03 Outubro 2023
"Se esse olhar e essa linguagem tornam a mulher um objeto, então o homem se coloca como aquele que objetiviza. Libertar o texto também liberta todos e todas as subjetividades de corresponderem a modelos de arranjos de poder que aprisionam. Redescobrir, pregar e praticar outras leituras, que reabrem os espaços da verdadeira libertação que Jesus traz, nos abre para sermos nós mesmas e nós mesmos geradores de equidade e dignidade, a começar por nós, homens e mulheres".
O texto é de Daniela Di Carlo, Eleonora Natoli, Sophie Langeneck, Letizia Tomassone, Gabriele Bertin, Sara Heinrich, Marco Fornerone, Corinne Lanoir, Anne Zell, Greetje Van der Veer, Maria Bonafede, Erica Sfredda, Gabriella Rustici, Raffaella Malvina La Rosa, e Mirella Manocchio.
O artigo é publicado por Riforma, n. 35, 15-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O sermão de abertura do Sínodo de 2023 não nos representa e gostaríamos de explicar o porquê e sobre que pontos as nossas teologias estão distantes do que ouvimos. Com essas reflexões não pretendemos criticar o pregador, mas uma leitura patriarcal que não é uma escolha, mas que tem raízes profundas na história e na teologia que não podemos superar com boas intenções, mas apenas no encontro e na discussão aberta. Nossa carta pretende ser uma contribuição para esse diálogo.
O patriarcado utiliza muitas formas de marginalizar ou mesmo eliminar as mulheres; mulheres de idades diferentes, níveis de educação diferentes, trabalhos diferentes, religiões diferentes, nacionalidades diferentes, mas que têm em comum o fato de os homens, alicerçados pela sociedade civil, tentarem silenciá-las, diminuí-las, anulá-las ou mesmo matá-las.
Uma dessas formas, só aparentemente menos graves, que desumaniza as mulheres é a sexualização de seus corpos. É um olhar que tem raízes na sociedade patriarcal.
A sexualização dos corpos das mulheres reduz as pessoas a objetos, instrumentos do desejo masculino, negando sua complexidade emocional e de conhecimento.
A sexualização dos corpos das mulheres também está presente em certas tradições teológicas. Acontece toda vez que uma mulher, definida pelo texto bíblico como pecadora, é identificada pelo intérprete como prostituta (profissional do sexo), sedutora, dispensadora de sensualidade perturbadora.
Embora não existam referências textuais que aproximem as palavras pecado e sexo, quando o sujeito da narrativa bíblica é uma mulher, tal associação é dada como certa, o que não acontece quando é um homem a ser identificado como pecador.
Toda pregação, sobre qualquer texto bíblico, parte do pressuposto de que as pessoas que estão ouvindo sejam acolhidas em sua integridade de crentes. Toda ilustração de uma personagem feminina em que o pecado seja derivado de uma suposta atitude de promiscuidade sexual não só cria uma sensação de desorientação, mas corre o risco de violentar toda pessoa que se identifica como feminina. Nessa pregação, a mulher é reduzida a uma única modalidade de comunicação: a sedução e a sensualidade.
A unção, reconhecimento da messianidade, torna-se, segundo um olhar voyeurista, um gesto mórbido. O beijo repetido, com o qual o pai acolhe o filho pródigo da parábola, torna-se um contato lascivo.
E Jesus aparece como aquele que resiste aos ataques sedutores.
Numa leitura que inclui a integridade e a complexidade do corpo feminino, em vez disso Jesus transforma o gesto suposto erótico ou sensual da mulher em um gesto de cuidado. A mulher libertada, nessa perspectiva, torna-se protagonista da unção dos pés de Jesus, acolhe Jesus e cuida dele por amor.
Numa circularidade de amor e cuidado, Jesus reconhece à mulher a capacidade de também cuidar de si mesma. Jesus a reconstitui em sua integridade físico-racional e espiritual. Suas lágrimas, então, são o resultado da transformação profunda que o encontro libertador com Jesus provoca nela. Uma leitura “libertada” em tal sentido antecipa a derrubada do poder do mundo que na cruz e ressurreição de Jesus Cristo é plenamente realizada.
Esse é para nós o centro teológico do texto. A mulher reconhecida por Jesus na sua integridade, por sua vez vê e reconhece Jesus como o Messias e assume o papel profético que Simão nega a Jesus, e que a religião não pode ter porque lhe falta visão. Isso é confirmado por um ponto de vista exegético a partir da escolha do evangelista Lucas (e dos demais evangelhos) para contar o encontro como antecipação da unção do corpo de Jesus. Jesus não acolhe esses gestos porque ele é o Messias, mas é reconhecido como o Messias também porque acolhe esses gestos transformando seu significado, derrubando assim o poder do mundo.
Essa inversão leva-nos a sair dos esquemas que julgam o certo e o errado, abrindo o horizonte do nosso olhar para além de esquemas de poder abusivos e ameaçadores, entre os quais está muito presente aquele patriarcal.
O texto evangélico restitui dignidade às mulheres perante Jesus e a sociedade. O mesmo deveria fazer a pregação sobre o texto, convidando quem tem poder e presunção a se confrontar com o juízo de Jesus e quem é esmagada a receber uma palavra que a recoloque de pé e lhe dê confiança em seus recursos e decisões.
O olhar patriarcal dos textos também molda as modalidades com que depois se tecem as nossas relações e como nos colocamos nelas.
Libertar esses textos, desse olhar, liberta também os homens de um modelo masculinista que aprisiona, opressivo e violento.
Se esse olhar e essa linguagem tornam a mulher um objeto, então o homem se coloca como aquele que objetiviza. Libertar o texto também liberta todos e todas as subjetividades de corresponderem a modelos de arranjos de poder que aprisionam. Redescobrir, pregar e praticar outras leituras, que reabrem os espaços da verdadeira libertação que Jesus traz, nos abre para sermos nós mesmas e nós mesmos geradores de equidade e dignidade, a começar por nós, homens e mulheres. Caso contrário, o olhar molda, as palavras formam, as relações e os gêneros se enrijecem e cristalizam e a libertação que vivemos não encontra espaço para dar frutos, incapaz de nos deixar viver livres juntos.
Sabemos, como igrejas, reconhecer a capacidade e o valor da pregação pública, como um espaço e uma oportunidade de ressonância do Evangelho que liberta e chama à liberdade?
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