14 Julho 2023
"Dois mil anos de cristianismo mostram-nos, em cada confissão e em cada configuração institucional, a evidente impossibilidade da fé de transformar o poder em gentileza. Mas também nos mostram o fracasso do Evangelho, pelo menos no que diz respeito à moderação da violência do poder que ele, historicamente, ainda assim permite"
O comentário é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 05-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre os recentes acontecimentos eclesiais e a proximidade da primeira sessão do Sínodo sobre a sinodalidade, torna-se cada vez mais urgente a necessidade de iniciar uma desapaixonada análise crítica do poder.
Marco Ronconi destacou o perigo e a ambivalência da retórica (eclesiástica) do poder entendido como serviço. Uma explicitação similar só é possível ao inefável Deus e, sob determinadas circunstâncias históricas, ao seu logos filial feito carne. No tempo da história humana e de suas instituições, a possibilidade do serviço como forma de exercício e expressão do poder é uma questão escatológica. Será assim só no final dos tempos.
Enquanto estivermos dentro do tempo e da história, só são possíveis migalhas, esboços, fragmentos de um poder como serviço. Em torno dessa confusão está todo o grande resto do poder que se concretiza de acordo com sua própria natureza. E aqui também a reflexão de Ronconi nos ajuda: o poder é violento por natureza (põe limites, define espaços, criam um dentro e um fora, e assim por diante).
Dada a reserva escatológica indicada acima, a violência do poder é a forma de seu exercício mesmo naquela instituição que chamamos de Igreja. Quando essa violência aparece não nos deveríamos escandalizar em demasia, de fato o poder (mesmo na Igreja) segue assim o curso de sua natureza.
Na verdade, é o oposto que é verdadeiro: a forma mais gentil possível de poder representa uma exceção que causa surpresa; um seu deslizamento em relação ao sentido que o habita. Uma migalha de delicadeza submersa em um oceano de violência. Tudo isso, na Igreja, achamos muito difícil de aceitar - por muitos e diversos motivos.
Mas ninguém está imune a isso: no momento em que desejo uma Igreja hospitaleira, como instituição, aberta e acolhedora independentemente das condições e estados de vida das pessoas, inevitavelmente exerço violência contra quem imagina e sente a Igreja de maneira diferente.
Para nos consolar, e nos imunizar dessa violência intrínseca do poder, consolamo-nos dizendo que esta Igreja que imaginamos é a mais próxima do Evangelho ou da verdade de Deus (dependendo de que lado nos colocamos). Assim justificamos o inevitável exercício violento do poder necessário para a realização do nosso desejo sobre a comunidade do Senhor. Por ser justificado histórica ou ontologicamente, fingimos que o exercício segundo verdade do poder não gera violência. Mas não é assim.
Em uma entrevista recente, Johanna Rahner (professora de teologia sistemática e ecumenismo em Tübingen) afirmou que a participação batismal no sacerdócio comum implica uma transmissão do poder de liderança na Igreja aos leigos. A transparência do silogismo é impecável, assim como sua verdade. Mas isso ainda não resolve a questão nem da violência intrínseca do poder nem de sua moderação - e certamente não produz por si só uma forma moderada de seu exercício.
A ideia de que a simples passagem do poder de uma mão para outra, de um estado de vida cristão para outro, garante uma contenção de sua natureza violenta beira o pensamento mágico. E sobretudo permite remover ainda mais o fato de que mesmo o poder segundo o bem e a verdade ainda assim é violento.
Disso o convite, repetido várias vezes na Itália por Stella Morra e por muitas outras teólogas do país, para dar a palavra àqueles que, ao longo dos séculos, sofreram aquela violência do poder eclesial. Pobres, mulheres, marginalizados, pessoas que vivem relações homoafetivas ou aquelas que têm uma identidade sexual fluida, divorciados recasados... a lista seria longa se percorrêssemos o curso milenar da história da Igreja Católica.
E este poderia ser um ponto de partida: a narração da violência infligida pelo exercício do poder em nome do Deus de Jesus e do Evangelho. E isso não como perversão da intenção de Deus ou do destino do Evangelho, mas como algo conatural mesmo quando se tem essas referências – justamente porque se trata de poder. O problema, supondo que realmente consigamos chegar a esse ponto, é como manusear a pérola preciosa dessa narrativa do poder que recai sobre as vivências.
O que fazer com ele, uma vez que se tornou um bem pelo menos parcialmente partilhado dentro da comunidade do Senhor? É necessário um olhar sábio para o resultado inverso de tantos processos históricos de libertação, com sua inevitável aura messiânica. O libertador que se torna tirano, os oprimidos que na justa reivindicação de seus direitos se tornam carrascos, são todos capítulos da nossa história humana.
Não deveria ser assim entre vocês! Excelente, lindo, até poético – mas como deveria ser então? Imaginar que o oprimido, por natureza, seja imune ao exercício do poder (e, portanto, da violência) é apenas o outro lado da moeda da retórica (agora insuportável) que chama de serviço o exercício do poder na Igreja.
A pretensão de qualquer suavização do poder, que induza ao seu exercício gentil, portanto não violento, deve ser encarada com extrema desconfiança - porque no momento em que se fala de gentileza já não se fala mais de poder (que, em todo o caso, continua sendo um imenso resto indomável).
Dois mil anos de cristianismo mostram-nos, em cada confissão e em cada configuração institucional, a evidente impossibilidade da fé de transformar o poder em gentileza. Mas também nos mostram o fracasso do Evangelho, pelo menos no que diz respeito à moderação da violência do poder que ele, historicamente, ainda assim permite.
E esse deve ser o ponto de partida de toda a reflexão – teológica e eclesial, tanto na partilha da natureza violenta do poder como no fracasso do Evangelho em ser seu eficaz anteparo.
A história das instituições pode nos ajudar, porque mostra que uma moderação do exercício do poder e uma sua limitação são historicamente possíveis. Também nesta história podemos encontrar formas coletivas de governo da comunidade, que nos permitem imaginar uma democracia diferente daquela representativa - que agora já está se extinguindo no Ocidente, abrindo para novas aspirações de totalização, a partir das quais derivam os percursos atuais de totalitarismo iliberal.
Nisso, insistir na sinodalidade representa uma ocasião determinante para a nossa Igreja. Passados dois milênios em que ela derivou de forma osmótica a sua estrutura institucional das estruturas políticas do mundo, pelo menos até ao século XIX (congelando até hoje aquela alcançada então), abre-se a possibilidade de pôr em prática um processo inverso. Em outras palavras, a de oferecer ao nosso tempo, em meio à crise da democracia, uma configuração realmente fraterna de convivência entre os muitos diferentes entre si.
Johanna Rahner destacava a necessidade de um novo direito eclesial, e isso poderia ser mais um ponto de partida, se com isso não se pretende simplesmente uma nova versão do Código de Direito Canônico. Se nos colocarmos nessa perspectiva, isto é, de uma nova visão do papel do direito na Igreja Católica, creio que o primeiro passo a dar deveria ser aquele da invenção de um direito eclesial público (interno). Dessa forma, se poderia começar a reequilibrar o ordenamento jurídico da Igreja Católica, que - em vista e a partir dos Pactos lateranenses - por outro lado desenvolveu um seu próprio direito público externo.
As iminentes assembleias sinodais parecem quase suspensas sobre um vazio jurídico que corre o risco de neutralizar as possibilidades ainda assim inscritas nelas. Conscientes dessa instabilidade do ordenamento, deveriam conduzir ao início de um processo constituinte interno à Igreja Católica: ou seja, à gênese de um verdadeiro ordenamento público geral da instituição eclesial. Isso implica um referente constitucional, com sua própria e singular normativa jurídica não derivada em relação ao conjunto do corpo institucional e das instâncias intermediárias que caracterizam sua construção histórica.
A natureza violenta do poder (mesmo o poder eclesiástico) estaria assim regulada, normatizada e controlada por uma instituição jurídica capaz de a governar e verificar - com procedimentos que são não somente conhecidos, mas também acessíveis à opinião pública eclesial.
Isso permitiria superar aquele cone de sombra feito de arbitrariedade no exercício do poder, que acrescenta também um toque de mesquinhez e abuso à sua violência intrínseca. Condição em que há tempo na Igreja vive um poder ainda estruturalmente imune a tudo, exceto à luta clerical para sua apropriação.
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Mitologias do poder. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU