06 Novembro 2023
"A história pessoal do sheikh Rodrigo Jalloul exposto no livro Intrigas no Reino de Allah expõe uma face obscura de certos líderes muçulmanos, que, na esfera pública, falam sobre a paz e defendem a causa palestina, mas que na prática, discriminam e perseguem os não nascidos muçulmanos".
O artigo é de Luciana Garcia de Oliveira, mestre no Programa de Estudos Judaicos e Árabes do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP) e uma das responsáveis pela tradução de Escritos judaicos, de Hannah Arendt. É também pesquisadora associada do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo (CEJ-USP).
"Você é a melhor comunidade (Ummah) que surgiu para (o benefício da) humanidade; ordenando o que é certo e proibindo o que é errado e acreditando em Deus ..."(Alcorão 3: 110)
Muitos representantes muçulmanos, ao redor do mundo, costumam afirmar o Islã como uma religião de todos e para todos. Durante o Hajj, a peregrinação em Meca, cidade sagrada do Islã, é possível observar uma multidão de muçulmanos, de todas as nacionalidades, unidos em uma só oração, em uma perfeita consonância à definição de Ummah. Uma irmandade unida sob a orientação do Deus único, Allah. A ideia e a imagem são realmente muito belas, mas será que essa coexistência pacífica entre a comunidade muçulmana é real?
A saga de Rodrigo Jalloul durante anos de dedicação aos estudos de religião no Irã foi permeada por intrigas e perseguição política. As práticas de intimidação descritas na maior parte do livro refletem que o Dawah, a propagação do conhecimento do Islã, é incentivado até um certo ponto. Ao ultrapassar os limites “aceitáveis”, de um aprendiz, ou seja, quando um convertido passar a ter autonomia de pensamento, a imagem de coexistência pacífica cede espaço para disputas de poder e para uma competição desleal. No caso especificamente do Rodrigo Jalloul, uma competição nesse sentido, em um Estado não democrático, como o Irã, torna essa experiência muito mais nociva e perigosa.
COSTA, Renatho; JALLOUL, Sheik Rodrigo. Intrigas no Reino de Allah. Editora Viseu, 2023 (Foto: divulgação)
Antes mesmo de se tornar, de fato, sheikh, Rodrigo enfrentou, em sua longa estadia no Irã, a autoridade de nada mais nada menos que a do famoso sheikh iraniano, Mohsen Rabanni, líder religioso xiita, encarregado pelos “assuntos da América Latina”. Além de um representante espiritual, sheikh Rabanni, como era conhecido entre os seus alunos latino-americanos, é o principal suspeito de ser o mentor intelectual do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em 1994. O atentado na AMIA gera traumas profundos, entre a população argentina, até os dias de hoje.
Na manhã do dia 18 de julho de 1994, foram detonados 400 quilos de explosivos em uma caminhoneta estacionada em frente ao edifício onde funcionava a entidade em Buenos Aires. O atentado terrorista matou 85 pessoas e deixou 300 feridos. Todos os suspeitos do atentado, incluindo sheikh Rabbani, são procurados pela polícia internacional, a Interpol, até hoje.
Apesar de todas as evidências apontarem o sheikh Mohsen Rabbani como um dos responsáveis pelo atentado que matou dezenas de pessoas na Argentina, no livro é descrito o modo como Rabbani é respeitado em Qom, cidade sagrada do Islã xiita no Irã. Assim, desafiar uma liderança dessa magnitude poderia custar a vida de Rodrigo Jalloul.
No fim, como todos sabem, Rodrigo sobreviveu às constantes ameaças veladas, porém ainda detém marcas profundas em consequência de uma deportação tumultuada, envolvendo a traição de um “irmão religioso” que atua como liderança religiosa e representativa do Irã no Brasil.
O livro Intrigas no Reino de Allah descreve com muita maestria os conflitos e as disputas de poder, dentro da cena religiosa no Irã, que se repetem nos espaços sagrados do Islã no Brasil. Por aqui, a discriminação contra não árabes, em ambientes de hegemonia étnica, nas mesquitas, mussallahs e centros islâmicos, é um assunto ainda pouco difundido na academia e nos meios de comunicação.
Nesses espaços étnicos e, ao mesmo tempo, religiosos, à primeira vista são oferecidos ao povo brasileiro a melhor face do Islã, o acolhimento de uma religião, de uma irmandade universal. Contudo, a aceitação no espaço da mesquita está condicionada a aceitação implícita de algumas diretrizes e de projeto ideológicos herdados por suas lideranças religiosas.
No Brasil, de um modo geral, quem domina as mesquitas e os centros islâmicos são algumas lideranças da comunidade árabe muçulmana, sírio-libanesa, juntamente com uma agenda política pré-determinada. Quando “forasteiros” convertidos decidem se tornar autônomos quanto à imposição ideológica, passam a ser difamados, perseguidos e até excluídos desses espaços.
No caso de Rodrigo, os iranianos em Qom passaram a espalhar um boato calunioso de que seria um “espião dos Estados Unidos”. Esses boatos atravessaram muitas fronteiras até chegar ao Brasil, mais especificamente, até a mesquita do Brás e arredores de São Paulo. O racismo e a xenofobia são expostos nas palavras do sheikh Bilal Wehbe, quando, certa vez, encontrou com Rodrigo na mesquita:
“Você é brasileiro, filho de cristão com muçulmano. Então, pra você, é melhor que nem seja muçulmano, melhor que assuma o seu lado cristão. Brasileiro não tem que querer ser muçulmano, brasileiro tem de ser cristão. Você pode ver que eu mandei todos os brasileiros embora daqui. Ainda vem um aqui e ali, contra a minha vontade, mas eu coloquei todos pra fora da mesquita” (2023, p. 297).
De acordo com a imprensa brasileira, o sheikh Bilal Mohsen Wehbe, libanês naturalizado brasileiro, assumiu o posto de representação do grupo xiita libanês, Hezbollah, na América do Sul, depois que Mohsen Rabbani foi obrigado a fugir da Argentina acusado de ser o mentor intelectual do atentado contra a sede da AMIA em Buenos Aires, em 1994. O nome de Wehbe consta na lista de pessoas sancionadas pelo governo dos Estados Unidos por financiamento e suporte do terrorismo desde 2010. E que, desde então, assumiu a administração de uma mesquita tradicional, situada no bairro do Brás em São Paulo.
Em uma outra passagem, na ocasião em que o sheikh Rodrigo questiona o fato de ter sido impedido de entrar na mesquita pelo porteiro que recebia ordens superiores, o diretor da mesquita profere, enfaticamente, todo o seu racismo e xenofobia, ao tentar se defender das acusações de Rodrigo:
“O porteiro é um nordestino que ganha um salário-mínimo para ficar na portaria, não tem estudo, não é muçulmano, não é nada. Eu estou dizendo que não havia nenhuma ordem para você não entrar na mesquita. Agora, você vai acreditar em um porteiro ou em mim, que sou muçulmano, árabe como você e presidente da mesquita?” (2023, p. 338).
Os ataques racistas e xenofóbicos foram, inclusive, expostos e denunciados em uma matéria intitulada Intrigas no Reino de Allah, publicada no dia 5 de novembro de 2015, no jornal Estadão.
A segregação dos brasileiros na mesquita tornou o sheikh Rodrigo Jalloul muito popular entre os muçulmanos convertidos. A necessidade em se criar um espaço islâmico voltado, sobretudo, aos brasileiros convertidos, incentivou Rodrigo a inaugurar o Centro Islâmico Fatima Zahra, no bairro da Penha, em São Paulo. Os frequentadores, quase todos brasileiros rejeitados pela mesquita do Brás, não estavam mais dispostos a frequentar os espaços islâmicos árabes e muito menos o Centro Islâmico do Irã, situado no bairro do Ipiranga.
Ademais, o sheikh Rodrigo Jalloul tornou-se cada vez mais popular entre os não muçulmanos brasileiros. Além de realizar os sermões em língua portuguesa, é um líder religioso acessível à toda comunidade, pois todos que convivem com ele têm empatia pela sua história pessoal de superação e, principalmente, pela discriminação sofrida por parte de algumas lideranças da comunidade árabe e muçulmana no Brasil.
Mais adiante, e, sob o receio pelo posicionamento político do presidente eleito em 2018, muitos muçulmanos temiam um aumento substancial de atos de islamofobia no Brasil, encorajados por discursos de ódio. Frente à essa realidade, o sheikh Rodrigo Jalloul passou a fomentar o diálogo inter-religioso em vistas de erradicar estereótipos negativos voltados à comunidade muçulmana, principalmente à comunidade muçulmana xiita, representada pelo chamado “Eixo do Mal”, pelo Irã, Hezbollah e Síria.
Foi a partir de então que o Centro Islâmico Fatima Zahra passou a ser frequentado por líderes religiosos de outras religiões: padres, pastores, pais de santo, rabinos, etc. A proximidade entre diferentes religiões não agradou os grupos ligados ao governo iraniano instalados no Brasil. A imagem do sheikh Rodrigo Jalloul frequentemente ao lado de rabinos e de mulheres sem hijab, causou muito mal-estar entre a cúpula mais religiosa e ideológica da República Islâmica.
Por outra parte, a sociedade brasileira que, antes associava o xiismo ao radicalismo, passou a admirar as ações sociais que o sheikh Rodrigo conduzia ao lado de um padre católico, o padre Julio Lancelloti, no mesmo instante em que as associações muçulmanas boicotavam financeiramente o Centro Islâmico Fátima Zahra. Durante os dois anos de pandemia de Covid-19, ambos trabalharam, incansavelmente, lado a lado, alimentando a população de rua de São Paulo que não parava de crescer, enquanto parte expressiva da população brasileira foi obrigada a manter-se em quarentena.
As ações sociais com o Pe. Julio Lancelloti chamaram a atenção da imprensa e o sheikh Rodrigo passou a ser convidado a conceder entrevistas em telejornais, podcasts e a apresentar palestras em escolas e universidades por todo o país. Nessa altura, percebia-se que o discurso do sheikh Rodrigo destoava profundamente da maioria dos clérigos do Irã, ao defender publicamente os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+. Além disso, constantemente posava para fotos ao lado de moradores de rua, entre eles, muitas prostitutas, travestis e pessoas trans.
A popularidade das ações sociais realizadas pelo sheikh Rodrigo Jalloul, em parceria com o Pe. Julio Lancelotti, do mesmo modo, expos a ausência de prestação de assistência social, em um período de grave crise sanitária e humanitária, por parte da representatividade do Islã no Brasil. Durante todo o período da pandemia não havia promoção de assistência social ofertada pelas mesquitas e pelos centros islâmicos. Enquanto as mesquitas permaneciam fechadas na pandemia, o Centro Islâmico Fátima Zahra alimentava e abrigava moradores de rua, sobretudo nos dias de frio.
A história pessoal do sheikh Rodrigo Jalloul exposto em Intrigas no Reino de Allah expõe uma face obscura de certos líderes muçulmanos, que, na esfera pública, falam sobre a paz e defendem a causa palestina, mas que na prática, discriminam e perseguem os não nascidos muçulmanos. Afinal, de que adianta denunciar o “sionismo como uma forma de racismo” e as violações cometidas por Israel contra o povo palestino, se assim como o sheikh Rodrigo Jalloul, centenas de convertidos brasileiros experimentam discriminação e xenofobia diária dentro das mesquitas?
O livro Intrigas no Reino de Allah é muito mais do que uma biografia, mas uma obra que escancara o mau uso da religião por parte de pessoas ambiciosas que usam a religião em benefício pessoal. É sobre pessoas incapazes de cumprir com os preceitos sagrados da religião, ao negarem recursos importantes para as ações sociais voltados aos mais carentes.
O livro, por fim, comprova que ações de solidariedade e o diálogo inter-religioso transformam vidas e destroem estereótipos. Esse sim deveria ser o verdadeiro projeto de Islã.
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Intrigas, discriminação e perseguição no “reino de Alá”. Artigo de Luciana Garcia de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU