20 Novembro 2023
A Igreja e as universidades católicas ajudarão a promover a visão teológica do papa?
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix Internacional, 16-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "o problema é como dar início a essa “revolução cultural” da teologia nas universidades (católicas). Na visão teológica de Francisco, o coração e o espírito têm um papel muito importante. Mas os nossos sistemas acadêmicos se tornaram lugares onde a desumanidade tecnocrática e uma visão ultrapragmática e transacional do conhecimento são de fato recompensadas – e os nossos estudantes veem e sabem disso. Nesse sistema, que se tornou altamente processual e burocratizado, o cerne da questão (no nosso caso, a teologia como um amor ativo a Deus em busca de um conhecimento mais profundo de Deus) pode facilmente se tornar vazia".
"Os teólogos católicos de hoje fazem parte de uma Igreja em que o papel da teologia não está claro aos olhos da instituição e até mesmo do próprio Papa Francisco, constata o teólogo. Vimos isto na primeira sessão da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade. Qual é exatamente o papel da teologia em uma Igreja sinodal? Este é um momento de mudança nas expectativas da teologia – expectativas eclesiais, acadêmicas e públicas".
A primeira sessão da assembleia do Sínodo dos Bispos sobre o futuro da Igreja trouxe à tona a lacuna que existe entre a ideia de sinodalidade do Papa Francisco e a forma como alguns teólogos católicos a entendem – mesmo aqueles teólogos que acolheram com entusiasmo seu pontificado como uma virada há muito esperada na orientação do magistério da Igreja para uma relação mais dialógica com o mundo e as “periferias existenciais”.
O antielitismo do papa jesuíta o mantém a uma distância segura dos teólogos acadêmicos. Mas, às vezes, ele fez declarações importantes sobre o papel da teologia na Igreja. Alguns exemplos notáveis incluem sua carta de 2015 ao grão-chanceler da Universidade Católica Argentina; sua publicação em 2017 da Veritatis gaudium, a constituição apostólica das universidades e faculdades eclesiásticas; e seu discurso em 2019 à Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional.
Três dias após a conclusão da primeira sessão da assembleia sinodal, Francisco também emitiu o Ad theologiam promovendam, um “motu proprio” para aprovar os novos estatutos da Pontifícia Academia de Teologia. O documento foi publicado em italiano (ainda não há traduções disponíveis) e diz respeito tecnicamente a uma academia que funciona como um “think tank” teológico com sede no Vaticano. Mas, na realidade, o texto dirige-se a toda a Igreja – aos teólogos e a todos os fiéis.
Francisco pede uma “corajosa revolução cultural”: uma teologia mais contextual, que não apenas ensine o Povo de Deus, mas também aprenda com ele. É uma teologia menos abstrata e mais pastoral. O papa diz que a teologia deve se desenvolver “em uma cultura do diálogo e do encontro entre diversas tradições e diversos saberes, entre diversas confissões cristãs e diversas religiões, defrontando-se abertamente com todos, crentes e não crentes”.
Esses incentivos estão em consonância com a habitual caracterização de Francisco como um papa progressista, que está criando uma Igreja mais acolhedora e dialógica. Mas há também outro aspecto da visão teológica de Francisco que se repete em Ad theologiam promovendam, que constitui um tipo de teste real e diferente para a nossa teologia hoje. O papa define a teologia como “um verdadeiro saber crítico como saber sapiencial, não abstrato e ideológico, mas espiritual, elaborado de joelhos, grávido de adoração e de oração”, um saber que não pode “obscurecer sua dimensão sapiencial”.
Francisco também encoraja a teologia a ser dialógica e transdisciplinar, assim como comunitária. “O diálogo com os outros saberes pressupõe evidentemente o diálogo dentro da comunidade eclesial e a consciência da essencial dimensão sinodal e comunial do fazer teologia”, escreve ele. “O teólogo não pode deixar de viver em primeira pessoa a fraternidade e a comunhão, a serviço da evangelização e para chegar ao coração de todos. [...] Por isso, é importante que existam lugares, também institucionais, nos quais se possa viver e fazer experiência de colegialidade e de fraternidade teológica”.
Esse documento convida os teólogos a serem mais contextuais, mas é uma contextualidade diferente da forma como a teologia acadêmica pós-Vaticano II a interpretou, porque implica também uma visão mais encarnacional, encarnada e testemunhal de uma profissão que também é uma vocação.
“O teólogo não pode deixar de viver em primeira pessoa a fraternidade e a comunhão, a serviço da evangelização e para chegar ao coração de todos”, diz Francisco. Mas esse tipo de fraternidade e comunhão é muito difícil (e às vezes até impossível) de incorporar na academia, nas descrições de cargos para novas seleções ou nas avaliações das realizações dos teólogos católicos.
Quem acredita que este pontificado justificou sua própria visão do catolicismo às vezes tem dificuldade de ver que Francisco está desafiando tanto os “progressistas” quanto os “conservadores”. Isso também é verdade para os teólogos. E o desafio é duplo.
Primeiro, o problema do papel da teologia hoje não diz respeito apenas à orientação ideológica “conservadores versus progressistas”, mas também institucional; isto é, sua missão no moderno mundo tecnocrático do conhecimento. Muitas universidades, até mesmo universidades católicas com programas de pós-graduação em teologia, devem agora operar em um sistema de mercado. Existem diferenças significativas entre o sistema em que as universidades são financiadas publicamente e outros sistemas mistos, e diferentes tipos de presença da teologia católica em universidades públicas ou privadas, seculares ou católicas: mas todas elas operam em um sistema de conhecimento orientado ao mercado.
O problema é como dar início a essa “revolução cultural” da teologia em tais universidades. Na visão teológica de Francisco, o coração e o espírito têm um papel muito importante. Mas os nossos sistemas acadêmicos se tornaram lugares onde a desumanidade tecnocrática e uma visão ultrapragmática e transacional do conhecimento são de fato recompensadas – e os nossos estudantes veem e sabem disso. Nesse sistema, que se tornou altamente processual e burocratizado, o cerne da questão (no nosso caso, a teologia como um amor ativo a Deus em busca de um conhecimento mais profundo de Deus) pode facilmente se tornar vazia.
Em segundo lugar, Francisco apela a essa “revolução cultural” no meio de uma mudança cataclísmica na Igreja, isto é, a transição de um catolicismo eurocêntrico a um catolicismo global. Essa transição está afetando a teologia euro-ocidental de uma forma particular. Há um número crescente de estudantes de teologia em instituições na Europa e na América do Norte que vêm da África e da Ásia, e isso está mudando lentamente a cultura nessas instituições. Em muitas instituições de Ensino Superior no mundo ocidental, há mais estudantes internacionais de teologia do que estudantes locais. Mas eles estudam uma teologia católica que ainda é em grande parte europeia e ocidental.
As escolas de teologia europeias e norte-americanas estão tentando contratar mais professores da África e da Ásia. A questão é como valorizar seu histórico original, sua formação que muitas vezes ocorreu na Europa ou na América do Norte, e as Igrejas multiculturais onde essas escolas se localizam e/ou para onde os estudantes voltarão para seu magistério e ministério.
Mas a virada do catolicismo rumo ao Sul global levanta questões também nesse mesmo Sul global. “Na África, não há nenhuma ideia da importância da teologia. Eles dizem: ‘Qual é o sentido da teologia se as nossas igrejas já estão cheias?’”, comentou um teólogo africano em um recente congresso internacional. Os católicos europeus poderiam fazer uma pergunta semelhante, mas em uma situação muito diferente: “As nossas igrejas estão quase vazias. Precisamos realmente que as pessoas estudem teologia ou precisamos de algo mais?”
Tudo isso está mudando enormemente a cultura das instituições católicas de teologia de uma forma muito profunda, mas raramente articulada em público por razões de sensibilidade dos estudantes e dos professores. Essa deseuropeização e desocidentalização da teologia católica tornou-se (ou se tornará em breve) uma questão de sobrevivência para importantes instituições de Ensino Superior. Elas não podem sobreviver apenas com estudantes de teologia vindos da Europa ou do Ocidente. Elas precisam de estudantes do Sul global.
Francisco convida os teólogos a uma “revolução cultural”, à “transdisciplinaridade” e a uma forma mais sapiencial e sinodal de fazer teologia. Os teólogos, individual e coletivamente, estão prontos e dispostos a fazer parte dessa profunda reavaliação epistemológica e metodológica? Os teólogos católicos de hoje fazem parte de uma Igreja em que o papel da teologia não está claro aos olhos da instituição e até mesmo do próprio Papa Francisco. Vimos isto na primeira sessão da assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade. Qual é exatamente o papel da teologia em uma Igreja sinodal? Este é um momento de mudança nas expectativas da teologia – expectativas eclesiais, acadêmicas e públicas.
Além disso, os teólogos profissionais trabalham em instituições que fazem cada vez mais parte de um sistema dominado por tecnocratas e administradores. Se a reorientação delineada pelo papa for levada a sério, os institutos de teologia terão de repensar seus sistemas de recrutamento, avaliação e promoção. Terão de reexaminar cursos e currículos, assim como suas declarações de missão. Mesmo que os teólogos adotem a reorientação delineada no Ad theologiam promovendam, como é que as universidades católicas – com seus patrocinadores e doadores institucionais – permitirão isso? Parafraseando Mao Zedong, essa “revolução cultural" para a teologia não será um jantar festivo.
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Francisco convida os teólogos católicos a uma “revolução cultural”. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU