Sociólogo analisa o terror espalhado no território carioca nesta semana mergulhando nas questões de fundo que sustentam esta última explosão de violência
A cidade do Rio de Janeiro, mais diretamente, e o Brasil começam a semana com a respiração trancada pelo medo. Ônibus explodiam na zona oeste da cidade e uma onda de terror tomava conta das pessoas. Imediatamente, análises e mais análises pipocam com suas interpretações para esta que foi uma resposta ao assassinato de um miliciano durante operação policiais. Segundo o José Claudio de Souza Alves, para compreender o que o Rio passou na última segunda-feira, é preciso olhar para uma obscura trama entre as milícias, outras formas de crime organizado e a estrutura de Estado. “Essas manifestações milicianas partem de uma ruptura com uma prática que existia anteriormente. É possível constatar isso quando analisamos a operação da PRF e da Polícia Civil em conjunto, em outubro de 2020”, aponta.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor explica essa completa teia e observa que as reações desta semana são uma duríssima resposta ao rompimento de um dos nós desta rede que engendra milícias e estruturas estatais. “Eles estão dizendo de uma forma muito contundente que não querem ‘pagar esse pato’. Estão dizendo também que eles controlam esses territórios e, logo, se houver ataque à organização criminosa neste território, vão expor esse território ao terror”, diz.
Para Alves, vive-se um outro momento das organizações criminosas no Rio de Janeiro. “Os milicianos alcançaram uma compreensão do seu papel no jogo todo e uma recusa de se tornarem as vítimas exploradas pelo discurso político hegemônico. Eles estão ganhando uma consciência diferenciada”, compreende. E acrescenta: “estamos entrando não em um novo patamar das milícias simplesmente; é um novo patamar dos grupos armados nos acordos e conflitos entre eles”.
José Alves (Foto: João Vitor Santos | IHU)
José Claudio de Souza Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela Universidade de São Paulo – USP. É professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 26-10-2023.
IHU – Como o senhor analisa os atentados ocorridos na cidade do Rio de Janeiro no início desta semana, mais especificamente na segunda, dia 23-10-2023?
José Claudio de Souza Alves – Tudo indica que essas manifestações milicianas partem de uma ruptura com uma prática que existia anteriormente. É possível constatar isso quando analisamos a operação da Polícia Rodoviária Federal – PRF e da Polícia Civil em conjunto, em outubro de 2020, nas vésperas das eleições municipais daquele ano, ocorridas em novembro.
Eles fizeram 17 mortos em duas operações em Nova Iguaçu e Itaguaí. As mortes são de pessoas dessa milícia que nós estamos vendo agora. Na época, não houve essa resposta, essa reação da milícia. Mas, um pouco mais de dois anos depois, o que nós temos é uma resposta muito mais intensa, mais dura e mais ampla. É como se dissessem: “nós não aceitamos pagar o preço dessa estrutura de segurança pública”.
É uma estrutura de segurança pública que se transforma, que constrói as execuções, as mortes, os assassinatos como forma de a política solucionar os problemas. Eles estão dizendo de uma forma muito contundente que não querem “pagar esse pato”. Estão dizendo também que eles controlam esses territórios e, logo, se houver ataque à organização criminosa neste território, vão expor esse território ao terror.
É esse o grande recado, um recado eminentemente político. A estrutura miliciana se fortalece mesmo com as mortes, com as operações, com as prisões. Isto prova uma hegemonia dentro do cenário da segurança pública, baseada em confrontos, mortes, a máxima de que “bandido bom é bandido morto” e de guerras. Estas ações não têm gerado a solução do problema, pelo contrário, estão intensificando o problema. Por que isso? Porque você não está indo na raiz da questão.
IHU – Quem era o miliciano morto na zona oeste do Rio? Por que este assassinato desencadeou uma explosão de violência? Que relação os ataques desta semana têm com o episódio de 2020, quando a PRF e a Polícia Civil mataram 17 pessoas em Nova Iguaçu e Seropédica?
José Claudio de Souza Alves – Como falei acima, há uma cadeia sucessória dentro dessa milícia, chamada Liga da Justiça, o antigo Bonde do Ecko, que constituiu o poder de uma família, que é a família Silva Braga. Esteve no comando o Carlinhos Três Pontos, depois o Ecko e agora você tem o Luiz Antonio, o Zinho. Esse sujeito que foi morto [Matheus da Silva Rezende, miliciano conhecido como “Faustão”, morto em operação policial na segunda, dia 23-10-2023] é o sobrinho do Zinho.
A morte dele é a morte de uma liderança construída para ser o sucessor nessa estrutura de grupo armado. Por isso, a organização está dando, como já falei, uma resposta diferente à que foi dada em 2020. Em outubro de 2020, quando 17 milicianos foram assassinados em uma operação conjunta da PRF e da Polícia Civil. Agora, estão dizendo que não vão aceitar que sejam as vítimas, os mortos, os assassinados nessa estrutura toda.
Esta também é uma estrutura que conta com a presença fundamental e essencial tanto da estrutura de segurança pública do Estado como da estrutura do próprio Estado, com a presença de seus representantes no Legislativo, Executivo e Judiciário. Esses vários segmentos que compõem o Estado têm seus interesses colocados nesses territórios a partir do controle territorial armado, do controle econômico e do controle político que a milícia estabelece nessas regiões, nessas localidades.
Os poderes constituídos transformaram a estrutura miliciana numa estrutura de benefício, obtenção de ganho e perpetuação do seu poder nessas regiões. Então, como nós estamos nas vésperas das eleições, há uma sinalização por parte do governo do Estado na direção de um endurecimento. A indicação do delegado Marcos Amin para a Secretaria de Polícia acontece a partir de um casuísmo, pois eles mudaram a legislação da lei orgânica das polícias no Rio de Janeiro para emplacar o nome dele: mudaram o tempo que um policial tem que estar trabalhando como delegado em função dos interesses dos deputados estaduais. Anteriormente, você tinha que ter 15 anos como delegado para poder assumir a chefia da Secretaria de Polícia Civil. Hoje, apenas com 12 anos, que é o caso do Marcos Amin. Foi essa a mudança que fizeram.
Ele é o cara que esteve à frente da chacina do Jacarezinho. Ele é o cara que propaga a lógica do “bandido bom é bandido morto”, a lógica bélica de assassinato dos que eles chamam de bandidos. Ou seja, isso é interessante em termos políticos e eleitorais, e essa mudança ocorre agora em função do jogo de interesse na Assembleia Legislativa, com os executivos municipais e tudo mais. O que está em jogo é para o ano que vem, e a estrutura miliciana está dizendo: “nós não vamos entrar com uma bucha de canhão a ser morta para pagar esse pato, nós queremos uma outra configuração desse acordo”.
E essa é a resposta, por isso ela é tão dura, por isso ela é tão alta. Eles percebem que esse caminho é o caminho que está sendo adotado no Estado do Rio de Janeiro.
Essa é a trilha que o governo do Estado quer seguir, que na verdade é uma grande trilha de apagamento, de ocultação, de mascaramento das verdadeiras raízes da estrutura miliciana. Na verdade, estas são raízes econômicas, são raízes políticas, são raízes de controle territorial muito mais profundas e que fazem com que essas instituições que queiram ter vantagens entrem e mergulhem nessas relações com a milícia como algo vantajoso e de projeção político-eleitoral.
Diante destes fatos, vemos que a milícia quer uma outra reconfiguração. O Zinho, como liderança, quer uma outra reconfiguração. Ele quer a sua sobrevivência, a sua perpetuação. Esse é o grande recado que ele está dando. As milícias que estão hoje na zona oeste do Rio, a Liga da Justiça, também se estende pela baixada fluminense. Ela vai pegar Itaguaí, Seropédica e Nova Iguaçu. Ou seja, essa é a maior milícia que nós temos.
Só que há outras milícias com bastante poder que têm controle de outros municípios. Por exemplo, as milícias que se organizam em Belford Roxo, um município com 500 mil habitantes. Lá, as milícias que se organizam a partir de Queimados, um município menor, já com cento e poucos mil habitantes, mas também tem um peso nesse cenário, são milícias importantes de controle territorial, eleitoral e econômico que também se configura.
A colocação do Marcos Amin é uma indicação de alguém que opera com fronts armados e assassinatos nas áreas de comunidades, que elege o tráfico de drogas como o grande inimigo a ser abatido, mas que também estabelece a morte de civis milicianos como lógica de atuação dessa polícia. Ele é um influencer que fatura politicamente e fatura para aqueles que estão ligados a ele. Quem é que indicou ele para Claudio Castro [governador do Rio de Janeiro]? É Márcio Canella, que é deputado estadual e que atua com muita força em Belford Roxo, uma força associada à estrutura miliciana daquela cidade. Ele também faz parte dessa estrutura toda.
Tudo isso está em jogo, por isso o cenário ficou tão complexo. São muitos interesses em jogo, e interesses que estão disputando entre si essa base econômica e eleitoral, que se torna pequena para tantos grupos organizados.
IHU – A milícia sempre teve um modo de atuação muito particular que a diferenciava do narcotráfico. Agora, há uma relação das milícias com o Comando Vermelho. Como compreender essa aproximação?
José Claudio de Souza Alves – Eu refuto a ideia de que há uma unificação entre milícias e tráfico de drogas, que é uma lógica que tem sido construída por esse atual governo do Rio de Janeiro e pela estrutura de segurança pública. A ideia de narcomilícias é uma ideia política, é uma construção política para jogar a responsabilidade das milícias nas costas do pessoal do tráfico de drogas. Isso é uma farsa.
A milícia sempre atuou por dentro da estrutura do Estado, por dentro da estrutura de segurança pública. Ela surge, emerge com essa configuração. Ela faz parceria com a estrutura do tráfico e os dois vão operar conjuntamente na estrutura miliciana. É claro que a parte visível no chão da rua, aqueles que são sujeitos a serem mortos em operações policiais, é a estrutura civil, a estrutura que muitas vezes vai vir de origem do tráfico. E é sobre esses que vão ser jogadas descargas punitivas, como as mortes, mas também é sobre esses que são jogadas as responsabilizações, as culpas, as acusações, e de uma forma articulada, política, para se dizer que são narcomilícias.
Com isso, você livra toda a raiz miliciana que está dentro da estrutura do Estado e diz que os culpados são os outros. E, por óbvio, tem que matar esses culpados. Na verdade, narcomilícia é uma jogada político-mediática e eleitoral para se poder beneficiar com essa nomenclatura e dizer que eles são os responsáveis. Só que é mais complexo. Os civis atuam em parceria com a estrutura militarizada dentro do Estado, na área de segurança pública. Só que esses civis são os mais frágeis nessa estrutura toda.
Então, estamos vendo a reação dessa parte mais frágil, nessa articulação como um todo. Por isso, defendo que eles percebem que eles estão “pagando o pato” e eles não querem fazer isso.
Como o Comando Vermelho não tem aproximações diretas com a estrutura de segurança pública da mesma forma que a milícia, ele tem relações com a estrutura de segurança pública no pagamento do “arrego” [suborno para policiais não travarem o tráfico de drogas], nos acordos que vão fazer funcionar o tráfico de drogas.
O Comando Vermelho foi acessado por dois caminhos: foi acessado pelo próprio Zinho, para a manutenção do seu poder na disputa com os grupos milicianos que começaram a ser dissidentes dentro dessa estrutura miliciana que ele controlava. E ele passa a se valer do apoio bélico-armado do Comando Vermelho em acordos que fez. Esse foi um lado da ida para os negócios com o Comando Vermelho.
O outro lado é que a própria estrutura policial envolvida nas milícias prefere hoje fazer acordo tranquilo, claro e certo com o Comando Vermelho, do que ficar fazendo acordos com as milícias, essas milícias que têm essa presença mais civil, mas que também têm policiais envolvidos. Por quê? Porque esses policiais envolvidos permanentemente reconfiguram os acordos e visam cada vez mais ganhos. Por isso, eles preferem fazer um acordo fechado, sem modificações, com o Comando Vermelho e com ganhos garantidos do que acordos não tão consolidados, não tão firmes, mas que se fragmentam e que vão gerar cada vez mais interesses e subdivisões. Assim, a própria estrutura de segurança pública começa a modificar o seu comportamento com relação à hegemonia miliciana nesses territórios.
IHU – Como essa associação entre milícia, Comando Vermelho e outras organizações criminosas deve se desdobrar e quais os impactos no cotidiano da cidade?
José Claudio de Souza Alves – Com a ampliação do fosso social, com a ausência de políticas sociais e públicas que protejam as pessoas e garantem sua subsistência mínima, sua vida e sua integridade e com a ausência de perspectivas de futuro, cada vez mais o mundo do crime, dos grupos armados, estatais e não estatais, que representam ganhos, vantagens e soluções para a vida das pessoas, vai aumentar. Cada vez mais esses grupos vão penetrar na sociedade e ampliar seus interesses. Um grupo maior de grupos de interesses e controles territoriais, de movimentações, disputas, de verdadeiras guerras, vai se estabelecer. São guerras articuladas com estruturas políticas, com jogos de interesse, com votações, com proteção por parte do Judiciário. Então há uma complexidade cada vez maior no cenário futuro.
Como tudo isso, há uma grande nebulosa em expansão, não temos noção de todo esse universo em expansão. Estamos arranhando a casquinha da ponta do iceberg. Na verdade, trata-se de algo mais profundo e amplo, para o qual consigo olhar de forma ampla e genérica, mas não consigo ver todos os detalhes desse grande mosaico e gigantesco tabuleiro de xadrez. Cada peça movimentada, cada jogada feita, tem inúmeras implicações para o futuro e elas partem de uma base que está em modificação e transformação. Repito: é um cenário cada vez mais complexo.
Os Ministérios da Justiça e da Defesa do governo Lula não parecem dispostos a colocar a mão no sangue que essa estrutura representa no Rio de Janeiro. Eles querem uma posição mais distanciada, que não os comprometa e não traga para eles o ônus de uma política tão violenta, bruta e ineficiente. Permanece um cenário de correr atrás do próprio rabo sem solução. Na verdade, eles estão assistindo a isso, fazem discursos, dizem que vão pedir ajuda à Marinha, fazem discursos sobre operações em rodovias, portos e aeroportos, mas, na verdade, é mais do mesmo. Eles investem na mesma lógica de sempre, de política beligerante, de confronto, na lógica da guerra.
Ao perceberem a situação, tentam se preservar, não se envolvendo diretamente e não trazem nenhuma alternativa, nenhuma proposta diferenciada. Eles mantêm o discurso; o discurso de sempre, tentando se proteger ou não se envolver totalmente, ou se descolar da realidade da política de segurança pública do Rio de Janeiro e da estrutura do Estado do Rio de Janeiro como um todo. Este é o cenário do governo federal: ele encena, tenta ganhar tempo e pensar uma alternativa ou torce para que a agenda midiática se modifique, mas ela não está se modificando. Essa agenda decorre da morte dos três médicos e mergulha nesse evento de magnitude tão expressiva como foi o de ontem (23-10-2023).
IHU – Como o senhor analisa a resposta das forças policiais à explosão de violência desta semana? Qual sua análise sobre a atuação do governador Cláudio Castro nestes episódios?
José Claudio de Souza Alves – A resposta do governo Cláudio Castro já vem sendo dada desde a semana passada com a indicação de Marcos Amin para ser o secretário da Polícia Civil. A resposta deles [governador e forças policiais] é sempre reforçar o discurso beligerante do “bandido bom é bandido morto”, “nós vamos reagir”, “nós vamos matar”, “qualquer um que se contrapor, nós vamos neutralizar”. Toda a resposta é eliminar qualquer um que se contrapõe a nós.
Essa prática oculta a real dimensão do problema, ou seja, os interesses políticos, econômicos, territoriais, colocados pelos grupos armados são tratados de forma simplificada. O problema das drogas é tratado como guerra e vítima todo mundo que está nesses territórios, seja por sofrimento, morte ou dor. Essa solução bélica, que não tem eficiência nesse problema, é apregoada porque é o discurso da direita e da extrema-direita, que prega a eliminação de qualquer mal na sociedade. A construção do inimigo a ser abatido é a prática mais comum e reforçada nessa estrutura. O discurso de Cláudio Castro vai nessa direção.
Para mudar esse discurso, é preciso avançar em outras formas de política pública. A falácia da cidade integrada – que foi meramente discursiva para ganhar as eleições – não teve efetividade de alterar esse universo. Eles [políticos] só pregam isso de forma factoide para nós acharmos que existe alguma coisa diferente no cenário, mas não existe. É a manutenção do mais do mesmo.
Essa estrutura se mantém porque ela é bem-vinda para o grupo que está no poder. Ela é eficiente. Ela não é um equívoco, uma incapacidade, uma falha do Estado; é o contrário. Este é o projeto: a manutenção de uma lógica bélica de mortes, de sangue e confronto. Uma exposição midiática, expositiva e espetacular, uma exposição de vidas, mortes e sangue para a população. É uma lógica de aterrorização das populações, tanto das que sofrem nos territórios, quanto das que têm que conviver e circular nesses ambientes e dentro de um Estado tomado por essas notícias aterrorizantes.
A manutenção desse estado é interessante econômica e politicamente para os grupos que estão no poder. Eles jamais vão desmontar esse discurso e avançar em outra perspectiva. Vão manter a política hegemônica de segurança. Daí as discussões, as falas, as formas de se enxergar tudo isso. É por aí que eles estão avançando. Eles usam esse cenário para fazer uma manifestação de força e, para eles, é isso que importa. É como se fosse uma lógica colonial absoluta: dizimar qualquer grupo que se contrapõe ao meu interesse. A imagem do inimigo é construída cotidianamente pela forma como a imprensa propaga essa situação.
IHU – Com base no que temos visto e vivido no Rio de Janeiro, podemos concluir que as milícias entram em outro patamar?
José Claudio de Souza Alves – Não vejo como um novo patamar. Vejo como uma continuidade com mais eficiência, mais capacidade de articulação, que foi demonstrada com um domínio territorial mais aguçado. O que os milicianos alcançaram uma compreensão do seu papel no jogo todo e uma recusa de se tornarem as vítimas exploradas pelo discurso político hegemônico. Eles estão ganhando uma consciência diferenciada.
Ao mesmo tempo, eles quebram a lógica de um vínculo unidirecional apenas com a estrutura miliciana ou com a estrutura do Terceiro Comando [da Capital] e ampliam o leque de acordos de negócios, principalmente com a figura do Comando Vermelho. Então, na verdade, estamos entrando não em um novo patamar das milícias simplesmente; é um novo patamar dos grupos armados nos acordos e conflitos entre eles, grupos armados estatais e grupos armados não estatais, grupos estatais mistos, estatais e não estatais, que normalmente privilegiam os grupos estatais, e os civis que, neste acordo, não querem mais serem subjugados; querem também vantagens e ganhos para si mesmos.
Diante de tudo isso, esse cenário se fortalece, se amplia e será cada vez mais ampliado. Temos que ter muita atenção para enxergar os caminhos e a velocidade com que isso se desdobra. O cenário é de descrédito, de ausência de possibilidades reais para a população como um todo.
É um cenário de eleições municipais, que vai decidir o futuro do país nas eleições de 2026. As eleições de 2024 formam a base que vai estabelecer o futuro mais para frente. Essa base está sendo lançada. Na verdade, por trás do Marcos Amin está a sanha dos deputados estaduais para colocar a mão nos fundos especiais que o governador Cláudio Castro apresentou na mão deles. São 4,5 bilhões de reais de fundos especiais de aplicações de recursos que não foram aplicados nas mais diversas áreas, como habitação.
Essa verba foi enviada para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro – Alerj, para que decida a sua destinação. Isso abre a possibilidade de esse recurso ser destinado para o pagamento de salários ou investimento em áreas de interesse dos deputados estaduais. A Secretaria de Polícia Civil é apenas uma delas e daí o interesse em mudar a legislação da lei orgânica das polícias para poder colocar a mão nesse recurso. Assim será com a Polícia Militar, com a Secretaria Estadual de Polícia Penitenciária e várias outras áreas.
No fim, é a disputa pelos 4,5 bilhões de reais que estamos assistindo. É isso que o Rio de Janeiro está vivendo. Na ponta, tem um miliciano morto. Lá em cima, uma estrutura política que quer permanecer no poder. Temos que olhar tudo isso de forma integrada e compreender o que está em jogo nesse cenário todo.
IHU – Para além do Rio de Janeiro, a estrutura miliciana avança pelo Brasil?
José Claudio de Souza Alves – A estrutura miliciana já está colocada no Brasil como um todo há bastante tempo. Ela só não tem esse nome. Tem nome de jagunço, de grupos armados, de grupos armados que estão relacionados ao tráfico de animais, de madeira, de carnes exóticas, grupos armados associados a garimpeiros e à mineração, à prestação de serviço de grandes projetos, como na Bahia, onde existe o Centro Industrial de Aratu, o Polo Petroquímico de Camaçari, e um quilombo no meio de tudo isso, cruzado por oleoduto, ferrovias e rodovias. É uma região absolutamente disputada por vários capitais e grupos associados a esses capitais, que ganham com madeira, minério, transporte, com colocação de pedágios, com a travessia de ferrovias.
Enfim, a lógica miliciana que assistimos no Rio de Janeiro ocorre em outros territórios com outros nomes, movimentações e conjunturas.
O Maranhão, terra do Flávio Dino, é marcado por imensos conflitos com quilombolas, pescadores, populações indígenas. Existe um acúmulo de conflitos, morte, sofrimento, destruição ambiental causadas pelo desenvolvimento econômico naquele estado, por incrível que pareça. O desenvolvimento econômico não resolve essas questões.
Quem está por trás desse desenvolvimento e quer buscar alternativas energéticas a partir da energia eólica não está nem aí para as populações. Todo o projeto de desenvolvimento no Brasil vai trazer conflitos e sofrimento para as populações. Temos que pensar como os projetos de modernização do país se conectam com a estrutura da violência.
A violência virou a mais moderna possível porque é ela quem liquida quilombolas, indígenas, camponeses, lavradores, sem-terras. Todos esses grupos poderiam constituir uma alternativa de sociedade mais justa e igualitária, com benefícios, assistência e proteção à vida, estão sendo dizimados não pelo atraso do coronel latifundiário, mas pela modernização brasileira que vem calcada na base violenta. Os grupos econômicos se beneficiam com isso.
A milícia sabe disso e já aprendeu que esse é o caminho, e ela quer ser mais um grupo a iniciar seus ganhos. É isso que ela está fazendo.
IHU – Que caminhos podemos construir para diminuir o poder do crime organizado na cidade do Rio de Janeiro?
José Claudio de Souza Alves – Existem dois caminhos para lidar com isso e os dois são necessários. Um é de médio e longo prazo, mais complexo, e o outro é de curto prazo, com uma reestruturação absoluta da polícia, da estrutura de segurança pública, das formas policiais de controle da sociedade. Essa reestruturação tem que passar por uma modificação absoluta da sua formação. Eu achava que a desmilitarização seria suficiente. Hoje, já avalio que ela não significaria muita coisa.
Precisamos reconfigurar totalmente essa estrutura e ter um novo projeto, novas pessoas. Ao invés de investir no confronto, na letalidade, na morte, é preciso investir na vida, na proteção das pessoas. Tem que dialogar com as comunidades onde a estrutura de segurança pública está atuando. Tem que proteger as pessoas, identificar lideranças e movimentos que não estão comprometidos com a lógica dos grupos armados, e fortalecê-los. Há uma dificuldade muito grande em fazer esse processo. Mas tem que transformá-los em atores de seus próprios projetos de modificação e superação da realidade, com investimento público.
Assim, modifica-se o perfil da estrutura de segurança pública. É preciso identificar quem estaria disposto a reconfigurar essa estrutura de segurança pública, quem tem vontade política para isso e não apenas a vontade de ganhar votos com a morte dos mais pobres em favelas e periferias ou fazer show a partir das mortes. Quem é o grupo político que está disposto a fazer isso? A esquerda? O governo federal? Outras lideranças dentro do estado do Rio de Janeiro querem fazer essa modificação?
A outra alternativa é a de uma reconfiguração absoluta das políticas públicas. É preciso disputar cada jovem em cada cenário. Como se disputam esses jovens? Com políticas públicas articuladas para que eles possam se repensar em termos de concepção, de cultura, de avaliação da sua vida e do mundo ao seu redor. Para fazer esse programa tem que inverter a pauta orçamentária do governo. Em vez de dar 47% do orçamento da União para pagar dívidas de rentistas, banqueiros e empreiteiras, é preciso fazer políticas públicas para salvar a população mais pobre.
Quem vai fazer isso se a imprensa e o conjunto da população só acreditam na cantilena neoliberal que tem que desmontar o Estado, se se faz um arcabouço fiscal que determina que se vai apenas alongar o pagamento da dívida, se se mantém o teto de gastos, se não se atingem as grandes fortunas? Mantém-se o arcabouço da miséria, da segregação, da estigmatização e da violência. É isso que estamos discutindo hoje como grande pauta de modernidade do Brasil. É uma pauta invertida, uma pauta de destruição e de desmonte do Estado e da entrega dele para os que estão no poder, que contam com os grupos armados a seu favor.