"São Francisco nasceu em data não especificada entre 1181 e 1182 e morreu em Assis em 1226. Ele nunca quis se tornar padre ou abraçar 'um estado religioso tradicional'. Nem padre nem monge, escreve a historiadora: permaneceu um religioso 'cuja perfeição repousava apenas na conduta de uma vida exemplarmente pobre como a de Cristo'", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 27-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nicolau IV (nascido Girolamo Masci) foi o primeiro franciscano a ascender ao trono papal. Trono no qual “reinou” de 1288 a 1292. Ficou na história como o “Papa das missões” por ter enviado os seus coirmãos para catequizar Albânia, Boêmia, Sérvia e Armênia. Um dos seus emissários, o franciscano João de Montecorvino, chegou até à China. Durante o seu pontificado, São João de Acre, o último posto avançado latino na Terra Santa, caiu (no final de maio de 1291). A notícia, escreve Chiara Frugoni - no belíssimo Il presepe di san Francesco. Storia del Natale di Greccio (O presépio de São Francisco. A História do Natal de Greccio, em tradução livre) que chega às livrarias no próximo 29 de setembro pela editora Mulino -, foi acolhida com grande sentimento de prostração por parte da cristandade. Porque - embora ainda se falaria de cruzadas durante décadas (e, de diferentes formas, durante séculos) - quase todos entenderam em 1291 que aquela época venturosa tinha definitivamente terminado. Além disso, seguida por uma derrota irreparável.
Em compensação, Nicolau IV deixou à humanidade os afrescos franciscanos de Giotto na Basílica Superior de Assis. Apesar da datação incerta, os historiadores e críticos de arte são quase unânimes em atribuir essas representações ao pontificado do Papa Masci. Um Pontífice Franciscano, já mencionamos. Mas, precisamente em virtude da anterior pertença do Papa à ordem, nota-se uma estranheza, oportunamente destacada pela historiadora: no afresco os fiéis, em vez da voz do santo, escutam a voz dos frades; como se o carisma de Francisco, escreve Frugoni, tivesse sido “apagado”.
Deliberadamente. No entanto, destaca Frugoni, “estamos na igreja onde ele está sepultado”. De pregador, o São Francisco da Basílica de Assis torna-se um “ator”, “um ator silencioso, de um drama sagrado no qual participam juntos espectadores, clero e fiéis”. Por que motivo Francisco foi, por assim dizer, reduzido ao silêncio?
São Francisco nasceu em data não especificada entre 1181 e 1182 e morreu em Assis em 1226. Ele nunca quis se tornar padre ou abraçar “um estado religioso tradicional”. Nem padre nem monge, escreve a historiadora: permaneceu um religioso “cuja perfeição repousava apenas na conduta de uma vida exemplarmente pobre como a de Cristo”. Ao contrário dos dominicanos, era contra “que seus companheiros fossem doutos, estudassem, mantidos pela caridade dos devotos”. Pretendia que “os frades vivessem do trabalho das suas mãos, dedicando-se aos serviços mais humildes, especialmente o cuidado dos leprosos”. Só em 1239 é que a situação mudou, quando Alberto de Pisa, o primeiro franciscano sacerdote foi eleito ministro geral da ordem.
Deve-se levar em conta que Francisco nasceu e morreu enquanto a Igreja estava perpetuamente em armas, “envolvida em lançar cruzadas não apenas contra os muçulmanos, mas também contra aqueles que considerava hereges perigosos, os cátaros e depois contra os seus próprios adversários políticos”. E quando em 1219 Francisco chegou ao exército cruzado em Damietta não foi, como ainda hoje se escreve, para ter oportunidade falar com o sultão, “mas para mostrar aos muçulmanos - que até então só haviam conhecido a violência e a brutalidade dos guerreiros cristãos - o verdadeiro rosto daqueles que, recusando as armas da maneira mais absoluta, professavam o mandamento de Cristo".
Por outro lado, o francês Jacques de Vitry, bispo de São João de Acre, dedicava-se zelosamente às conversões forçadas. Após a queda temporária de Damietta (1219), ele anotou que havia batizado um grande número de muçulmanos. Com aqueles batismos “no lugar onde sempre se mencionava o maldito nome do pérfido Maomé, nome execrável que saiu da boca do demônio”, de acordo com Jacques de Vitry, teria sido “finalmente invocado” o nome bendito. No entanto, o próprio Jacques teve depois que perceber que muitos daqueles que vieram "espontaneamente" para o campo dos cruzados posteriormente escaparam secretamente: "a vida como cristãos era demasiado difícil" e depois de um tempo os supostos convertidos optaram novamente por seus "imundos costumes". No entanto, o Papa Inocêncio III era totalmente solidário com as ideias do bispo de São João de Acre.
Apesar de Jacques de Vitry e do Papa Inocêncio, deve ser lembrado que a alegada necessidade de lutar e matar para libertar a Terra Santa, embora fosse majoritária dentro da Igreja, teve de registrar algumas “vozes de dissidência” no passado. Por exemplo, o patriarca de Jerusalém havia manifestado fortes dúvidas, escrevendo (numa data não especificada entre 1147 e 1167) para se questionar “se era lícito aos cristãos pegar em armas e matar pagãos, considerando que Deus diz nos mandamentos: ‘Quem vive pela espada, morrerá pela espada’”.
De qualquer forma, Francisco chegou a Damietta no início do cerco e lá permaneceu pelo menos um ano. Ele foi se encontrar com os Cruzados, mas depois decidiu deixar de campo e ir com um companheiro até o adversário, apesar de lhe ter sido negado qualquer salvo-conduto. Mas tudo correu bem. Os guardas do “campo inimigo” levaram-nos ao sultão, “acreditando que fossem portadores de uma mensagem ou que quisessem tornar-se muçulmanos”. Eles se professaram “mensageiros de Deus” e especificaram que eram cristãos, “mas não cruzados”. Foi, segundo Frugoni, um “gesto extraordinário”, ao qual correspondeu a calorosa recepção de Malik-al-Kamil, que recebeu Francisco com grande honra, cobriu-o de presentes e se mostrou muito impressionado pelas suas palavras.
Impressionado pelos onipresentes escritos de Alá e pela positiva descoberta da religiosidade e da fé dos muçulmanos, Francisco teria a intenção de introduzir na Regra que todo escrito que contivesse o nome de Deus fosse tirado do chão e honrado. Além disso: “a um coirmão que lhe perguntara por que guardava com tanto cuidado até os escritos dos pagãos e aqueles que ‘certamente não continham o nome de Deus’”, segundo Tomás de Celano, teria respondido: “Meu filho, porque estas são as letras com que se compõe o nome do Deus da glória".
Não deve ter sido fácil para Francisco, escreve Frugoni, fugir das diretrizes papais, ou seja, “escapar da prescrição de pregar a cruzada como os padres faziam durante a missa". Ele nunca fez qualquer propaganda pela recuperação da Terra Santa. Aliás, opôs “uma recusa silenciosa e decidida da violência em nome de Deus, sem atacar a Igreja, mas, como era seu costume, oferecendo como exemplo o seu comportamento dissonante, isto é, uma adesão literal ao mandamento de amor e paz de Cristo". Além disso, muitos notaram como nos escritos de Francisco estejam totalmente ausentes as palavras “miles”, “militia”, “militare” e “até mesmo aqueles termos que poderiam ser ligados a uma metafórica luta contra o maligno”.
Francisco escreve: “Os frades que vão (entre os sarracenos e outros infiéis) podem entender o seu papel espiritual de duas maneiras". O primeiro “é que não se envolvam em brigas nem em disputas, mas se submetam a toda criatura humana pelo amor de Deus e simplesmente digam que são cristãos”. A outra forma “é que, quando perceberem que agrada a Deus, anunciem a Palavra de Deus para que (os sarracenos e outros infiéis) acreditem no Deus todo-poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de todos, e no seu Filho redentor e salvador e sejam batizados e tornados cristãos, pois quem não renascer na água e no Espírito Santo não pode entrar no reino de Deus”. Tais “palavras, bem como outras que sejam do agrado de Deus, podem ser ditos aos sarracenos e outros infiéis". Esse é o sentido da “cruzada” de Francisco.
A primeira biografia de São Francisco foi encomendada, em vista da sua canonização, pelo Papa Gregório IX ao franciscano Tomás de Celano. Ficou pronta três anos após a morte do santo e teve o título de Vida do Beato Francisco. Quinze anos depois, foi pedido ao mesmo Tomás de Celano para escrever uma segunda biografia (Memorial no desejo da alma, das ações e das palavras do santíssimo padre nosso Francisco) “com a embaraçosa tarefa”, escreve Frugoni, “de desmentir-se, censurar-se ou simplesmente oferecer uma nova versão”.
No primeiro livro, por exemplo, Francisco quando jovem é “uma pessoa sem rumo, desencaminhada por pais lamentáveis", fulgurado por Deus apenas em tempos posteriores. Na segunda, foi santo desde muito jovem e seus pais também eram "muito piedosos". No primeiro livro, frei Elias, vigário na época de Francisco (a quem Gregório IX confiou, logo após a morte do santo, a tarefa de erigir a grande Basílica de Assis), é apresentado em termos lisonjeiros. Na segunda chega até a ser cancelado porque desde 1239 havia se posicionado do lado de Frederico II, que entrou em choque com o Papa Gregório e, portanto, havia sido excomungado. Na primeira biografia, além disso, Tomás de Celano depositou uma série de indícios para decodificar o sentido autêntico do "sermão aos pássaros", sugerindo que os verdadeiros destinatários de Francisco eram os homens: pobres, infelizes, abandonados. Indícios que posteriormente sumiram completamente. E, em 1263, Boaventura de Bagnoregio - que se tornara em 1257 ministro geral de uma ordem naquele momento "profundamente dividida" - escreveu uma nova biografia que se tornou a única oficial e aceita pela Igreja.
Mas vamos ao “presépio de São Francisco”. Francisco escolheu celebrar o Natal representando-o apenas pela manjedoura cheia de feno entre os dois animais, deixando de fora o costume bem estabelecido de mostrar os protagonistas da natividade. Uma representação revolucionária. A manjedoura é importante, não o menino. Quanto aos animais, segundo um sermão atribuído a Agostinho, “o boi representa os judeus, o jumento os pagãos”. Ambos “chegaram a uma única manjedoura e encontraram o alimento da Palavra”. Da mesma forma, também segundo Gregório Magno, “o boi conhece o seu dono e o jumento a manjedoura do seu dono, porque também o povo judeu que venerava a Deus, mas o ignorava, o encontrou; e os pagãos receberam o alimento da Lei que não tinham”.
Tomás de Celano falou sobre o presépio de Greccio no primeiro livro e escreveu que a celebração daquele Natal ocorreu três anos antes da morte do santo, portanto em dezembro de 1223. Em 29 de novembro daquele mesmo ano, o Papa Honório III havia aprovado uma nova regra, a “Regula bullata”, que estabelecia o nascimento formal da ordem franciscana. No relato, Tomás de Celano deixa explícito que com aquele presépio Francisco queria mais uma vez observar o Evangelho e “seguir os ensinamentos e os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo”. No Natal de Greccio “o santo com as suas ardentes palavras faz com que desperte o divino Menino nos corações endurecidos e esquecidos dos espectadores, e até naquele do sacerdote que celebra a missa”. Tomás “mostra como Francisco tinha Cristo como modelo, porque aqui está em jogo a substância da regra minorítica”. O centro do relato está em Francisco, que profere e usa palavras inflamadas que poderiam ser entendidas como polêmicas contra a Igreja de sua época. E provavelmente o são.
Greccio, relata Tomás, “é como uma nova Belém”. Embora Tomás de Celano infelizmente não relate o conteúdo do sermão de Francisco. Porém, lembra de sua emoção ao pronunciar a palavra “Belém”. Como se aquela palavra “contivesse o balido de uma ovelha”.
Em Greccio, segundo a estudiosa, “Francisco pôs em cena a rejeição da cruzada e repropôs através do presépio eucarístico, do boi e do jumento” o seu projeto ecumênico de paz. Belém, segundo o santo, “estava em toda parte, desde que você a tivesse no coração, não era preciso matar para alcançá-la”. A ideia de representar visualmente o Natal através do boi, do jumento e da manjedoura cheia de feno é, segundo Chiara Frugoni, uma forma de Francisco repropor o seu “grandioso projeto ecumênico” em subtil polêmica com a “Regula bullata” de Honório III que colocava fortes limites ao projeto de vida franciscano. Quase o negava. Tanto é assim que os autores que posteriormente retomaram o evento de Greccio “preocuparam-se tanto em mudar radicalmente o seu significado quanto em implementar censuras substanciais”. Inclusive Giotto na Basílica de Assis que se conformou com o Francisco que escuta e não fala.