29 Agosto 2023
Karl Widerquist é doutor em Ciência Política pela Universidade de Oxford e em Economia pela Universidade de Nova York. Atualmente, trabalha como professor de filosofia política na Georgetown University e é reconhecido por suas pesquisas interdisciplinares sobre a renda básica universal.
Na Espanha, acaba de publicar Prehistoria de la propiedad privada (Bauplan, 2023), livro escrito com o antropólogo Grant S. McCall. É um ensaio contra a suposta inevitabilidade da desigualdade econômica e que utiliza provas científicas para desmantelar os mitos que chamam de “proprietaristas”, que prevalecem no pensamento político capitalista e que foram totalmente normalizados.
A entrevista é de Jorge Ratia, publicada por Ethic, 25-08-2023. A tradução é do Cepat.
O que são esses mitos econômicos “proprietaristas”?
Para começar, o proprietarista é alguém que defende o direito à propriedade privada, mesmo contra quem não tem absolutamente nada. Por exemplo, Elon Musk tem bilhões e bilhões, ao mesmo tempo em que há muitas pessoas sem-teto. Mesmo assim, parece justo que continue aumentando seus bens.
Nos Estados Unidos, pessoas assim, originalmente, são chamadas de libertárias (porque defendem a liberdade do indivíduo). Contudo, libertário também é usado para dizer o contrário, para falar de anarquistas e daqueles que dizem que “toda propriedade é roubo”. Por isso, em parte, utilizamos o termo “proprietarista” para fazer uma diferenciação no livro.
Só em parte?
Outra razão é porque, para mim, o primeiro tipo de libertários – como Elon Musk – não defende a liberdade. Quando uma pessoa se apropria de determinados recursos do planeta, interfere automática e inevitavelmente na vida de outros indivíduos e, portanto, impõem-se obrigações a esses indivíduos sem que tenham aceitado.
Qual é o mito “proprietarista” mais evidente do sistema ocidental?
A ideia de que a instituição da propriedade privada melhora a situação de todos nós, incluindo os membros mais desfavorecidos da sociedade. A principal crítica a este mito é que se baseia em uma hipótese antropologicamente falsa. É falsa a ideia – popularizada por Thomas Hobbes – de que a vida em seu estado natural é uma mistura de escassez e violência generalizadas e que é necessário o direito de propriedade como solução.
Dizia-se que era necessário um contrato social para alcançar a harmonia na civilização, e isso não é verdade. A humanidade não precisa de um contrato social para ser civilizada. Nesse sentido, os princípios de apropriação apoiam um sistema capitalista com direitos à propriedade privada muito individualistas e desiguais.
A desigualdade econômica é algo inevitável para a espécie humana?
Muitas pessoas afirmam que a desigualdade é natural para justificar as regras que a sustenta, mas são sempre apresentadas explicações contraditórias sobre o motivo pelo qual a desigualdade é natural. Por alguma razão, há uma tendência entre algumas pessoas de querer se posicionar acima de outras. No entanto, há outras que tendem a resistir a que outros inflijam sua hierarquia.
E se você olha para a evidência antropológica, esta luta se manifesta de formas muito diferentes. No passado, muitas sociedades mantiveram níveis muito altos de igualdade social, política e econômica, por períodos extremamente longos, enquanto protegiam a liberdade negativa pelo menos tão bem, quando não melhor, que as sociedades contemporâneas baseadas em direitos de propriedade.
Por exemplo, os caçadores-coletores estabeleciam que a propriedade da terra era comunal. Todos tinham acesso direto e individual aos recursos. A comida era compartilhada a ponto de que ninguém do grupo morria de fome, a menos que todos estivessem morrendo de fome. As decisões do grupo eram tomadas em conjunto. Ninguém que quisesse permanecer no grupo podia acumular uma riqueza notavelmente maior do que os outros.
A pré-história da propriedade privada pode lançar luz sobre a natureza do ser humano?
Alguns filósofos como Hobbes diziam que o homem é mau por natureza e classificavam os seres humanos como selvagens e civilizados. Para ele, o homem é selvagem por natureza, mas é possível construir um modelo de sociedade em seu se civiliza. O que descobrimos a esse respeito? Que não existe homem natural e homem civilizado. É o mesmo homem.
Muitas sociedades “selvagens” estudadas pela antropologia existiram sem o compromisso de respeitar a autoridade e, o que é mais importante, sem degenerar em um estado caótico da natureza. Este achado apresenta um dilema para a hipótese do estado de natureza inaceitável: se tais sociedades estão em um estado de natureza, o estado de natureza não é tão terrível. E se tais sociedades não estão em estado de natureza, a soberania não é a única alternativa ao estado de natureza.
O ser humano, selvagem ou civilizado, deveria ser a favor de uma renda básica universal?
A renda básica é o único sistema que realmente concede poder individual aos menos favorecidos, permitindo-lhes a sobrevivência diante de qualquer situação, mesmo quando fazem, por exemplo, greve. É possível ter uma economia onde a renda não comece do zero. Não precisamos colocar as pessoas sob a ameaça constante de ficar sem lar ou sem alimento, a menos que continue entrando dinheiro.
A renda básica universal é uma forma de parar de julgar quem é digno de comer e quem não. Não vamos julgar ninguém quando perder seu trabalho. Há uma renda básica esperando. Se alguém tiver que (ou quiser) deixar seu trabalho porque é um trabalho com péssimas condições ou por perdê-lo porque foi automatizado... Seja qual for o motivo, essa renda básica está esperando por você. É disso que precisamos agora para os problemas que temos agora. E penso que isso pode ajudar a todos.
Mas..., é financiável?
E como é financiável. Graças à automação dos processos econômicos, a economia dos Estados Unidos duplicou do final dos anos 1970 até hoje. Contudo, a maioria das pessoas que colaborou com esta ascensão econômica não compartilhou nada, e isso significa que quase todos os benefícios dessa duplicação ficaram com os 1-2% das pessoas mais ricas. São os únicos que, em termos reais, são mais ricos do que antes.
A classe média continua sendo classe média, embora a economia tenha crescido. Com isso, quero dizer que existem recursos mais do que de sobra para financiar uma renda básica universal, dado que uma porcentagem muito pequena de pessoas acumula mais recursos do que todo o resto da humanidade. Só é preciso criar um sistema de impostos que não permita que as grandes fortunas sejam monopolizadas sem limites. Não me refiro a taxar aqueles que podem pagar uma universidade privada ou um veleiro, mas, sim, às grandes fortunas de verdade, aos magnatas bilionários.
Na Espanha, os resultados das últimas eleições refletem que existe uma grande polarização entre os defensores do público e do privado, ou seja, entre o intervencionismo e o liberalismo. Quais são os prós e os contras da privatização de setores como o educacional, o energético e o sanitário?
A grande vantagem da privatização desses setores, pelo menos a razão pela qual existe nos Estados Unidos, é que alguns ricos podem fazer dinheiro com isso. Veja, nos Estados Unidos, gasta-se o dobro do dinheiro em saúde em comparação com grande parte dos países da Europa ocidental. E não temos um sistema melhor.
Quando se privatiza a saúde, por exemplo, o governo não protege os indivíduos em geral. As pessoas têm que comprar seu seguro saúde e pagá-lo todos os meses. Além disso, boa parte do que é investido nem sequer é destinado diretamente ao serviço de saúde, mas é utilizado para administrar a papelada de quem pagou ou deixou de pagar naquele mês... E para publicidade!
Nos Estados Unidos, são gastas enormes quantias para promover serviços de saúde. Portanto, saúde privada significa pagar mais por um serviço igual, com a desvantagem de que muitas pessoas sem possibilidades econômicas ficarão desamparadas e não poderão ser atendidas.
Se a única coisa positiva a respeito da privatização é que ela beneficia uns poucos ricos, por que é que tantas pessoas da classe média a apoiam?
Na psicologia, isso é conhecido como a ideologia da justificação do sistema. Quer dizer que as ideias que favorecem os privilegiados tendem a ser populares, mesmo entre aqueles que não são privilegiados. Por quê? Porque ficamos encantados em sentir que pertencemos a um setor seleto da população, e quanto mais privilégio se tem, mais poder se tem para controlar a propriedade privada.
Além disso, existe a necessidade de ordem e estabilidade e, portanto, a resistência à mudança pode ser um motivador para que as pessoas vejam o status quo como bom, legítimo e até desejável.
Estou falando com alguém que deseja o retorno de Marx e Engels?
Não necessariamente. Do meu ponto de vista, eles diagnosticaram muito bem os problemas do capitalismo, mas não encontraram uma solução a esse respeito. A ditadura do proletariado em nada é convincente.
É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
Sou daqueles que acreditam que o futuro é incrivelmente difícil de prever. Ninguém sabe o que vai acontecer. Além do mais, o curso de nossa história está marcado por acontecimentos que ninguém esperava.
Outro grande elemento impulsionador da sociedade que temos são os líderes cometendo erros. Os líderes políticos não estão aí sob o comando de uma conspiração gigante, nem operam para satisfazer continuamente seus próprios objetivos. Os líderes estão aí tentando realizar uma missão e cometem um montão de erros.
O futuro é inevitavelmente incerto. Sobre o capitalismo… Há tempo matamos o planeta que nos mantém vivos e, ao mesmo tempo, estamos criando uma ciência melhor e formas de fazer as coisas melhores. Estamos em uma corrida contraposta entre o que está indo melhor e o que estamos sobrecarregando. Não sabemos se vamos nos extinguir antes de mudar o sistema, mas sempre temos uma oportunidade de começar a fazer melhor as coisas.
Você tem propostas concretas para não imaginar, mas, sim, criar o futuro que gostaria?
Tenho ideias, claro, mas sou melhor pesquisando e escrevendo a respeito delas do que na execução. Se esse fosse o meu forte, eu teria entrado na política. No desenvolvimento de uma sociedade desejada, cada um participa de seu campo, e o campo onde estou agora, a antropologia, é dito que é “a ciência da possibilidade”.
Meu trabalho, especialmente com este livro, não é propor qual é o melhor sistema, mas, sim, quais alternativas existem e o porquê o sistema estabelecido não é o único, nem o melhor. Dito isso, penso que temos que começar a respeitar a independência das pessoas. Devemos parar de julgar.
Sempre buscamos a desculpa perfeita para desrespeitar alguém e assim nos sentirmos melhores conosco mesmos. Contudo, meu pensamento é que também devemos parar de fingir que temos um verdadeiro contrato social e que todo mundo está a bordo e se beneficiando dele. Criamos uma sociedade em que aqueles que possuem propriedade privada são mais livres do que aqueles que não a possuem, e a liberdade, para efeitos práticos, deveria ser a mesma.
Por isso, um primeiro passo necessário é a redistribuição da riqueza. Sem dúvida, uma hipotética sociedade mais coerente com a proteção de todos os indivíduos contra a violência, a coerção e a interferência precisará encontrar alguma forma de garantir que cada indivíduo tenha acesso direto e incondicional aos recursos necessários para sobreviver.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A renda básica universal é uma forma de parar de julgar quem é digno de comer e quem não”. Entrevista com Karl Widerquist - Instituto Humanitas Unisinos - IHU