09 Setembro 2023
Com Francisco, o papado tornou-se mais representativo das vozes do “Sul global”, mas a evolução de uma ordem mundial pós-eurocêntrica durante seu pontificado levanta novos desafios para o Vaticano e a Igreja Católica.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado em La Croix Internacional, 09-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A viagem do Papa Francisco à Mongólia (de 1º a 4 de setembro) foi uma das mais fascinantes de todo seu pontificado. Foi um dos momentos deste pontificado que mais bem revelou sua visão de mundo antieurocêntrica, típica dos jesuítas, especialmente do período inicial da Companhia de Jesus nos séculos XVI e XVII.
O fascínio pelo Oriente estabeleceu importantes conexões entre os primeiros jesuítas e companheiros de viagem improváveis – do humanismo dos “Ensaios” (1580) de Montaigne ao “Ensaio sobre os Modos e o Espírito das Nações” (1753) de Voltaire – na jornada do Ocidente rumo à descoberta da diversidade de culturas e de línguas no vasto mundo fora da Europa.
Mas o pontificado do primeiro papa jesuíta surge também em um momento crucial e complicado na descoberta pela Igreja Católica de sua catolicidade e do mundo global. É uma coincidência, mas também um sinal dos nossos tempos, que a viagem mais exótica e evocativa deste papa, a da Mongólia, tenha ocorrido apenas uma semana após a reunião de 22 a 24 de agosto em Joanesburgo dos países do BRICS (Brasil, Rússia , Índia, China e África do Sul). Nessa reunião, o clube do BRICS de nações emergentes convidou seis novos países a aderir: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Destacam-se não apenas aqueles que não foram convidados nessa expansão (por exemplo, México, Nigéria, Indonésia), mas também o resultado dessa expansão dos BRICS: “Se todos os convites forem aceitos, o grupo reuniria 11 países com um população de cerca de 3,7 bilhões de pessoas, mas envolveria cinco democracias, três Estados autoritários, duas monarquias autocráticas e uma teocracia – entre eles a Arábia Saudita e o Irã, inimigos jurados até poucos meses atrás”.
Mas ainda não está claro qual será o impacto dessa ampliação, até porque “nem o G7 nem os BRICS (ampliados ou não) fazem muito sentido para enfrentar os desafios globais de hoje”.
A Santa Sé está observando atentamente essas tentativas de remodelar a ordem internacional. Com Francisco, não é mais possível ver o papa romano como o capelão do Ocidente (ou da Otan), mas como alguém que fala também – ou até mais – por outras vozes no “Sul global”. Isso se enquadra também na perspectiva demográfica do catolicismo no século XXI: há muito menos católicos europeus, e mais da África e da Ásia.
“Hoje, mais de dois terços dos 1,3 bilhões de católicos do mundo vivem fora do Ocidente, uma porcentagem que será de três quartos em meados deste século”, escreveu recentemente John Allen. “Em um mundo assim, é lógico que os instintos geopolíticos do Vaticano se assemelhem cada vez mais aos da, digamos, União Africana, ou da Índia ou mesmo dos Estados da OPEP, do que aos de Washington e de Bruxelas”, observou.
O problema é que, durante esta década do pontificado de Francisco, os países líderes nessa ordem mundial pós-europeia e pós-Estados Unidos evoluíram de uma forma que apresenta enormes incertezas para a Santa Sé. Mesmo sem falar da Argentina natal de Francisco ou da série de recentes golpes militares na África Ocidental e Central, podemos nos limitar aos países geograficamente próximos da Mongólia.
A Rússia com Vladimir Putin (reeleito presidente para um terceiro mandato em 2012 e para um quarto em 2018) adotou uma visão de mundo imperialista estalinista, baseada em uma mistura de ideias de eurasianismo, de “mundo russo”, de antiamericanismo agressivo, de confronto com o mundo unipolar e de um Ocidente “decadente” como um todo. A invasão da Ucrânia é apenas a prova definitiva disso. A Igreja Ortodoxa Russa tornou-se porta-voz do Kremlin e pária nos círculos ecumênicos.
Em 10 anos de governo do presidente Xi Jinping (secretário-geral do Partido Comunista Chinês desde 2012 e presidente da República Popular da China desde 2013), a China passou por um processo de ossificação política e de endurecimento ideológico, com cada vez menos espaço para a sociedade civil: intelectuais independentes conduzidos à clandestinidade, universidades e centros de pesquisa cada vez mais isolados de seus homólogos internacionais.
Na Índia, com Narendra Modi (primeiro-ministro desde 2014), a ideologia do hindusattva, um credo nacionalista centrado em uma visão exclusivista do hinduísmo, produziu um desvio dos fundamentos iniciais de uma Índia pós-colonial multirreligiosa. Nesses países, a situação dos católicos tornou-se mais difícil: o fato de não ouvirmos falar muito sobre isso não significa que não haja problemas.
A ordem mundial outrora imposta pelo Ocidente está em apuros. Há aqueles dentro da Igreja Católica, assim como fora dela, que aguardam ansiosamente que o Vaticano faça parte de uma nova aliança que subverta a ordem internacional existente. As razões são mais do que compreensíveis: a ordem mundial liberal está identificada com a nossa policrise – migrantes e refugiados, desigualdade econômica, mudanças climáticas e guerra.
O fato é que o Vaticano e os católicos em suas Igrejas locais em todo o mundo precisam que aspectos importantes da ordem liberal internacional sejam preservados. É indicativo que o Papa Francisco, em seu primeiro discurso de abertura de sua visita histórica à Mongólia, tenha elogiado a tradição de liberdade religiosa do país que remonta aos tempos de seu fundador, Genghis Khan.
A Igreja Católica só teve uma presença sancionada na Mongólia a partir de 1992, depois de o país ter abandonado seu governo comunista aliado à União Soviética e consagrado a liberdade religiosa em sua Constituição. Isso não é algo que se possa dizer dos outros gigantes da Ásia e dos países vizinhos: Rússia, China e Índia.
O jogo que o Vaticano e a Igreja Católica têm de jogar no tabuleiro global é agora composto por dois tipos de movimentos diferentes e opostos.
Por um lado, deve operar e trabalhar por um mundo mais multilateral, em que a Santa Sé esteja menos ligada política e culturalmente ao Ocidente – especialmente à Europa e aos Estados Unidos.
Por outro lado, o catolicismo, que “não se identifica de forma alguma com a comunidade política nem está vinculado a nenhum sistema político”, como dizia a constituição Gaudium et Spes (1965) do Vaticano II, precisa de uma ordem constitucional e política que respeite a liberdade religiosa e os direitos das minorias a fim de sobreviver nesses países (incluindo os “BRICS ampliados”).
Durante a coletiva de imprensa a bordo do voo de volta da Mongólia a Roma, no dia 4 de setembro, Francisco enfatizou o “aspecto religioso” da relação da Santa Sé com a China, para que “os cidadãos chineses não pensem que a Igreja não aceita suas culturas e seus valores, e que a Igreja não representa outra potência estrangeira”.
Em seu discurso aos bispos, padres, missionários e agentes de pastoral da Mongólia, Francisco disse: “Os governos e as instituições seculares não têm nada a temer da ação evangelizadora da Igreja, pois ela não tem uma agenda política a levar em frente, mas conhece apenas a força humilde da graça de Deus e de uma Palavra de misericórdia e de verdade”.
O problema é que, de fato, no mundo global de hoje, muitos governos têm muito a temer em relação à obra da Igreja – e nos países não ocidentais isso se expressa em políticas que muitas vezes são opressivas e violentas.
Quer os direitos à liberdade religiosa e das minorias sejam um produto genuíno da civilização ocidental ou apenas um subproduto da globalização, do qual os líderes políticos podem se livrar sem interferir no sistema econômico, é inegável que é nos países não europeus e não ocidentais que a liberdade religiosa e os direitos das minorias têm sido revertidos nos últimos anos.
Isso é algo que nunca ouvimos por parte dos ideólogos católicos (principalmente baseados nos Estados Unidos) da “revolução antiliberal”. O destino das minorias católicas nos países não ocidentais nem sempre está no centro de suas preocupações internas e de guerra cultural.
O gambito da Santa Sé implica sacrificar alguns de seus laços com o Ocidente em prol de uma Igreja Católica mais global. É um movimento necessário, não apenas diplomaticamente, mas também cultural e teologicamente – quer os países do BRICS tenham ou não um desempenho superior ou inferior no sistema econômico global e político. Mas é uma jogada que tem de ser jogada em um tabuleiro de xadrez muito complicado, com muitos jogadores que são menos previsíveis do que os do mundo secularizado pós-cristandade.
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O gambito da Santa Sé: catolicismo, BRICS e a ordem liberal. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU