Fenômenos climático-ambientais têm origem antrópica; não são naturais, diz o pesquisador
"Uma das características desta tragédia que se abateu sobre a população e o ambiente dos municípios do Vale do rio Taquari-Antas é a presença de uma água lamacenta e o acúmulo de barro que foi encontrado junto a ruas, escombros e habitações afetadas pelo fenômeno. Estas características estão, em geral, associadas ao mau uso do solo da bacia, a começar a destruição da vegetação de sua cabeceira, desde os Campos de Cima da Serra, com vocação para a pecuária, que tem baixo impacto no solo mesmo com chuvas mais intensas", explica Paulo Brack, na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Segundo ele, as enchentes que destruíram cidades no Vale do Taquari serão cada vez mais frequentes e corroboram as informações apresentadas nos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC sobre a origem predominantemente antrópica dos eventos climáticos extremos. "A agricultura intensiva realizada na região provoca maior erosão e maior impermeabilização do solo, maior assoreamento dos cursos d'água e maior escoamento das águas pluviais", exemplifica. Na avaliação dele, é preciso interromper o "movimento político e econômico, no Estado e nos municípios, em reduzir ainda mais as Áreas de Preservação Permanente – APP da beira dos cursos d'água, em especial as matas ciliares, com base em lei aprovada pelo Congresso no final de 2021".
Os eventos extremos que ocorreram no Rio Grande do Sul, esclarece, também estão relacionados ao fenômeno El Ninõ, que "promove a formação de muitas nuvens de chuva no Sul e outros processos climáticos extremos". Nesse contexto, sublinha, "os alertas quanto a estes fenômenos extremos vão aumentar" e "as previsões de instituições internacionais que acompanham estes fenômenos projetam a morte de milhares de pessoas e o deslocamento forçado de dezenas ou até centenas de milhões de pessoas de regiões afetadas por fenômenos climático-ambientais, erroneamente ainda chamados pelos grandes meios de comunicação como 'naturais'".
Paulo Brack (Foto: Reprodução | YouTube)
Paulo Brack é mestre em Botânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS.
Hoje, 14-09-2023, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o evento Colapso climático no Rio Grande do Sul. Causas, desafios e perspectivas, para avaliar os eventos extremos que ocorreram na região do Vale do Taquari. Participarão do debate o meteorologista Leandro Puchalski, o climatologista Francisco Eliseu Aquino, professor do Departamento de Geografia e do PPG em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e Douglas Lindemann, da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. O evento será transmitido às 10h na página eletrônica do IHU e em seu canal do YouTube.
IHU – Nos últimos meses, ocorreram enchentes e ciclones no Rio Grande do Sul, mas fenômenos extremos também estão ocorrendo em outras regiões do globo. Como compreender corretamente esses fenômenos? Quais são suas causas?
Paulo Brack – Os relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC, principalmente a partir de 2007, vêm trazendo informações importantes, cada vez mais incontestáveis, quanto aos fatos de que os eventos climáticos extremos, como secas e tempestades fora do normal, são cada vez mais intensos e frequentes e têm origem predominantemente antrópica. Os gases de efeito estufa (ou GEE), no caso do CO2, que situava-se entre 280 partes por milhão na atmosfera (ppm), no século XVIII, elevou-se para mais de 420 ppm e não para de crescer. A temperatura média da atmosfera do planeta neste ano (2023) já é a mais elevada da história dos registros meteorológicos. No caso da Região Sul do Brasil, em especial o RS, além das secas severas dos últimos verões, associadas ao fenômeno La Niña, agora ganha destaque neste ano o fenômeno inverso, o El Niño. Este representa uma maior quantidade de chuvas no sul do Brasil, e está ligado ao aquecimento, no tocante de temperaturas acima das médias anuais, na superfície do Oceano Pacífico. Ou seja, de forma muito resumida, o El Ninõ promove a formação de muitas nuvens de chuva no Sul e outros processos climáticos extremos.
IHU – Muitos cientistas dizem que o planeta vive um novo regime climático. No atual contexto, esses fenômenos serão mais constantes? A probabilidade é que seja possível prever e minimizar seus impactos com antecedência?
Paulo Brack – Os alertas quanto a estes fenômenos extremos vão aumentar. Uma das maiores preocupações, inclusive por parte do secretário geral da ONU, António Guterres, é de que a temperatura máxima "ideal" prevista até o final do século, de 2,0 graus centígrados, conforme o Acordo de Paris realizado por 195 países em 2015, provavelmente será ultrapassada nas próximas décadas. Infelizmente, os relatórios do IPCC, da Organização Meteorológica Mundial – OMM, da NASA e de outras instituições gabaritadas em nível internacional, que vêm advertindo para cenários semelhantes ou até piores do que estamos sendo testemunhas, não estão gerando efeitos práticos nos governos e nos demais setores que conduzem as políticas públicas e econômicas em nível mundial, nacional e em âmbitos mais locais. O preparo para este fenômeno, em geral, não ocorre por parte dos governos e demais setores que deveriam tomar providências antecipadas, apesar dos alertas. Minimizar impactos requer a tomada de muitas providências, entre elas, disponibilizar condições para moradias longe das áreas de maior risco de inundações, por exemplo, e também ter um sistema de alerta antecipado às populações quanto à potencial chegada destes fenômenos. Em médio e longo prazos, cabe rever o modelo econômico das sociedades hegemônicas, que gera, sem parar, GEE, e que vem expandindo o mau uso da terra, sobretransformada em capital, e para poucos.
IHU – Qual é o impacto dos eventos climáticos para as pessoas e os territórios que são atingidos? Em termos de políticas públicas, que transformações são necessárias para enfrentar os efeitos desses eventos climáticos?
Paulo Brack – Nesta segunda semana de setembro, na Líbia ocorreu outra calamidade decorrente de chuvas excepcionais, desproporcionalmente maior do que a que ocorreu no vale do rio Taquari, e que causou milhares de mortes por lá. São situações muito traumáticas, pela forma nunca vista, onde a natureza vem respondendo a essa dinâmica atmosférica extraordinária, decorrente principalmente pelo aquecimento acima do normal da atmosfera e dos oceanos, conjugados à destruição das margens dos cursos de água e encostas das bacias onde escoa as águas das chuvas.
? ESPECIAL - MUNDO | Cinco mil mortos e dez mil desaparecidos após enchente catastrófica na Líbia. Parte de uma cidade de 100 mil habitantes sumiu. Edifícios altos caíram. Duas represas estouraram. É o maior desastre meteorológico de 2023 no planeta. https://t.co/4NTynQiEWW
— MetSul Meteorologia (@metsul) September 12, 2023
Por outro lado, as secas, as ondas de calor e incêndios associados a isso também estão se tornando mais devastadores. As previsões de instituições internacionais que acompanham estes fenômenos projetam a morte de milhares de pessoas e o deslocamento forçado de dezenas ou até centenas de milhões de pessoas de regiões afetadas por fenômenos climático-ambientais, erroneamente ainda chamados pelos grandes meios de comunicação como "naturais".
IHU – Quais têm sido as respostas locais, nas regiões do Rio Grande do Sul que o senhor acompanha, a esses efeitos climáticos? Como os governos locais costumam reagir antes, durante e depois da ocorrência de eventos climáticos?
Paulo Brack – As previsões já traziam potenciais chuvas históricas para o Estado, destacando-se os alertas da plataforma Metsul Meteorologia, em 31 de agosto e 1º de setembro de 2023, com os títulos respectivos: “Setembro começa com chuva extrema, onda de tempestades e enchentes” e “ALERTA: Chuva virá com volumes excepcionais de até 300 mm a 500 mm. Volumes excepcionalmente altos são previstos pela MetSul Meteorologia para o Sul do Brasil nestes primeiros dez dias do mês [de setembro]”. Em meados de junho de 2023, ocorreu outro ciclone extratropical e uma chuva excepcional devastadora no vale do rio Maquiné, no rio dos Sinos etc., com chuvas acima de quase 300 mm em 48 horas. Naquele mês, houve a morte de 16 pessoas, somando-se o Litoral Norte e o Vale do Rio dos Sinos. O comunicado prévio da Metsul foi desconsiderado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. O governador Eduardo Leite, em entrevista a um programa da TV GloboNews, em 6 de setembro, alegou que os modelos matemáticos de previsão do tempo não indicavam o elevado volume de chuva que atingiu o estado naquela semana. Como resposta, a MetSul divulgou uma nota pública contestando a declaração do governador, lembrando que o alerta de chuvas de 300 mm , em poucos dias, incluindo a região do rio Taquari-Antas, tinha sido dado. Ou seja, a atuação do governo do Estado se alinha com outros governos que, na prática, são negacionistas da magnitude das catástrofes climáticas e ambientais que se avizinham.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Paulo Brack – Uma das características desta tragédia que se abateu sobre a população e o ambiente dos municípios do vale do rio Taquari-Antas é a presença de uma água lamacenta e o acúmulo de barro que foi encontrado junto a ruas, escombros e habitações afetadas pelo fenômeno. Estas características estão, em geral, associadas ao mau uso do solo da bacia, a começar a destruição da vegetação de sua cabeceira, desde os Campos de Cima da Serra, com vocação para a pecuária, que tem baixo impacto no solo mesmo com chuvas mais intensas. Infelizmente, a agricultura intensiva realizada na região provoca maior erosão e maior impermeabilização do solo, maior assoreamento dos cursos d'água e maior escoamento das águas pluviais. Além disso, existe um movimento político e econômico, no Estado e nos municípios, em reduzir ainda mais as Áreas de Preservação Permanente – APP da beira dos cursos d'água, em especial as matas ciliares, com base em lei aprovada pelo Congresso no final de 2021. Soma-se a isso a tentativa de retirada da proteção legal dos campos de altitude, hoje dada pela Lei da Mata Atlântica, em Projeto de Lei do deputado federal Alceu Moreira, no sentido de permitir a expansão ainda maior da conversão desses campos em agricultura e em monossilvicutura. Há que barrar as duas iniciativas destruidoras e, ao contrário, planejar a proteção das nascentes, das cabeceiras dos rios, com pecuária em campos nativos, turismo e outras atividades que mantenham a cobertura vegetal do solo e também a das margens dos cursos d'água, em especial as matas ciliares da bacia do rio Taquari-Antas.
Há que ser lembrado que o Rio Taquari-Antas é um dos principais núcleos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica no Rio Grande do Sul, enquadrado como Patrimônio da Unesco e Patrimônio Nacional, neste bioma reconhecido pelo Artigo 225 da Constituição Federal. Ou seja, é necessário haver a revisão de todas as atividades, inclusive novas hidrelétricas na bacia, que vêm destruindo as matas ciliares e alterando a vazão dos rios. Proteger a vegetação nativa, as matas ciliares e a sociobiodiversidade, suas funções ecológicas e econômicas (serviços ecossistêmicos) e promover moradia digna, sem maiores riscos climático-ambientais à população que ali vive.