22 Agosto 2023
"No caminho aberto pela teóloga argentina Marcella Maria Althaus-Reid, a teologia queer não deve limitar-se a recortar um pequeno espaço para si na ecclesia, fora do qual parece não haver salvação. Muito mais do que isso, deve tornar-se parte ativa de uma crítica mais ampla às condições de desigualdade produzidas pelo capitalismo, pelo velho patriarcado com seu modelo de família nuclear e pelo imarcescível regime de heteronormatividade obrigatória".
O comentário é de Mariano Croce, professor de filosofia política na Università degli Studi di Roma La Sapienza, em artigo publicado por Domani, 20-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Algunes* parecem estranhar que quem que se declara explicitamente queer – é o caso, entre outros, de Michela Murgia – possa desejar um funeral de rito católico. E imagino que fiquem ainda mais surpresos com o fato de pessoas queer aspirarem a algum relacionamento com Deus, conforme recomendado pelos protocolos oficiais das várias igrejas cristãs. Claro que tal espanto não surpreende quem aqui escreve, se é verdade como é verdade que alguns movimentos cristãos e católicos, como o famoso ProVita & Famiglia, propõem um afresco de teorias queer que, em termos de tons e nuances dramáticas, pareceria adaptar-se melhor às concepções exibidas entre 1923 e 1945 no Völkischer Beobachter.
No entanto, de acordo com as visões úteis para as polêmicas cotidianas, a vida espiritual e litúrgica das pessoas queer vai muito além da difícil relação de exclusão, tolerância ou negociada inclusão que está sendo debatida. Por exemplo, no campo dos estudos teológicos existe uma linha, marginal, mas não invisível, que atende pelo nome de “teologia queer” e que, por conveniência expositiva, eu gostaria de aqui distinguir em dois tipos: apologética e crítica.
A apologética queer se baseia em um dado exegético que é irrefutável em muitos aspectos: muitos dos teólogos do cristianismo primitivo consideravam gênero e sexualidade questões completamente insignificantes, efêmeras camuflagens da alma a serem definitivamente aposentadas por ocasião da Segunda Vinda.
A apologética defende as posições das minorias sexuais nas igrejas por meio de uma contraexegese de textos sagrados e uma hagiografia alternativa para sinalizar os vistosos traços de existência queer na história da igreja.
Portanto, “traduz” em termos mais próximos de nossa linguagem atual as passagens bíblicas aparentemente mais severas sobre questões de gênero e orientação sexual – como a destruição de Sodoma e Gomorra no Gênesis 19, as duas proibições no Levítico 18 e 20, as palavras de Paulo em Romanos 1, em 1 Coríntios 6 e em 1 Timóteo 1. Isso para mostrar como as palavras daqueles escritos antigos não podem ser lidas, sem mediação, por meio de categorias modernas: os redatores de milhares de anos atrás não possuíam aquelas ideias sobre sexualidade, homossexualidade e família, cujo filtro aplicamos hoje aos textos sagrados.
Essa exegese “da atualidade” é acompanhada pela valorização do cânone “inverso” dos santos queer, figuras oficialmente canonizadas pela Igreja Católica cuja vida sexual exibe pouca casta ambiguidade. Basta pensar nos santos Sérgio e Baco, soldados romanos e mártires cristãos do fim do século III, venerados pelos católicos queer como modelos de amor homossexual no cristianismo primitivo. Ou nas santas Perpétua e Felicidade, mártires egípcias do século II, conhecidas por sua ligação amorosa.
Ou ainda em Joana d'Arc em uniforme masculino, venerada como precursora da inconformidade de gênero, uma das muitas categorias de sexualidade codificadas nos estudos atuais.
De acordo com algumes teólogues queer um pouco mais radicais, no entanto, a apologética foi útil no passado, mas para os nossos tempos é demasiado tímida e covarde. No caminho aberto pela teóloga argentina Marcella Maria Althaus-Reid, a teologia queer não deve limitar-se a recortar um pequeno espaço para si na ecclesia, fora do qual parece não haver salvação. Muito mais do que isso, deve tornar-se parte ativa de uma crítica mais ampla às condições de desigualdade produzidas pelo capitalismo, pelo velho patriarcado com seu modelo de família nuclear e pelo imarcescível regime de heteronormatividade obrigatória.
Cristo, segundo tal interpretação, é símbolo e exemplo da ruptura de uma ordem que oprime.
Essa linha mais combativa dá origem a movimentos sociais que lutam por uma igualdade menos formal ou por uma ecologia política mais corajosa a partir de uma leitura – idiossincrática, mas muito precisa e robusta – daqueles mesmos textos que outres leem como um veredito de eterna condenação para todas as sexualidades não heterossexuais.
Obviamente, aqui não se releva a capacidade de resistência das diversas atividades de exegese bíblica, sobre as quais aquele que escreve não tem nenhuma competência para se expressar. Ao contrário, releva a existência em si de um campo de pesquisa, que vem sendo cultivado e ensinado há décadas em poucas, mas prestigiosas instituições universitárias ao redor do mundo – uma existência a meu ver útil em si mesma para entender como, pelo menos no momento, o Todo-poderoso não aspire ao papel de guia da direita reacionária (e talvez nem mesmo a papel de guia).
* No presente texto mantemos a linguagem inclusiva usada pelo autor. Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Deus também é das pessoas queer. A teologia entre apologia e crítica que constrói um novo cânone. Artigo de Mariano Croce - Instituto Humanitas Unisinos - IHU