Estudo do MapBiomas aponta que a degradação ocorre especialmente pela substituição de pastagens para área de cultivo de grãos
Recentemente, durante uma das atividades na COP28 nos Emirados Árabes Unidos, Lula confidenciou que não sabia que o Pampa é considerado um dos biomas brasileiros. A fala do presidente não surpreende e provavelmente ele não é o único. O professor Eduardo Vélez, integrante do MapBiomas, explica que o Pampa tem o menor índice de conservação de todos os biomas. “O Pampa é o patinho feio da conservação no Brasil, tem somente 3% do território sob proporção de parques e reservas, e a maioria desse percentual são áreas de proteção ambiental que não asseguram muitas vezes a proteção desejada”, destaca.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Vélez traz dados ainda mais alarmantes, pois o Pampa Sul-Americano, que também envolve o Uruguai e a Argentina, perdeu 20% de sua vegetação campestre entre 1985 e 2022, segundo o MapBiomas. “Esse percentual corresponde a uma perda de 9,1 milhões de hectares em 38 anos. Equivale a uma perda anual média de 240 mil hectares. Algo em torno de cinco vezes o município de Porto Alegre por ano. Trata-se de uma conversão de áreas naturais para áreas antropizadas muito expressiva, que resulta principalmente de uma substituição da produção de carne de corte em campos nativos pelo cultivo de grãos, predominantemente de soja”, detalha.
O professor explica também que a pecuária pode ser uma aliada na preservação do bioma, contando com uma boa gestão. “A criação de animais em áreas de vegetação campestre nativa é a grande vocação natural de uso econômico do Pampa e deveria ser promovida e estimulada. Sem ela, a história ambiental do bioma hoje seria terrivelmente pior”, explica. E para quem acha que a crise climática tem relação somente com a perda de florestas, Vélez traz mais um alerta: “há uma fração da degradação do Pampa nessa conta, ainda que os efeitos do aumento das emissões se manifestem em escala global e continental, e não de modo localizado, vinculado onde ocorreram as maiores emissões”.
Eduardo Vélez Martin (Foto: MapBiomas)
Eduardo Vélez Martin é biólogo, mestre e doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É pesquisador da GeoKarten, empresa na área de sensoriamento remoto e mapeamento da cobertura e uso da terra, colaboradora do projeto MapBiomas. Possui experiência em gestão institucional e políticas públicas na área ambiental, tendo sido diretor do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e diretor de Patrimônio Genético no Ministério do Meio Ambiente. Na área acadêmica, integra a Rede Campos Sulinos, sendo coautor de artigos publicados nas áreas de ecologia e sensoriamento remoto.
IHU – Segundo levantamento do MapBiomas, o Pampa Sul-Americano perdeu 20% de sua vegetação campestre entre 1985 e 2022. Como o senhor analisa estes números?
Vélez Martin – Esse percentual corresponde a uma perda de 9,1 milhões de hectares em 38 anos. Equivale a uma perda anual média de 240 mil hectares. Algo em torno de cinco vezes o município de Porto Alegre por ano. Trata-se de uma conversão de áreas naturais para áreas antropizadas muito expressiva, que resulta principalmente de uma substituição da produção de carne de corte em campos nativos pelo cultivo de grãos, predominantemente de soja, em todo o bioma.
(Gráfico: MapBiomas)
Essa dinâmica foi impulsionada pelo aumento do comércio internacional e pela valorização dos preços das commodities agrícolas. Com isso, em 2022 o bioma transnacional já tem menos da metade da sua superfície com áreas de vegetação nativa, sendo que essa perda tem sido espacialmente heterogênea. Ou seja, existem muitas regiões que já foram extremamente descaracterizadas, gerando área muito pobres em biodiversidade.
O que preocupa é que os dados anuais de mapeamento dos anos recentes não indicam reversão dessa tendência de perda. O futuro do bioma é incerto, e as tendências atuais são demasiado preocupantes.
IHU – Entre os três países – Brasil, Argentina e Uruguai – qual apresenta maior degradação?
Vélez Martin – A Argentina apresenta a maior degradação em termos absolutos. Claro que isso também decorre do fato da área original de Pampa na Argentina ser maior do que no Brasil e no Uruguai. Entretanto, quando avaliamos em termos proporcionais, comparando quanto ainda existe de vegetação nativa remanescente em relação a toda a área do bioma em cada país, percebemos que a Argentina e o Brasil estão empatados. No Uruguai, essa dinâmica de antropização das paisagens naturais tem sido menos agressiva; lá 64% do território ainda tem cobertura de vegetação nativa.
As causas dessas diferenças são diversas e complexas de avaliar aqui. Cada país tem economias, estruturas fundiárias, legislação e incentivos distintos. Além disso, muitas das áreas que não foram convertidas para agricultura correspondem a locais sem condições de sustentar usos agrícolas, por conta do relevo com muita declividade ou por apresentar solos inapropriados.
IHU – Em termos de biodiversidade, tanto de fauna quanto de flora, o quanto o Pampa se transformou desde 1985? Há mais perdas irreversíveis?
Vélez Martin – Os mapas produzidos pelo MapBiomas permitem quantificar quanto ainda resta de hábitat para a flora e a fauna, mas não permitem avaliar diretamente os efeitos sobre as populações dessas espécies de animais e plantas. Embora saibamos que isso se reflete nas listas de espécies ameaçadas de extinção, que infelizmente tem números bastante expressivos.
O que sabemos a partir destes mapeamentos é que desde a colonização europeia até 2022 o bioma Pampa trinacional mantém 47,4% do seu território com vegetação nativa, ou seja, já foi bastante transformado. Sendo que em várias regiões a descaracterização da biodiversidade é evidentemente um problema sério, como no caso da região do noroeste do Pampa no Brasil, no sudoeste do Uruguai e na parte central do Pampa argentino, onde a ocupação pela agricultura já ultrapassou os limiares de sustentabilidade ambiental.
IHU – Em que medida a degradação de outros biomas tem impactado na vida do Pampa? E como o Pampa impacta outros biomas?
Vélez Martin – Em geral, não vejo muita conexão entre essas dinâmicas. À medida que biomas que têm ocupação mais antiga e melhor infraestrutura, como no caso da Mata Atlântica e do próprio Pampa, foram esgotando as suas fronteiras de ocupação econômica, os demais biomas brasileiros vêm sendo progressivamente antropizados. Vejamos o caso da tragédia atual do Cerrado, que virou a bola da vez em termos de magnitude das transformações.
Entretanto, podemos pensar como hipótese de trabalho, que em alguma medida o desmatamento do bioma Amazônia possa ter afetado o Pampa no seguinte sentido: as áreas desmatadas por lá abriram espaço para a expansão da pecuária, no Norte e parte do Centro-oeste. Isso pode ter tirado parte da competitividade da pecuária aqui no Pampa, abrindo caminho para a opção pela soja.
Um esforço que a iniciativa MapBiomas tem feito é buscar demonstrar que todos os biomas brasileiros são importantes, não somente aqueles que são tipicamente florestais, e que o problema da perda de vegetação nativa e a necessidade de encontrar soluções para isso estão presentes em todos eles.
IHU – Como a pecuária vem contribuindo para a degradação do Pampa? E de que forma a mesma pecuária pode contribuir para a preservação do bioma?
Vélez Martin – No contexto atual, de mudança radical da pecuária para a agricultura, é difícil enquadrar essa atividade como algo que degrade o bioma. Até o momento, tem ajudado a salvar o bioma. A criação de animais em áreas de vegetação campestre nativa é a grande vocação natural de uso econômico do Pampa e deveria ser promovida e estimulada. Sem ela, a história ambiental do bioma hoje seria terrivelmente pior.
É sempre importante ressaltar que a vegetação campestre evoluiu com a presença de grandes herbívoros pastadores e que foram extintos há pouco mais de dez mil anos. Quando os jesuítas trouxeram para cá os primeiros rebanhos bovinos, estes encontraram espaço e comida abundante e uma vegetação evolutivamente pré-adaptada ao pastejo e ao pisoteio dos ruminantes. Isso gerou um raro exemplo de produção sustentável, ainda que não tenha sido planejado desse modo.
Durante alguns séculos, essa pecuária tem sido praticada no Pampa sem que tenham ocorrido extinções da fauna e da flora. Isso não significa que não existam situações em que o manejo inadequado da pecuária resulte em algum tipo de degradação. Ela ocorre quando a lotação animal é exagerada, comprometendo a estrutura e o funcionamento da vegetação nativa. Mas como comentei antes, num ambiente de conversão exagerada dos campos, esse ainda é um problema menor.
A boa notícia é que estudos zootécnicos feitos no sul do Brasil demonstram que é possível ter excelentes rendimentos com a produção animal e, ao mesmo tempo, conservar os campos nativos, sempre que aplicadas boas técnicas de manejo da vegetação e dos rebanhos. O que falta são políticas públicas que ajudem a induzir e a estruturar uma cadeia produtiva da carne, do produtor rural até o frigorífico, capaz de gerar um nicho próprio de mercado de longo prazo.
IHU – A silvicultura é hoje a maior ameaça ao Pampa? Como este tipo de produção de florestas tem impactado no bioma nestes últimos anos?
Vélez Martin – A silvicultura tem tido uma expansão muito grande nos últimos anos, nos três países onde o Pampa está representado. Entretanto, em 2022 ela ocupava 2,8 milhões de hectares, equivalentes a 2,5% do bioma. Ou seja, é equivocado atribuir a ela o status de maior ameaça ao bioma.
Por outro lado, precisamos observar que existem polos de produção da silvicultura que determinam que ela seja estabelecida de modo concentrado em algumas regiões. Sabemos que os problemas ambientais decorrem do excesso, da falta de equilíbrio entre o ambiente antrópico e o ambiente natural. Portanto, há que se ter cuidado com o exagero na concentração desses plantios, que tendem a gerar conflitos sobre a disponibilidade de água nas microbacias hidrográficas, além de comprometer a dispersão e o fluxo gênico da flora e da fauna tipicamente campestre, dentre outros impactos.
Por isso é importante que os projetos de desenvolvimento regional da silvicultura sejam precedidos de ordenamento territorial, por zoneamentos ambientais que definam limites de ocupação em área, além de restrições de tamanho máximo de talhões e distâncias mínimas entre talhões vizinhos. Idealmente essa mesma lógica deveria ser aplicada na agricultura.
IHU – Quais caminho podemos e devemos construir para a preservação do Pampa?
Vélez Martin – Em termos de estratégia, devemos combinar mecanismos de usos sustentável com mecanismos clássicos de preservação, para assegurar um ordenamento territorial equilibrado no bioma, garantindo espaço tanto para a produção como para a conservação.
Na linha do uso sustentável a promoção da pecuária sustentável é uma grande opção que considero pouco aproveitada ainda. Lembrando que a pecuária é praticada por pequenos (pecuaristas familiares), médios e grandes proprietários. O fortalecimento dessa cadeia produtiva, com manejo sustentável, seria um grande aliado para deter o avanço da agricultura e assegurar que os campos nativos continuem presentes no bioma.
No caso do Brasil, também é fundamental implementar de fato a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (n. 12.651/2012) que estabelece as APPs (áreas de preservação permanente) e as RLs (reservas legais) e também exige autorização prévia para a supressão da vegetação nativa. Tem havido pouca cobrança na aplicação dessa lei. Ocorre que os proprietários, em geral, não pedem autorizações de supressão antes da conversão dos campos para lavouras, e ainda mais preocupante é a burla da Reserva Legal no Pampa (dispositivo que define que 20% da propriedade deve manter a vegetação nativa delimitada, sendo passível de uso, inclusive com pecuária, desde que não seja convertida) sob o argumento, tecnicamente inaceitável, de que as áreas de campo nativo com gado seriam áreas já consolidadas, não sendo mais consideradas como áreas com vegetação nativa. A resolução desse impasse e a implantação efetiva dessa lei seriam uma grande conquista ambiental para o bioma.
Por fim, seria importante ampliar a rede de unidades de conservação. O Pampa é o patinho feio da conservação no Brasil, tem somente 3% do território sob proporção de parques e reservas, e a maioria desse percentual são áreas de proteção ambiental (APAs) que não asseguram muitas vezes a proteção desejada. É o menor índice de conservação entre todos os biomas brasileiros.
No Uruguai e na Argentina, o cenário é parecido. Há verdadeiros vazios de proteção em várias regiões do Pampa que estão sob ameaça iminente de conversão. Não entendo como não se criam mais unidades de conservação aqui no Rio Grande do Sul. Parece que isso virou um tabu.
IHU – No sul do continente, temos vivido tragédias climáticas a partir de eventos extremos. Em que podemos relacionar a degradação do Pampa com estes casos?
Vélez Martin – O incremento dos eventos climáticos extremos está em boa medida associado ao aumento das emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, sabemos que as mudanças no uso do solo têm sido a maior fonte de emissões brutas, em grande parte pelo desmatamento da Amazônia. Entretanto, todas as perdas de vegetação nativa, além de representar perda de biodiversidade, também implicam em aumento das emissões de carbono. Então, sim há uma fração da degradação do Pampa nessa conta, ainda que os efeitos do aumento das emissões se manifestem em escala global e continental, e não de modo localizado, vinculado ao local onde ocorreram as maiores emissões.
Agora, pensando como podemos estar adaptados ao aumento da frequência e intensidade dos eventos extremos, o que seria mais lógico para o Pampa? Apostar na soja que tem quebras expressivas de safra em anos de escassez hídrica, e cujos prejuízos são socializados em grande medida pela ajuda governamental, ou na pecuária sobre campo nativo que se baseia numa vegetação que tem histórico de convivência com eventos climáticos extremos e, portanto, maior resiliência a esses efeitos negativos do clima?
IHU – Estamos com mais uma conferência internacional sobre o clima em andamento, a COP28. Como tem acompanhado e quais suas expectativas?
Vélez Martin – A cada ano fica mais evidente que o clima já mudou para pior, não é mesmo? A cada edição da Conferência do Clima, a expectativa é de que os mecanismos de financiamento das ações práticas para redução das emissões possam ser logo colocados em funcionamento. Creio que este tem sido um dos itens mais frustrantes até agora.
Eu, particularmente, espero que, além das questões que tradicionalmente vêm sendo discutidas e negociadas, ganhe espaço a compreensão de que, além da crise climática, estamos vivenciando a crise da biodiversidade. E que, portanto, boa parte das soluções para reduzir as emissões e aumentar o sequestro de carbono devem ser pensada em sinergia com a conservação e a restauração da biodiversidade, dos nossos campos, banhados e florestas.