18 Julho 2023
O caso de Marko Rupnik coloca no foco uma grande questão, amplamente evitada: qual pode ser hoje a relação entre a Igreja e a arte?
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado por Il Fatto Quotidiano, 17-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Talvez nunca tivesse acontecido que um único artista conseguisse estar, não com seu estilo (o fizeram Donatello, Michelangelo, Canova: e Bernini acima de todos), mas precisamente com suas obras (mais de 220, algumas realmente grandes) no espaço litúrgico de todos os continentes: pois bem, o jesuíta esloveno Rupnik conseguiu graças a uma indiscutível capacidade empreendedora e, sobretudo, ao favor dos últimos três papas. Da capela Redemptoris Mater no Vaticano aos santuários de Lourdes e Fátima, da catedral de Madrid aos santuários dedicados a São João Paulo II em Cracóvia e em Washington, do santuário de Aparecida no Brasil à Igreja de Nossa Senhora do Cruzeiro do Sul em Brisbane, milhares e milhares de católicos celebram a Eucaristia diante das figuras, todas iguais, que saíram da fantasia e da teologia do Padre Rupnik.
Há alguns meses, porém, começaram se infiltrar as primeiras dúvidas sobre esse tipo de arte oficial do catolicismo do século XXI. O que as fez emergir foi o pior dos motivos: o testemunho unânime de mais de vinte mulheres e o tenaz trabalho jornalístico de Federica Tourn no Domani acusaram o famoso artista-teólogo de abusos psicológicos e sexuais, perpetrados, durante décadas, por meio de sua influência como diretor espiritual. Seu ex-superior jesuíta Johan Verschueren declarou que a credibilidade das acusações "é muito alta": para alguns abusos houve um veredicto de culpado pela Ordem, e, portanto, uma série de medidas da Congregação para a Doutrina da Fé (que informou, por exemplo, que Rupnik tinha incorrido na excomunhão por ter confessado e absolvido uma de suas vítimas). Após o agravamento do quadro (algumas mulheres relataram ter sido induzidas a relações a três "em homenagem à Trindade" e outros absurdos), no último dia 9 de junho, o artista foi expulso da Companhia de Jesus, e foi revogado seu título de doutorado ad honorem da Pontifícia Universidade do Paraná.
Diante dessa catástrofe, começamos a nos perguntar se é possível deixar suas obras onde estão: por exemplo em Lourdes, onde se dirigem para rezar justamente as vítimas de abusos do clero. Há alguns dias, vazou do Vaticano a notícia de que uma reunião do Dicastério das comunicações supostamente teria estabelecido “que nada impede o uso continuado dos mosaicos de Rupnik: a obra de arte deve ser julgada por seus próprios méritos, e deve ser dissociada da vida pessoal do artista".
A segunda parte da frase, tão leiga e secular, abre uma interessante e notável série de problemas. Nenhuma obra seria removida de um museu por causa dos crimes de seu autor (pelo menos dentro de certos limites, amplos, mas não inexistentes): mas uma igreja não é um museu. Proclamando Beato Angélico padroeiro dos artistas, João Paulo II disse que "Cristo fala da 'luz das obras boas'”. Indo mais longe - na esfera da vocação artística - poder-se-ia falar com razão da “luz das obras humanas”. Essa luz é a beleza; beleza de fato, como “esplendor da forma”, é uma luz particular do bem contida nas obras do homem-artista. Mesmo por esse ponto de vista, pode-se compreender e interpretar a frase de Cristo...: "Assim como toda árvore boa produz frutos bons e toda árvore ruim produz frutos ruins; uma boa árvore não pode produzir um fruto ruim, nem uma árvore ruim, um fruto bom. Qualquer árvore que não produz frutos bons é cortada e jogada no fogo. Pois uma árvore é conhecida pelos seus frutos”… A Igreja apresenta o mesmo convite à meditação de todos os artistas ao dizer: procurem uma adequada proporção entre a beleza das obras e a beleza da alma”. Palavras que não podem deixar de pesar, hoje, como pedregulhos.
Mas é a primeira parte do resumo das posições do Vaticano que é realmente interessante. Quais são os méritos da arte de Rupnik? No famoso discurso de Paulo VI aos artistas (1964), a Igreja reconhecia suas deficiências em relação à arte do século XX: “Nós também andamos por becos transversos, onde a arte e a beleza e – o que é pior para nós – o culto a Deus foram mal servidos”. Pois bem, os mosaicos de Rupnik, que partem dos ícones bizantinos (mas que na realidade carecem completamente de sua capacidade de revelar, e fazer sentir presente o Protótipo) para homogeneizá-los em uma produção serial de tipo pop art que não tem realmente nada de espiritual, pertencem à patologia descrita por Montini, ou são a sua cura?
Será que aquelas figuras todas semelhantes, com inquietantes pupilas escuras, são realmente uma abertura para a arte de hoje, ou são um substituto curial imposto por Roma a todo o catolicismo, matando aquela diversidade, aquele ser pessoal, que é inseparável do fazer arte? É sobre tudo isso que, finalmente, se deveria discutir.
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O caso Rupnik e o Vaticano: questões sobre a arte sacra. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU