"Anos de grandes enchentes estão relacionados ao El Niño, como 1983 e 2023. Quando este El Niño se agrava é quando o Oceano atlântico está mais quente", diz especialista em recursos hídricos
"As enchentes são processos naturais que ocorrem na Terra desde a sua origem", no entanto a frequência e magnitude dos fenômenos climáticos extremos dos últimos meses podem estar associadas às mudanças climáticas, diz o engenheiro e especialista em recursos hídricos, Carlos Tucci. "A avaliação desta diferença em termos de temperatura foi realizada pelo IPCC com base em modelos climáticos com todas as suas incertezas", pontua.
Nesta entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Tucci explica que é o El Niño o fenômeno comum às enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul nos últimos meses, nos anos de 1940 a 1950 e na década de 1980. "O RS tem estas inundações em ano de El Niño, como em 1941 e 1983. O evento do El Niño está agravado porque o Oceano Atlântico está mais quente, o que amplifica seu impacto. Pode também ter componente de mudança climática".
A seguir, o entrevistado comenta a falta de ações federais preventivas para lidar com os fenômenos climáticos, a falta de investimentos nos âmbitos estadual e municipal e as dificuldades em torno do planejamento hidrológico das cidades. "Planejamento hidrológico é um termo genérico para diferentes projetos. No caso de gestão de inundações, é o planejamento de obtenção de dados adequados para as medidas de controle de inundação, principalmente as não estruturais: zoneamento de inundação, alerta de inundação e um futuro sistema de seguros. Este planejamento envolve seleção de locais com monitoramento para as cidades e locais de interesse que sofrem inundação para identificar as áreas de risco e para receber o alerta em tempo real das inundações. Sem isto e somente com a previsão de chuva não existe alerta e gestão de inundação", adverte.
Carlos Tucci (Foto: Arquivo Pessoal)
Carlos Tucci é graduado em Engenharia Civil, mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Recursos Hídricos pela University of Colorado. É professor do IPH e da Feevale e diretor e sócio da Rhama - Analysis Consultoria. Foi presidente do comitê editorial da RBRH da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, presidente da Rede de Capacitação em Recursos Hídricos no Brasil e presidente do comitê editorial da Revista de Gestão da América Latina.
IHU – Em que consiste a ideia de “planejamento hidrológico” e como ela pode se configurar como uma resposta a eventos extremos, como as cheias que vivemos recentemente no Rio Grande do Sul?
Carlos Tucci – Planejamento hidrológico é um termo genérico para diferentes projetos. No caso de gestão de inundações, é o planejamento de obtenção de dados adequados para as medidas de controle de inundação, principalmente as não estruturais: zoneamento de inundação, alerta de inundação e um futuro sistema de seguros. Este planejamento envolve seleção de locais com monitoramento para as cidades e locais de interesse que sofrem inundação para identificar as áreas de risco e para receber o alerta em tempo real das inundações. Sem isto e somente com a previsão de chuva não existe alerta e gestão de inundação.
IHU – Como analisa as enchentes históricas que ocorreram no Rio Grande do Sul recentemente?
Carlos Tucci – São eventos excepcionais que ocorreram no passado, como em 1941, aos quais as bacias hidrográficas estão sujeitadas. O RS tem estas inundações em ano de El Niño, como em 1941 e 1983. O evento do El Niño está agravado porque o Oceano Atlântico está mais quente, o que amplifica seu impacto. Pode também ter componente de mudança climática.
IHU – Em que medida podemos considerar que estas enchentes são efeitos da crise climática? Que outros fatores podem ter contribuído?
Carlos Tucci – As enchentes são processos naturais que ocorrem na Terra desde a sua origem. O que pode estar ocorrendo é um aumento da frequência e magnitude em função das mudanças climáticas. A avaliação desta diferença em termos de temperatura foi realizada pelo IPCC com base em modelos climáticos com todas as suas incertezas.
IHU – Quais os erros e acertos do poder público nas ações durantes as cheias recentes nos vale do Taquari, Caí, Porto Alegre e região metropolitana?
Carlos Tucci – A Constituição e a lei n. 9433 estabelecem que eventos extremos é responsabilidade federal, mas não temos praticamente ações preventivas de gestão de inundações no Brasil, apenas a previsão de chuva, o que é muito pouco, pois prever a chuva é uma ajuda muito limitada para a gestão de inundações. Em nível de cidade, o que pode ser feito é na drenagem urbana, que é atribuição das cidades, mas praticamente nenhuma cidade do Brasil tem este serviço, ou, quando tem o investimento, é 20% do necessário em operação e manutenção, e praticamente nada em investimentos. Isto decorre porque não existe recuperação de custos destes serviços e a taxa de drenagem não é incluída porque os políticos têm receio de colocar um imposto novo. Em fevereiro último, concluímos um plano de regulação para Agência Nacional de Águas (ANA) para a gestão de inundação para o Brasil onde estes aspectos foram abordados e depende agora da ANA implementar o Plano de Ação.
Dentro da gestão estadual, são necessárias medidas de zoneamento de inundação das cidades, o que envolve o mapa de risco e orientação para ocupação, que é introduzido no Plano Diretor urbano da cidade. Além disso, o alerta é muito limitado porque necessita ter a previsão de nível com antecedência para as cidades, indicando com o mapa de inundação os locais que devem inundar. Estes resultados ainda não existem.
IHU – Existem soluções definitivas para os problemas das enchentes? Por quê?
Carlos Tucci – Não existe eliminação das enchentes, mas pode-se minimizá-las com obras estruturais ou não estruturais. As primeiras têm custo muito alto e são viáveis economicamente somente para grandes impactos, onde os benefícios são altos e também depende de recursos que os municípios não possuem e dependem do governo federal. Mesmo assim, estas medidas possuem um limite de evento para o qual dão segurança. As medidas não estruturais são as de convivência com as inundações, as mais utilizadas em todo o mundo.
IHU – Como podemos nos preparar para eventos deste tipo?
Carlos Tucci – A preparação envolve a redução das vulnerabilidades à inundação, com a retirada ou reassentamento de pessoas em áreas de alto risco (o que é extremamente caro), mecanismos econômicos de incentivos, seguros (que no Brasil ainda não existem) e o zoneamento de inundação e alerta de inundação.
IHU – Quais as zonas mais críticas e vulneráveis a enchentes no Rio Grande do Sul? Como podemos compreender as características geográficas, ambientais e populacionais destas zonas?
Carlos Tucci – As áreas mais vulneráveis ocorrem onde o processo é muito rápido, com grande velocidade e grande concentração de população. Praticamente todas as bacias se inserem dentro de um ou outro fator desses no Estado, mas pode-se dizer que a Região Metropolitana de Porto Alegre tem uma grande parte da população em área de risco (quatro milhões de pessoas no total da região), mas tem o dique de POA que minimiza. O Taquari, pela grande variação dos níveis e altas velocidades, atinge várias cidades. O rio Uruguai atinge várias cidades. Esses parecem ser os principais. O ideal é que todas as cidades tenham zoneamento de inundação e sistema de alerta. Quando o Brasil desenvolver um programa seguro, é preciso utilizar este programa para mitigar a perda econômica.
IHU – Originalmente, como se davam os ciclos de seca e enchentes no sul do Brasil? Em que medida ainda vivemos dentro destes ciclos?
Carlos Tucci – Não existem ciclos bem definidos e previsíveis, mas períodos que ocorreram, como 1941, que foi o ano de um grande El Niño que inundou o Estado. No período de 1942 a 1951, tivemos dez anos consecutivos de seca, que levou o gaúcho a se deslocar para outros estados devido à falta de sustentação na agricultura. Depois disso, ocorreram os anos de seca em que o estado perdeu de 6 a 8% do PIB, em média a cada cinco anos. Anos de grandes enchentes estão relacionados ao El Niño, como 1983 e 2023. Quando este El Niño se agrava é quando o Oceano Atlântico está mais quente.
IHU – Como tornar nossas cidades resilientes aos efeitos da crise climática? Aliás, ainda podemos reverter esse quadro climático?
Carlos Tucci – A resiliência é obtida com as medidas não estruturais mencionadas de zoneamento de inundação, alerta e seguro de inundação. Para aumentar a resiliência, com o tempo devem-se criar mecanismos de incentivos para as populações que ocupam áreas de alto risco, que os seguros não cobrem, se desloquem para áreas seguras.
A reversão da crise climática é um problema global e a tendência é que isto não ocorra facilmente, mas a esperança são as inovações de energia sustentável. De qualquer forma, para as próximas gerações, a pressão climática pode diminuir depois de 2060, quando a população do mundo iniciar a redução, já que se espera que a redução ocorra de forma acelerada.
IHU – Recentemente, publicamos uma série de entrevistas com gestores de comitês de bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul em que denunciavam o desmonte dos comitês. Como o senhor analisa o atual momento dos comitês de bacias hidrográficas e qual a importância destes organismos?
Carlos Tucci – Este é o problema do nosso país: nós nunca abordamos as soluções de forma adequada. Primeiro, a gestão de recursos hídricos deve ser profissional, com Agências de Recursos Hídricos, onde se priorizam os elementos técnicos e com profissionais com conhecimento técnico em recursos hídricos. Como não há dinheiro para isto, foram criados comitês onde a grande maioria das pessoas é leiga e voluntária e sem recursos, o que não permite desenvolver soluções técnicas de gestão. Isto não é culpa destas pessoas, mas da forma errada como o processo vem sendo desenvolvido no país. É uma gestão amadora dos recursos hídricos. Isto parece nos lembrar de que não somos um país sério.