17 Mai 2023
"Era uma celebração da fé que assumia o elevado valor civil da investidura do poder régio do novo soberano, à maneira de uma fictio iuris. Se se reconhecia que no plano jurídico era uma fictio iurisi, também era preciso reconhecer que no plano religioso era uma fictio fidei".
A opinião é do teólogo e padre italiano Severino Dianich, cofundador e ex-presidente da Associação Teológica Italiana e professor da Faculdade Teológica de Florença., em artigo publicado por Settimana News, 16-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No Guardian de 8 de maio, Simon Jenkins dizia que não conseguia se lembrar do número de vezes que na coroação de Charles III havia sido mencionado Deus, sem nunca terem sido mencionados o parlamento nem a democracia. Ele usava paradoxos pesados: “Nem mesmo a China de Xi Jinping ou a Rússia de Vladimir Putin teriam ousado convocar milhões de pessoas para que fossem vistos enquanto são despidos e trancados em uma sala privada, para se comunicar com o Todo-Poderoso, a fim de obter a legitimação de seu poder”, terminando por se perguntar: “A Grã-Bretanha enlouqueceu completamente?”
Jenkins admite que teria sido anacrônico também abrir mão de qualquer rito de investidura do novo rei, mas os outros monarcas europeus são formalmente reconhecidos por seus parlamentos democráticos, não por uma Established Church. A Igreja da Inglaterra, além disso, já não representa mais toda uma população, da qual apenas uma exígua minoria terá conseguido entender palavras e gestos nos quais, certamente, já não pretendia mais se identificar.
Se a intenção era que o poder de Deus, e não o parlamento, fosse legitimar a autoridade do rei, Jenkins lembrava ao leitor que, por ter pretendido isso, em 30 de janeiro de 1649, o Rei Charles I havia perdido a cabeça. A única palavra compreensível e compartilhável, “que o rei e o príncipe William invocaram tantas vezes que parecem ser gestores de marketing na apresentação de uma nova marca”, foi “serviço”.
Se então não se espera que Charles III atue como uma Madre Teresa da Grã-Bretanha, espera-se ao menos que comece a "servir" seu povo, abrindo aos londrinos os portões do jardim do Palácio de Buckingham, 16 esplêndidos hectares de verde, para torná-los um parque público.
Causou-me satisfação ouvir alguns, e sobretudo um súdito de sua majestade, que ousaram cantar fora do coro, em defesa daquela que Maritain chamava de "uma filosofia democrática" mais que das instituições democráticas. Perguntei-me, portanto, se teria havido alguém que tivesse tido a mesma audácia em defesa da dignidade da fé cristã, que fora impunemente pisoteada no nobre espaço da Abadia de Westminster.
Jenkins citava um escritor inglês que descrevera a monarquia do Reino Unido como uma instituição "mística e teatral". A dimensão teatral da coroação, num povo cristão que outrora venerava no seu rei o ícone de Cristo "rei dos reis", podia ainda exprimir a autêntica mística da sua fé.
Mas hoje só o próprio crente pode comprometer a si mesmo, e só a si mesmo, subindo no palco para colocar em cena a representação da sua fé. Isso foi feito por um homem da Casa de Windsor, batizado com o nome de Charles, cuja fé pessoal ninguém tem o direito de duvidar. Isso foi feito pelo arcebispo de Canterbury Justin Welby, um homem de fé muito digno, sucessor de Thomas Becket que, por ter defendido a pureza da fé de sua Igreja, foi assassinado.
Não o fez a colorida multidão amontoada na nave da catedral nem o povo a quem o evento se destinava. Também me ocorreu que talvez o Arcebispo Primaz de Canterbury tenha se sentido naquele momento como Pio VII na coroação de Napoleão. Mesmo que numa situação não dramática como fora aquela, ele estava ali, obrigado de fato pelo seu papel institucional a dizer palavras e a fazer, em nome de Cristo, os gestos de unção para entregar o seu rei a um povo que absolutamente não pensava em ter que acolhê-lo como o Ungido do Senhor.
Era uma celebração da fé que assumia o elevado valor civil da investidura do poder régio do novo soberano, à maneira de uma fictio iuris. Se se reconhecia que no plano jurídico era uma fictio iuris, também era preciso reconhecer que no plano religioso era uma fictio fidei. De fato, datava de seis meses antes o anúncio do dado estatístico que mostrava que no Reino Unido, pela primeira vez na história, os cristãos caíam abaixo da cota de 50% da população e 37% se declaravam não professantes de nenhuma religião.
É verdade que também nas celebrações litúrgicas das nossas paróquias católicas, para os casamentos e os funerais, as liturgias são celebradas com a presença da maioria dos participantes não por um motivo de fé, mas pela amizade e afeição familiar que os ligam aos noivos ou aos parentes do falecido. Nesses casos, porém, a anomalia pode ser resolvida, e se resolve, com a sua explicitação e o convite dirigido aos presentes a encontrar, cada um na sua interioridade, os sentimentos que mais os aproximam àqueles da comunidade de fé.
Isso não teria sido possível, de forma alguma, naquele dia na Abadia de Westminster. Fazê-lo equivaleria a uma clamorosa desmentida da prestigiosa solenidade e do próprio sentido do evento. Teria exposto a contradição de uma instituição civil que se curvava à necessidade de pedir à Igreja, que por sua vez se curvava a fazê-lo, para fornecer os ritos de sua fé para que pudessem ser usados como a formalidade jurídica capaz de legitimar a assunção do poder régio pelo novo soberano.
Certamente todos os prelados oficiantes, o arcebispo católico de Londres, o cardeal Vincent Nicols, e todos os crentes em Cristo que participaram daquela liturgia rezaram pelo rei, por seu povo e pelo mundo. E isso é bom. É bom que em todas as igrejas do Reino Unido, inclusive, claro, naquelas católicas, se tenha orado naqueles dias pelo rei, pelo seu povo e pelo mundo. É bom que a oração tenha sido inspirada pela paixão pela unidade das Igrejas. É bom que homens de outras religiões tenham sido convidados a se envolver com a oração no evento.
Muitos cristãos se alegraram porque o mundo inteiro pôde ver a fé em Deus e em Cristo celebrada de maneira tão solene. Confesso que não estive entre estes. A fictio iuris é um instrumento útil para o direito, a ficio fidei é intolerável.
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A “mística teatral” de uma coroação. Artigo de Severino Dianich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU