14 Dezembro 2023
"Assim como os responsáveis por Treblinka criaram uma ilusão para mascarar a realidade terrível, também construímos um palco enganosamente tranquilizador para a crise ambiental. Alimentamos a ilusão de que ‘tudo está sob controle’, de que a tecnologia, os guias e os manuais de comportamento corporativo e individual estão resolvendo efetivamente os desafios do nosso tempo. No entanto, essa percepção pode nos desviar da verdade de que estamos diante de uma crise sem precedentes que exige ações urgentes e significativas".
O artigo é de Ana Lizete Farias, psicanalista. Ana trabalha em consultório particular com clínica, supervisão e grupos de estudos. É graduada em geologia pela UFRGS, mestra em Geologia Ambiental pela UFPR e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela mesma instituição. Atuou para diversas agências e organismos internacionais. Pesquisadora e autora de artigos científicos e do livro Psicanálise e meio ambiente: caminhos para uma educação ambiental (Medusa, 2021).
Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”. – Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal (1963), Hannah Arendt
O ponto inicial desse ensaio é que a crise ambiental é um sintoma, segundo Farias (2021), análogo ao descrito por Freud em 1895. Ela revela uma verdade sobre nós, sujeitos integrantes do projeto contemporâneo, e nos questiona sobre a direção que nossa civilização está tomando. A cada tragédia social e ambiental que se repete, é possível identificar a dinâmica pulsional no processo civilizatório. Reconhecer isso talvez nos ajude a entender por que permitimos a destruição do planeta.
No entanto, o tema da responsabilidade, ou melhor, a responsabilização diante daquilo pelo qual sofremos, aprendemos com Freud, é bastante difícil. Continuamos atribuindo ao Outro aquilo que diz respeito a nós. Realizar essa distinção é uma perspectiva que pode nos conduzir, inclusive, a criar destinos diferentes da destruição, na qual as nossas relações com o Planeta têm navegado.
Nesse sentido, talvez possamos nos valer do que Contardo Calligaris escreveu em um artigo em 1988, intitulado "A Sedução Totalitária”. Por meio de uma análise perspicaz sobre o arquiteto Albert Speer, oficial do regime nazista, Contardo aborda a redução da dimensão humana à “instrumentalidade”. A perspectiva da instrumentalidade nos interessa, pois pode nos ajudar a elucidar, frente às questões socioambientais contemporâneas, o que leva os indivíduos a consentirem voluntariamente com o imperativo da destruição.
Calligaris sugere que, ao renunciarem à responsabilidade e autoria de suas ações, os indivíduos podem perpetrar atos cruéis, convencidos de serem verdadeiros guardiões de uma causa superior. Dessa forma, transformam-se em objetos da paixão ao se tornarem instrumentos do gozo do Outro. Ilustrando, o psicanalista nos relembra de um trecho do livro de Franz Steiner, “Treblinka”, no qual ele conta que nazistas construíram uma estação falsa de chegada dos trens para aquele campo de concentração. De modo a parecer real, mostrava-se inclusive com portas de toalete e um relógio de madeira com os fins de manipulação perversa da realidade, para o atendimento dos seus objetivos sinistros.
A montagem de um cenário fictício de horror em Treblinka traça um paralelo perturbador com a atual crise ambiental. Assim como os responsáveis por Treblinka criaram uma ilusão para mascarar a realidade terrível, também construímos um palco enganosamente tranquilizador para a crise ambiental. Alimentamos a ilusão de que ‘tudo está sob controle’, de que a tecnologia, os guias e os manuais de comportamento corporativo e individual estão resolvendo efetivamente os desafios do nosso tempo. No entanto, essa percepção pode nos desviar da verdade de que estamos diante de uma crise sem precedentes que exige ações urgentes e significativas.
Imagem gerada por Inteligência artificial - Copilo t - Microsoft pela autora.
No entanto, alienados pelo desejo do Outro [1], o que acontece é que estamos sendo conduzidos a um caminho irreversível, que revela, por sua vez, o desajuste irremediável entre o 'mundo real' e o que não vemos porque, justamente, não queremos 'saber o que está acontecendo'. Informações científicas, nesse contexto, por exemplo, tornam-se desprovidas de importância.
Em algum momento, será preciso se deparar com esse teatro: não estamos apenas sob a influência do El Niño, e por isso tantos eventos climáticos estão arrasando comunidades e ambientes naturais; não são apenas ondas de calor; existem outros aspectos, como a contaminação dos mananciais de água por todo o mundo, a fome, a desigualdade social monstruosa e crescente. O fato é que, para além da tragédia climática iminente, outras tragédias desdobram-se diariamente, com destaque para a desigualdade social que amplifica as repercussões desses eventos.
Diante de tudo isso, temos assumido o papel de espectadores nesse cenário em que tudo está seguindo bem, ações estão sendo tomadas, planos estão colocados em execução, um palco para ocultar o horror inerente à crise ambiental que atravessamos. Nesse sentido, a crise ambiental é o encontro com o Real, ou seja, as consequências diretas das alterações profundas no equilíbrio do nosso planeta. O Real, conceito introduzido por Lacan, é aquilo que escapa à simbolização, que resiste à linguagem, que causa angústia e que retorna como trauma. O Real é o impossível de suportar, o que nos confronta com os limites da nossa existência.
Assim como em Treblinka, por trás de um ideal de desenvolvimento destinado a poucos, milhares de outros estão destinados a encontrar a morte, uma morte provocada pelo confronto inevitável com as forças incontroláveis do ambiente. Tais forças, como Freud nos alertou, não são passíveis de contenção. Lidar com esse horror exige uma coragem excepcional.
Diante disso, cabe-nos perguntar: como podemos nos responsabilizar pelo que sofremos? Como podemos criar destinos diferentes para a pulsão de morte? Como podemos resistir à sedução totalitária da instrumentalidade? Como podemos reconhecer o nosso papel na crise ambiental e agir de forma ética e sustentável? Essas são questões que a psicanálise pode nos ajudar a explorar no caminho para nos tornarmos sujeitos, autores, criadores frente aos nossos desafios sociais e ambientais. Não podemos nos contentar em ser objetos, instrumentos, espectadores, pois só assim poderemos construir um futuro possível para nós e para o Planeta."
CALLIGARIS, C. As paixões do ego. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
FARIAS, A. L. A psicanálise e o meio ambiente: caminhos para uma educação ambiental. Curitiba: Editora Medusa, 2021.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: ____. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
STEINER, F. Treblinka. São Paulo: Perspectiva, 1967.
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A perspectiva da responsabilidade no enfrentamento das Mudanças Climáticas, a partir de Freud - Instituto Humanitas Unisinos - IHU