inimigo quando eu falar? De fato, é uma história complexa. Israel tem o direito de existir e de se defender, ninguém questiona isso. Mas os palestinos também têm o direito de existir e de se defenderem.
Infelizmente, todos os esforços destinados a alcançar uma solução com dois Estados foram sistemática e estrategicamente boicotados, até que uma explosão previsível forneceu o álibi ideal.
A explosão aconteceu. A ofensiva final parece ter começado. Ninguém acredita mais na coexistência pacífica no antigo território sob mandato da Palestina. As crianças devem morrer. Os jovens devem partir. Os outros radicalizar-se-ão (o que mais poderiam fazer?). E depois de Gaza, seguirá a Cisjordânia. Onde estão os direitos humanos e o direito internacional?
Como bispo, quero limitar-me ao meu âmbito, aquele da fé. Cristãos e judeus partilham em grande parte os mesmos escritos sagrados, os livros que chamamos de Antigo Testamento. Mas na nossa interpretação desses escritos, não estamos em nenhum caso na mesma linha após a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Essa diferença não diz respeito a aspectos acessórios, mas ao cerne do problema: o fato de o amor de Deus e a salvação de Deus não estarem mais ligados a um país, a uma raça ou a uma cultura específica. No centro do cristianismo está a universalidade da salvação. Todos os direitos e deveres associados à fé cristã têm um significado universal. Transcendem todo interesse privado, até mesmo todo interesse religioso privado.
Consequentemente, segundo a opinião cristã, não existe no Antigo Testamento nenhuma palavra de Deus que, depois da morte e ressurreição de Jesus, possa legitimar uma recuperação violenta ou uma expansão militar do chamado “país bíblico”. O Deus de Israel é o Pai de todos os povos, como diz o Gênesis.
É exasperante constatar que alguns líderes políticos e militares israelenses abusem dos temas bíblicos para legitimar as suas ações de morte. Prejudicam a imagem da sua religião e de todas as religiões do mundo. Pervertem o sentido das mais belas expressões bíblicas como a da Eleição, da Aliança, da Promessa, do Êxodo, da Terra Prometida ou mesmo da Jerusalém do fim dos tempos. Reforçam a impressão de que a religião esteja ligada ao sangue, à terra e à violência.
Claro, digo isso como cristão. E como cristão, devo também tratar o nosso passado com prudência. Mas falo assim, obrigado pela diferença essencial – e, portanto, pela própria mensagem – pela qual Jesus de Nazaré morreu na cruz. Já naquela época: um judeu da Palestina, de 33 anos.
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“Amigos judeus, não posso mais ficar em silêncio”. Artigo de Johan Bonny, bispo de Antuérpia, Bélgica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU