12 Dezembro 2017
Uma entrevista com os teólogos muçulmano e cristão, Milad Karimi e Karl-Josef Kuschel.
A entrevista foi editada por Britta Baas e Anne Strotmann, publicada por PublikForum, 08-12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sr. Karimi, Sr. Kuschel, como Deus vem ao mundo?
Karl-Josef Kuschel- Como cristão, eu posso facilmente encontrar uma resposta: Deus vem ao mundo, tornando-se homem no filho de Deus. Porém devo logo esclarecer que esse é um dos pontos mais difíceis no discurso interreligioso. Não mencionar o poder criativo de Deus, mas o fato que Deus tenha se manifestado em um ser humano concreto, histórico. Isso é muito difícil de comunicar. O judaísmo e o islã não conhecem similar figura.
Milad Karimi- No pensamento islâmico, Deus sempre esteve no mundo. Nunca esteve ausente. O islã nos lembra que Deus está mais perto do que nossa carótida. O islã vive dessa memória, desse apelo ao bem.
No mundo ocidental você tem a impressão que só é possível tratar sobre Deus apenas como algo "gracioso". O cristianismo – justamente nesse período antes do Natal - é uma religião bem-vinda para as crianças. Vem ao mundo um pequeno Deus, totalmente inocente e que necessita de proteção. Quem não gostaria de abraçá-lo?
Karl-Josef Kuschel- Assustador, isso é kitsch! A anunciação original é muito diferente! Nasce o Messias, pobre entre os pobres e entre os mais marginalizados. A anunciação é uma crítica radical dirigida aos governantes e poderosos. Não tem realmente nada a ver com ser "gracioso".
Milad Karimi- Que Deus se faça menino é algo que eu não posso aceitar. Mas significa muito para mim o fato de existir na pessoa de Jesus, a encarnação de um mestre. De um mestre que na sua pobreza introduz no mundo algo que representa um pensamento maravilhoso: ser humilde em relação a tudo que existe no mundo. Nesse sentido, Jesus em sua pobreza era a pessoa mais rica que se possa imaginar. Para isso, inclusive na literatura islâmica, existem muitas histórias e muitas tradições sobre Jesus que enfatizam justamente isso. Por exemplo, pelo teólogo islâmico al-Ghazali é transmitido um pensamento atribuído a Jesus: "O mundo é uma ponte, caminhe sobre ela, mas não construa nenhuma casa sobre ela".
O que vocês dizem não é o que se esperara de religião por parte daqueles que acreditam que a religião deve tornar a vida mais agradável e mais segura, por aqueles a quem o kitsch comovente do Natal aquece o coração.
Milad Karimi- Sim, exceto por essa área de "graciosidade", parece que Deus não tenha mais lugar para ficar. O conceito Deus, no entanto, é poderoso. E violento! Por isso, hoje não existe mais uma linguagem para expressá-lo. Na época de consumismo em que vivemos, Deus tornou-se parte do consumo. Isso leva a esquecer o fato de que os fundadores e porta-vozes das religiões nunca estiveram em conformidade com o espírito do tempo. Basta pensar em Jesus de Nazaré, que nunca foi um homem de seu tempo! Ele e o cristianismo eram incrivelmente não adaptados ao seu tempo. Eles não agradavam ao seu tempo. Não se adequavam ao sistema. Vamos pensar em Maomé: era um outsider, ninguém exultava por ele. Muito menos os moradores da Meca que na época estavam no poder. Mas é justamente isso que faz uma religião: não estar em conformidade com o espírito do tempo, não se submeter ao espírito do tempo, mas desafiá-lo.
Karl-Josef Kuschel- Eu chamaria isso de "resistência ao espírito do tempo". Assim, na verdade, se apresentaram ambas as religiões, o cristianismo e o islamismo. Por isso Maomé – de forma semelhante a Jesus - suscitou muita resistência em seu ambiente, porque entre outras coisas representava esse anúncio provocador: quando jazeres na sepultura, não creias que é o fim! ELE te buscará do túmulo e te colocará diante de seu tribunal. Os ricos e os poderosos não podem ter certeza de que tudo será resolvido com a sua riqueza e o seu poder. O poeta suíço Kurt Marti escreveu alguns versos que resumem isso: "Para alguns senhores seria bom se com a morte tudo foi saldado, se a senhoria dos senhores e a servidão dos servos fossem confirmadas para sempre ...". Mas agora há algo a mais que caracteriza a resistência ao espírito do tempo. É algo muito inquietante: é o terrorismo em nome de Deus. É uma experiência oposta, em uma época em que o Divino é negado ou tornado kitsch. Revive-se o terror nos confrontos de Deus.
É o Islã que na Europa é marcado como uma religião do terror. Como foi possível chegar a essa situação?
Karl-Josef Kuschel- Nós nunca acreditamos que seria possível passar por determinadas experiências. Quando, no final dos anos 1960, eu começava a estudar teologia, todos nós estávamos convencidos sobre uma teologia em reforma, com a grande palavra programática 'Pacem in Terris' do Papa João XXIII. Essa teologia universal da paz deixava claro que a religião nunca mais deveria ser explorada para legitimar o terror e a guerra! E eu pensava: agora isso será comum a todos, é uma coisa certa. Como o inferno! A violência em nome de Deus está de volta até nos centros urbanos secularizados da Europa. Para muitos que definimos como terroristas, é um grito em busca de participação.
Precisamos entender as causas profundas dessa violência. O terrorismo não cai do céu.
A Bíblia e o Alcorão são livros poderosos da história da humanidade. Basta olhar para o número de pessoas que se dizem cristãos ou muçulmanos! Porém muitos não conhecem absolutamente o seu livro sagrado. Outros leem indicações que interpretam literalmente: "Assim era, assim deverá continuar a ser feito". A formação teológica não é levada em grande consideração.
Vocês teólogos, então falharam?
Milad Karimi- Nós, teólogos, não podemos impor a ninguém os frutos do nosso trabalho. As pessoas escolhem por si próprias seus mestres. Para muitos, as religiões são prontamente aceitas em base ao que sentem: todos podem adequá-las a si mesmos. Mas as religiões são extremamente complexas. Não são fáceis plataforma para crianças. O Alcorão, de qualquer forma, não é um livro para crianças. Nele existem interferências, alusões, profecias, símbolos, metáforas. Tudo isso não está até no Alcorão, é o Alcorão! Por isso, é insidioso dizer: a minha pouca compreensão é suficiente para entender o Alcorão e me deixar transformar por ele.
Sr. Kuschel, você desaconselha ler os livros sagrados sem um acompanhamento teológico?
Karl-Josef Kuschel- Sim. De toda forma, precisamos de um ensino autêntico. As Sagradas Escrituras não podem ser compreendidas pela pessoa sozinha. Isso pode ter consequências fatais. No piores casos, pode acabar no fanatismo.
Mas nenhum de vocês quis enfrentar o problema dos terroristas que ao grito de "Deus é grande" jogam bombas.
Milad Karimi- A pesquisa mostra que a maioria desses terroristas não tem nenhuma formação teológica. Nem querem; eles são amadores. Muitas vezes provêm das ciências exatas. Em mim veriam certamente um herege que não deve ser ouvido. O que se aprende no estudo teológico universitário não é certamente o que eles querem ouvir. Ou seja, que como devoto muçulmano tu não podes te ater ao Alcorão, só podes te ater à compreensão do Alcorão.
Explique-nos isso melhor.
Milad Karimi- Há uma distância entre mim, leitor do Alcorão, e o anúncio de Deus. Nessa distância está ancorada toda a teologia, toda a religiosidade. Essa distância é um terceiro espaço onde se pode respirar. O filósofo Hans-Georg Gadamer nos mostrou que a compreensão sempre ocorre de maneira plural, ou seja, que outro pode sempre entender a Escrita sagrada de forma diferente.
Então, o Alcorão é apenas algo para estudiosos?
Milad Karimi- Não, mas sem um mestre, o Alcorão pode ensinar pouco. Na dúvida, corre-se o risco de se embrenhar pelo caminho errado.
Ler, converter-se, agir. O senhor não considera isso correto?
Milad Karimi- Eu tenho medo de pessoas que pensam que as coisas são tão fáceis. Não se colocam humildemente diante da vontade de Deus. Isso é especialmente verdadeiro para aqueles que se explodem. Naquele momento, eles se veem como a encarnação de Deus. Mas isso é uma traição com Deus, porque não há mais qualquer humildade diante de seu mistério, porque não há mais nenhuma distância saudável.
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Como Deus vem ao mundo? Entrevista com um teólogo muçulmano e um cristão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU