O trabalho por meio de plataformas digitais tem sido uma forma de inserção no mercado de trabalho e de obtenção de renda para uma parcela da população brasileira, diz o pesquisador
O trabalho por plataformas digitais caracteriza a ocupação de 1,5 milhão de brasileiros e, apesar de empregar alta tecnologia, é mais uma via de manifestação das desigualdades no país. Essa é uma das facetas reveladas na pesquisa "Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022", da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua. Segundo Gustavo Fontes, um dos autores do estudo, "embora o percentual de trabalhadores plataformizados ainda seja relativamente baixo, ele abrange um contingente não negligenciável de pessoas". A faixa etária dos trabalhadores é de 25 a 39 anos, seguida por pessoas de 40 a 59 anos.
Na avaliação dele, um dos maiores desafios relativos à atividade laboral desempenhada via plataformas digitais diz respeito à seguridade social. "As plataformas digitais podem representar oportunidades de obtenção de trabalho para muitas pessoas, seja como o trabalho principal, seja como uma forma de complementação da renda, mas também trazem importantes desafios, sobretudo no que se refere às relações e condições de trabalho e ao acesso à seguridade social. (...) A questão da contribuição previdenciária por parte desses trabalhadores é um aspecto que deve ser acompanhado", afirma.
Outro dado da pesquisa é a condição previdenciária dos trabalhadores. De acordo com Fontes, os dados da pesquisa mostram que "quando comparados aos demais ocupados no setor privado, observa-se que o percentual de trabalhadores plataformizados que contribuíam para a previdência era de 35,7%, percentual bastante inferior à participação dos contribuintes entre os não plataformizados (61,3%). Além disso, a maior parte dos trabalhadores por aplicativo estava em situação de informalidade (70,1%), o que abrange, por exemplo, os trabalhadores por conta própria sem CNPJ e os empregados do setor privado sem carteira de trabalho assinada. Para o total de ocupados (exclusive no setor público), o percentual de pessoas em situação de informalidade foi estimado em 44,2%".
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Fontes apresenta o perfil dos trabalhadores plataformizados e suas condições de trabalho, que variam conforme diferença de gênero e escolaridade. Atualmente, no país, informa, "essa forma de exercer o trabalho está fortemente concentrada nos setores de transporte particular de passageiros e de serviços de entrega, e, em menor medida, nos serviços de alimentação".
Gustavo Fontes é analista do módulo Teletrabalho e trabalho por meio das plataformas digitais da PNAD Contínua. Atua no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
IHU – Segundo a pesquisa "Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais 2022", da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, 1,5 milhão pessoas trabalham via plataformas digitais e aplicativos de serviços em 2022. O que esse número representa e significa no atual contexto de mercado brasileiro?
Gustavo Fontes – O trabalho exercido por meio de plataformas digitais de serviços representava 1,7% do total da população ocupada no setor privado, no país, no 4º trimestre de 2022, considerando exclusivamente o trabalho principal. Embora o percentual de trabalhadores plataformizados ainda seja relativamente baixo, ele abrange um contingente não negligenciável de pessoas. As plataformas digitais podem representar oportunidades de obtenção de trabalho para muitas pessoas, seja como o trabalho principal, seja como uma forma de complementação da renda, mas também trazem importantes desafios, sobretudo no que se refere às relações e condições de trabalho e ao acesso à seguridade social.
Atualmente, no país, essa forma de exercer o trabalho está fortemente concentrada nos setores de transporte particular de passageiros e de serviços de entrega, e, em menor medida, nos serviços de alimentação. Há também aplicativos que abrangem outras ocupações, inclusive na prestação de serviços profissionais qualificados, mas que ainda são menos usuais no Brasil. A PNAD Contínua ainda não possui uma série histórica desses dados que nos permitam avaliar a evolução do trabalho plataformizado no país, mas entende-se que essa é uma forma de se exercer o trabalho que já é uma realidade para um número importante de trabalhadores e que possivelmente irá se expandir e alcançar novos setores. Ressalta-se, por fim, a necessidade de se estabelecer, em âmbito internacional, definições conceituais e metodológicas para a identificação dessa forma de trabalho que permitam a comparabilidade dos dados entre países.
IHU – Quais são os principais dados evidenciados na pesquisa?
Gustavo Fontes – Considerando os dados da PNAD Contínua, referentes ao 4º trimestre de 2022, destaca-se o fato de que a maior parte dos trabalhadores plataformizados não estava assegurada por instituto de previdência. Quando comparados aos demais ocupados no setor privado, observa-se que o percentual de trabalhadores plataformizados que contribuíam para a previdência era de 35,7%, percentual bastante inferior à participação dos contribuintes entre os não plataformizados (61,3%). Além disso, a maior parte dos trabalhadores por aplicativo estava em situação de informalidade (70,1%), o que abrange, por exemplo, os trabalhadores por conta própria sem CNPJ e os empregados do setor privado sem carteira de trabalho assinada. Para o total de ocupados (exclusive no setor público), o percentual de pessoas em situação de informalidade foi estimado em 44,2%.
Quanto à questão da extensão das jornadas de trabalho, especificamente para os motoristas de aplicativo, os dados da pesquisa revelam que estes trabalham, em média, mais horas para obter rendimentos parecidos com os dos motoristas que não usam plataformas digitais. Em relação aos motociclistas no serviço de entrega, observa-se que os motoboys plataformizados, mesmo trabalhando mais horas, possuem menores rendimentos médios que os não plataformizados que realizam atividade semelhante.
IHU – Qual é o perfil dos trabalhadores de app e plataformas e dos teletrabalhadores hoje no Brasil?
Gustavo Fontes – Em relação aos trabalhadores de aplicativo, os homens representavam mais de 80% do total, o que reflete o perfil ocupacional predominante desses trabalhadores, sendo a maior parte condutores de automóveis ou motocicletas, que são ocupações exercidas principalmente por homens. As pessoas de 25 a 39 anos formavam o grupo etário predominante (48,5%), seguidas por aquelas de 40 a 59 anos (34,0%). Em relação à escolaridade, observa-se que a maioria dos trabalhadores plataformizados possuíam níveis intermediários de instrução, sobretudo o nível médio completo ou superior incompleto (61,3%). Mais de 3/4 dos trabalhadores por meio de plataformas digitais eram trabalhadores por conta própria, sendo que os empregados com carteira assinada representam apenas 5,9%.
No caso do teletrabalho, observa-se um perfil diferente, com as mulheres representando quase a metade (48,8%) desses trabalhadores. Inclusive, a taxa de realização de teletrabalho é maior entre as mulheres, frente aos homens. Mais de 2/3 dos teletrabalhadores possuem ensino superior completo e observa-se um predomínio de ocupações mais bem remuneradas, como diversas ocupações no grupamento dos profissionais das ciências e intelectuais (por exemplo, engenheiros, advogados, economistas, professores e diversos profissionais da área de TI), cargos gerenciais e de direção, além de técnicos e profissionais de nível médio. Os empregados do setor privado com carteira de trabalho assinada representavam quase 40% dos teletrabalhadores. Observa-se, também, que os empregados do setor público e os empregadores tinham maior peso entre os teletrabalhadores, ao comparar a participação desses grupos no total de ocupados.
IHU – Qual é a situação dos trabalhadores de aplicativos e dos teletrabalhadores em termos de jornada trabalhista, salário e direitos sociais? Comparando, quais são as principais diferenças e aproximações entre as jornadas de trabalho deles evidenciadas na pesquisa?
Gustavo Fontes – Considerando apenas as pessoas ocupadas no setor privado, observa-se que o rendimento médio habitualmente recebido no trabalho principal dos trabalhadores plataformizados era 5,4% superior ao rendimento médio dos não plataformizados. Por outro lado, os trabalhadores plataformizados também tinham jornadas de trabalho mais extensas: trabalhavam, em média, 6,5 horas a mais por semana. Assim, estima-se que o rendimento médio por hora trabalhada dos trabalhadores por aplicativo era inferior ao daqueles que não exerciam sua ocupação por meio dessas ferramentas digitais.
Ao comparar os diferenciais de rendimentos entre ocupados plataformizados e não plataformizados, é importante considerar que existem diferenças na composição desses dois grupos quanto ao nível de instrução, assim como em relação às ocupações predominantemente exercidas, especialmente no que se refere à menor proporção, entre os plataformizados, de pessoas sem instrução ou com fundamental incompleto, ou do grupamento de ocupações elementares. Quando restringimos a análise aos motoristas no transporte particular de passageiros e aos moticiclistas na atividade de malote e entrega, podemos comparar pessoas que exercem ocupações semelhantes em atividades correlatas. Nesse caso, observamos que a jornada de trabalho tanto dos motoristas de aplicativo quanto dos motoboys entregadores era, em média, mais extensa do que a jornada daqueles trabalhadores que exerciam trabalhos similares, porém não usavam aplicativos para exercer o trabalho. Para ambas as categorias, observou-se um menor rendimento-hora, em comparação aos não plataformizados em ocupações parecidas, além de que menos de 1/4 desses trabalhadores estavam cobertos por instituto de previdência.
No caso dos teletrabalhadores, não se observaram diferenças significativas quanto à jornada de trabalho, quando comparados aos ocupados que não realizaram teletrabalho. No que se refere ao rendimento, observa-se que os teletrabalhadores apresentavam, em média, rendimentos substancialmente maiores, o que se deve, sobretudo, ao perfil ocupacional desses trabalhadores e ao fato de que estavam mais presentes em estabelecimentos inseridos em atividades que pagam maiores remunerações.
IHU – Quais as diferenças percebidas entre as distintas categorias de trabalho por app?
Gustavo Fontes – A pesquisa abrangeu quatro tipos de aplicativos: aplicativos de táxi; aplicativos de transporte particular de passageiros (exclusive aplicativo de táxi); aplicativos de entrega de comida, produtos etc.; e aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais. As pessoas que trabalhavam por meio de aplicativos de transporte de passageiros, de táxi ou não, correspondem a pouco mais da metade dos trabalhadores plataformizados, ao passo que quase 40% trabalhavam por meio de aplicativos de entrega. Observa-se que os trabalhadores de aplicativos de transporte de passageiros (exclusive aplicativos de táxi) e os entregadores em aplicativos de entrega revelaram os maiores graus de dependência, em relação às plataformas, no que se refere a alguns aspectos importantes de seu trabalho, como o valor a ser recebido pelo trabalho, prazos de realização de tarefas e clientes a serem atendidos.
IHU – Um dos pontos considerados positivo pelos trabalhadores de app é a flexibilidade para conciliar o trabalho com outras atividades cotidianas, como o cuidado dos filhos, ainda que muitos argumentem que se trata de uma falsa liberdade ou flexibilidade. Como essa questão foi abordada na pesquisa? O que os trabalhadores relatam?
Gustavo Fontes – De fato, observa-se que os trabalhadores de aplicativo tinham, em média, jornadas semanais mais extensas em comparação aos não plataformizados. A PNAD Contínua investigou diferentes estratégias empregadas pelas plataformas digitais de trabalho que, em certa medida, poderiam influenciar a jornada de trabalho dos trabalhadores plataformizados, além da possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente. Observa-se que a forma mais recorrente de influência das plataformas sobre as jornadas de trabalho ocorria por meio de incentivos, bônus ou promoções que mudam os preços. No entanto, mais de 40% dos motoristas de aplicativos (exclusive aplicativos de táxi) relataram ter a jornada influenciada por ameaças de punições ou bloqueios realizados pela plataforma. Ao mesmo tempo, entre os motoristas de aplicativos (exclusive aplicativos de táxi), mais de 80% relataram a possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
IHU – Alguns estudiosos do mundo do trabalho afirmam que está se criando uma subcategoria de trabalho, com subempregos, sob uma falsa premissa de modernização. Outros veem nas plataformas novas possibilidades de trabalho, inclusive como alternativa ao desemprego. Como os dados da pesquisa sobre o que tem sido a prática laboral nos ajudam a refletir sobre essas questões? Como o senhor tem refletido sobre a atuação do trabalho via plataformas e apps?
Gustavo Fontes – O IBGE não tem a função de formular políticas públicas, mas possui um importante papel de coletar dados e disponibilizar informações que retratam a realidade do país, seja em relação à situação laboral, seja quanto a outros aspectos que impactam a condição de vida da população brasileira. As informações geradas pelo Instituto contribuem para a formulação de políticas públicas, estudos acadêmicos e a tomada de decisões por parte de gestores públicos e privados.
Quanto ao trabalho por meio de plataformas digitais, essa tem sido uma forma de inserção no mercado de trabalho e de obtenção de renda para uma parcela da população brasileira, com especial participação de adultos jovens do sexo masculino com nível médio de instrução ou com o superior incompleto. Para muitos desses trabalhadores, o trabalho plataformizado representa o seu trabalho único ou principal, sendo essa a principal fonte de seu sustento.
No entanto, há dois pontos que chamam a atenção sobre a situação de trabalho dessas pessoas. Primeiramente, ainda que os trabalhadores plataformizados sejam, em sua maior parte, classificados como trabalhadores por conta própria, tais trabalhadores possuíam autonomia e controle limitados de alguns aspectos relativos ao exercício do próprio trabalho. Outro relevante aspecto, sobretudo no caso dos condutores de veículos ou motocicletas, observa-se que uma pequena parcela dos condutores plataformizados tinham acesso à seguridade social, embora, no exercício do trabalho de condutor, possam estar expostos a acidentes ou outros riscos relacionados à sua ocupação. Portanto, a questão da contribuição previdenciária por parte desses trabalhadores é um aspecto que deve ser acompanhado.