01 Setembro 2023
"A identidade não deve ser pensada em termos naturais, nem antropológicos, mas sempre históricos - isto é, como o resultado, nunca definitivo, de uma contínua alternância de diferenças", escreve Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado por La Repubblica, 31-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Já há algum tempo, os cultores da identidade têm se oposto cada vez mais veementemente aos seguidores da diferença. Chega de fluidez entre gostos, cores, gêneros. O que estabelece as fronteiras de uma nação ou de uma pessoa é a sua identidade, não um conglomerado de diferenças. No entanto, não é preciso ter lido Hegel para perceber que se trata de dois termos inseparáveis. Toda identidade é nomeada pela diferença das outras e cada diferença constitui uma identidade em relação ao que não é. Se não se entende essa verdade elementar, é difícil avançar numa discussão cada vez mais ilógica. Que não diz respeito apenas à teoria. Basta pensar nas dificuldades crescentes das sociedades multiculturais, cada vez mais divididas em guetos identitários contrapostos. Se o universalismo à francesa não funciona, porque quer homogeneizar situações demasiado diferentes, nem mesmo o multiculturalismo anglo-saxão vai bem.
A única maneira de desatar esse quebra-cabeça é aceitar que a sociedade é composta de identidades e diferenças, não contrapostas, mas articuladas entre si. Qualquer carteira de identidade inclui índices – nome, profissão, nacionalidade – necessariamente diferentes.
Isso também vale, ainda mais, para os agregados políticos. Sua conotação está sempre variando, enriquecendo-se com elementos sempre novos, vindos de outros lugares. Sem essas injeções de diferença, empobrecer-se-iam e murchariam. Não apenas no plano demográfico, mas também sociocultural. Aquilo é que parece escapar às novas ideologias identitárias que despontam na Europa é que, se não forem reconhecidas num contexto comum, os interesses soberanos tornam-se tribais. Eles colidem entre si, enfraquecendo-se um ao outro. Querendo defender a identidade, rendem-se à diferença absoluta do conflito.
Quanto à Itália, os dois termos estão ainda mais interligados. É até evidente demais que há algo de peculiar que caracteriza o país. Em termos de história, geografia, cultura. Portanto, posicionar-se, sem "se" nem "mas", Contro l'identita italiana [Contra a identidade italiana, Einaudi], como faz Christian Raimo, pode parecer apressado, apesar dos argumentos válidos que utiliza. Por que razão seria que tantos estrangeiros amam a Itália, senão porque tem uma sua inegável especificidade? Mas caracterizar a identidade italiana em termos de etnia, alistando nela Dante e Leopardi, dois entre os poetas mais universais, só leva a erros históricos e filológicos.
A identidade não é um dado biológico, um molde pré-fixado, um bloco compacto, mas uma construção histórica em constante variação. Nem os problemas italianos são todos atribuíveis a uma falta de identidade nacional, como defende Ernesto Galli della Loggia em A identidade italiana [L’identità italiana, il Mulino]. No entanto, ele próprio reconhece, numa análise repleta de sugestões, que a Itália é constituída por um extraordinário tecido de diferenças ambientais, históricas e estilísticas. Marcado por uma presença muito pronunciada de influências externas, permitidas por uma forte permeabilidade cultural e receptividade a conteúdos heterogêneos.
Nada além da identidade italiana é feita de diferenças – entre terra e mar, natureza e história, tradições, dialetos, gostos diferentes e às vezes opostos. Talvez apenas a Espanha, na Europa, tenha desfrutado de tais aportes externos, gregos, árabes, mediterrâneos.
Se recuarmos ainda mais, à Renascença, o intercâmbio econômico, comercial e intelectual com países, não só europeus, foi ainda mais marcado. Como Gramsci observava de maneira problemática, o cosmopolitismo desde sempre foi um traço característico dos intelectuais italianos, para não falar da tradição da viagem à Itália que trouxe as mentes europeias mais ativas para provar a qualidade da diferença italiana. E o que dizer do policentrismo da cidade, sem igual em qualquer outro país europeu?
Que tudo isso tenha sido também o fruto, e talvez a razão, da tardia unificação política, com os problemas institucionais que decorreram, é inegável. Mas, a esse ponto, num mundo cada vez mais interconectado, não deveria tal pluralidade histórica, artística, estilística ser valorizada como uma riqueza?
Não vivemos numa condição geopolítica que exige pontes em vez de muros, especialmente com o Oriente e o Mediterrâneo?
Desde que não se pense no país como uma descendência de sangue, território confinado, memória seletiva de um passado uniforme – que nunca existiu como tal, nem mesmo se retornarmos à Roma imperial, capaz da mais aberta ideia de cidadania de todo o mundo antigo.
A identidade não deve ser pensada em termos naturais, nem antropológicos, mas sempre históricos – isto é, como o resultado, nunca definitivo, de uma contínua alternância de diferenças. Antes ainda que do exterior, a alteridade está no seu interior – é o seu recurso mais precioso. O motor da sua necessária inovação. Como escreve François Jullien em A identidade cultural não existe [L’identità culturale non esiste, Einaudi), ela não deve ser entendida como uniformidade e homologação, mas como compartilhamento de diferenças. Elas mesmas não enrijecidas em novas identidades, mas pensadas como “resíduos” capazes de fazer emergir, a partir da realidade, um novo possível.
Talvez seja necessário superar os termos de identidade e diferença, com a sua longa história ideológica, abrindo um novo espaço de pensamento, e também novas palavras descortinadas sobre o futuro.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A identidade só existe se for plural. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU