17 Novembro 2023
"Enquanto 'esperamos o que não vemos', a oração, por mais fraca e incerta que seja, constitui um elemento fundamental da espera", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado no Facebook por Igreja Evangélica em Valdese, 12-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Queridas irmãs, queridos irmãos,
Esta semana, a morte irrompeu na nossa comunidade em termos particularmente violentos: o desaparecimento da jovem vida de E. e o desespero de P. e R., ou seja, de uma família com quem partilhamos a fé e a amizade durante décadas, no caso de P. desde sempre, sufoca as palavras em nossas gargantas.
É simplesmente natural que, quando a tragédia atinge não só próximo, mas no meio de nós, o nosso pensamento e também a nossa crença sofrem um abalo, que ameaça destruir as nossas convicções mais profundas e caras e, por vezes, efetivamente o faz. Cada tragédia carrega em si o peso de todo o absurdo que assola a condição humana. Um jovem morto é uma desgraça; mais de dez mil, entre os quais milhares de crianças, correm o risco de ser uma estatística, mesmo para nós. Mas o nosso desespero nos obriga brutalmente a imaginar de alguma forma o oceano de lágrimas no qual tentamos não nos afogar.
Segundo Paulo, não só os indivíduos, não só os seres humanos, mas “toda a criação estava sujeita à vaidade”, isto é, ao absurdo. O espetáculo que se apresenta diariamente aos nossos olhos e aos nossos corações quer varrer toda pergunta sobre o porquê, sobre o significado. A criação parece dar razão a todos que afirmam a inexistência de qualquer porquê e, naturalmente, de qualquer Deus. Vêm à memória as palavras de Stendahl, tantas vezes repetidas: a única desculpa para Deus é que ele não existe.
Ou talvez não, talvez a vaidade de que fala Paulo, o absurdo e a tragédia da existência, sejam de alguma forma fruto do pecado humano. Mas o que a criação tem a ver com o pecado, seja ele aquele de Adão, ou aquele do Hamas, ou de Netanyahu, ou o meu? Paulo aqui não nos ajuda. Claro, não é “por vontade da criação” se tudo é tão trágico, não é por nossa vontade. Então? Quem “sujeitou a criação à vaidade”? O apóstolo não é muito claro sobre isso, pareceria que fala do próprio Deus, mas isso corre o risco de complicar ainda mais, em vez de esclarecer. De fato, nem nós, crentes, que segundo Paulo “temos as primícias do Espírito”, ou seja, fomos alcançados, de alguma forma, pela boa nova, nem mesmo nós temos as respostas, aliás, “gememos em nós mesmos": a falta de sentido da criação, a morte absurda, a dor imotivada (mas qual dor seria "motivada"?). Aguardemos, diz o apóstolo, “a adoção”, que aqui significa “a redenção do nosso corpo”: desejemos um corpo que não seja primeiro consumido pela dor para depois ser destinado à putrefação. Desejamos isso, mas não o temos.
Ainda não o temos, afirma Paulo. Aquele da criação, de fato, é um gemido de “trabalho de parto”, um nascimento está em curso e há gritos de dor, que, no entanto, sofre numa expectativa: “que também a mesma criação será libertada da escravidão da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. A expectativa da fé chama-se “esperança”: gostaríamos de viver na liberdade dos filhos de Deus, ela, segundo o apóstolo, nos é dada como primícias, o que significa, precisamente, que somos salvos na esperança. "Esperamos o que não vemos”. Com “paciência”, diz aqui o apóstolo, mas também, havia dito, com “ansiedade”, juntamente com toda a criação. Esta, portanto, seria a fé: olhar o mundo não como um não, mas como um não ainda; escutar o gemido como expressão não de desespero, mas de espera, dolorosa, sim, mas carregada de um futuro doado por Deus, uma plenitude tal que apaga “os sofrimentos do tempo presente”.
Mas por que razão deveriam as cristãs e os cristãos sonhar com esse futuro? O que distingue o que Paulo chama de esperança da pura e simples ilusão? Não é apenas a pergunta desse ou daquele filósofo ateu, é aquela que nos fazemos neste momento, faz parte do gemido que nos percorre. A resposta é bastante simples: Jesus Cristo, tal como o encontramos nas Escrituras, encarna esse futuro, inaugura-o. Quando falamos de forma cristã sobre esperança, referimo-nos a Jesus e ao seu Deus como futuro das nossas vidas. O cumprimento de que fala o apóstolo está delineado na história de Jesus, que já agora acompanha e guia o nosso caminho.
Esse caminho é atravessado pela oração. Mas na dor dos últimos dias compreendemos bem pelo menos isto: “não sabemos orar como convém”, aliás, quando a situação se torna séria, realmente não sabemos o que dizer. A razão é simples e acredito que temos que dizê-lo, sem rodeios: não sabemos orar porque não acreditamos que seremos atendidos. Obter essa confiança, recuperar a coragem de orar, não está nas nossas possibilidades. “O Espírito ajuda as nossas fraquezas”, isto é, a nossa incredulidade; “ele mesmo intercede por nós com gemidos inexprimíveis”. Alguns pensam que Paulo imagina o próprio Espírito dirigindo-se ao Pai, como faria uma pessoa humana; outros acreditam que o Espírito intercede por meio dos nossos balbucios, ajudando-nos de alguma forma a superar o nosso mutismo. Não sabemos orar, vemos isso a cada momento; mas para o bem ou para o mal, mais mal do que bem, oramos. Essa é a obra do Espírito. Enquanto “esperamos o que não vemos”, a oração, por mais fraca e incerta que seja, constitui um elemento fundamental da espera.
Essa, caríssimos e caríssimas, é a mensagem que Deus nos dirige nestes dias difíceis. A espera pela manifestação gloriosa dos filhos de Deus tem duas dimensões: o olhar fixo em Cristo, para não nos deixarmos entorpecer pela vaidade, pela absurdez da realidade; e a tentativa de oração, tenaz, talvez até feita de hábitos, quando tudo o mais parece desmoronar. Que seja bem-vindo até o hábito, se nos mantém próximos de Cristo. Mas se olharmos para ele e tentarmos orar, como nos for possível, descobrimos que há algo ainda mais importante do que mantermo-nos próximos de Cristo, e é isto: que Ele nos mantêm perto de si, na força do Espírito, que intercede por nós. Assim seja para nós, assim seja para quem está mergulhado numa dor sem fim, assim seja para aqueles que estão esmagados pela guerra, assim seja até a gloriosa manifestação da glória dos filhos e filhas de Deus.
Amém
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O gemido da criação. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU