27 Março 2023
"A batalha doutrinária dos bispos estadunidenses também é esta: ir ao encontro da tradição no sepultamento dos mortos mais do que na pastoral que o papa gostaria de reservar para os vivos", escreve Marco Grieco, jornalista, em artigo publicado por Domani, 25-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se para o Papa Francisco a igreja é um "hospital de campanha", a trincheira onde está se travando a guerra mais acirrada é nos Estados Unidos. No país onde as guerras culturais nunca uniram a dupla alma dos católicos, as visões divergentes entre os dois inquilinos da Casa Branca, Donald Trump antes e hoje Joe Biden, e o esforço de síntese da última década de governo do Papa Francisco, ampliaram o hiato entre os católicos conservadores e os mais progressistas.
Foi definido como um “kairos moment”, o “momento decisivo que os EUA estão vivendo” pela ex-presidente da Câmara, Nancy Pelosi, convidada da Georgetown University, a universidade jesuíta de Washington D.C. que foi a primeira a tomar partido em defesa de Biden – o segundo presidente católico dos Estados Unidos depois de John Fitzgerald Kennedy – a quem alguns bispos teriam negado de bom grado a comunhão por seu apoio ao aborto.
A própria democrata Pelosi experimentou isso pessoalmente no ano passado, quando o arcebispo de San Francisco, Salvatore Cordileone, lhe negou a Eucaristia, exceto em caso de vivo arrependimento e rejeição de suas posições pro-choice. “Nossa prioridade é honrar a Constituição que é coerente com nossos valores, e não ditada por uma religião de Estado”, respondeu a ex-presidente democrata em polêmica com aqueles bispos que, segundo ela, assim “negam o livre arbítrio”.
E, assim, para a hierarquia católica estadunidense mais conservadora, só resta se opor a Francisco no plano doutrinário, ou seja, em um terreno onde a igreja pastoral e missionária do papa argentino mostra pontos que ainda não foram resolvidos.
Em 20 de março, a Comissão dos Bispos dos Estados Unidos para a doutrina publicou um texto contendo algumas diretivas que proíbem organizações católicas de operar cirurgicamente ou através de tratamentos farmacológicos a mudança de sexo de pacientes transexuais. O documento – especificam os bispos – não exclui o acolhimento aos crentes transgêneros, mas se reporta às leis federais para reafirmar “a liberdade das instituições católicas de utilizar modalidades que tornam a nossa assistência de saúde autenticamente católica”.
Um duro golpe 13 anos após o Affordable Care Act, a reforma da saúde de Barack Obama que garante, entre outras coisas, intervenções para a transição de gênero, convidando as estruturas hospitalares a não discriminar. No entanto, a questão também divide os mais “bergoglianos”, como o cardeal de Chicago, Blaise Cupich, próximo ao Papa Francisco, para quem é preciso sempre garantir a objeção de consciência.
A posição firme do episcopado estadunidense põe em xeque as orientações pastorais da Igreja para com a comunidade LGBT. “Ainda hoje, muitos bispos católicos sobre as pessoas trans espalham informações imprecisas”, explica a Irmã Luisa Derouen, a religiosa dominicana que se dedica à pastoral de comunidades trans desde 1999: “Essas mensagens diminuem a qualidade da assistência de saúde para pessoas trans, e evitam a todo custo operadores de saúde que não lhes dão garantias. E assim, já banidos de suas famílias e comunidades de fé, vivenciam o trauma e a solidão muitas vezes reduzindo-se a situações de pobreza e desemprego, com implicações dramáticas".
Pelosi também o recordou na universidade jesuíta: “O desafio trans é o maior desafio que temos que enfrentar". Acrescentando que só em 2022 foram apresentados 300 projetos de lei anti-LGBT, dos quais 130 focando a comunidade transgênero.
Aquela sobre o gênero é apenas a ponta do iceberg de uma crescente intolerância no plano doutrinário da Igreja de Francisco. Na quinta-feira passada, recebendo os membros da Pontifícia Academia Afonsiana na sala Clementina, o Papa convidou os teólogos e moralistas a “fugir de dinâmicas extremistas de polarização, mais típicas do debate midiático do que de uma saudável e fértil pesquisa científica e teológica".
Além disso, sobre as questões de moral social, Francisco pede para evitar condenações, mas para se fazer próximos da vida real das pessoas, do "ser humano concreto". Justamente por isso, aquele da Igreja dos EUA é o próximo desafio do Papa Francisco.
Como escreveu Brian Fraga no National Catholic Reporter, com a renovação de dezenas de bispos perto da idade de aposentadoria de 75 anos, nos próximos dois anos o papa poderia realmente remodelar a hierarquia católica dos EUA.
“Se ele nomear novos bispos em todas aquelas igrejas locais, Francisco terá nomeado 64% do episcopado dos Estados Unidos” escreve Fraga. Que esse seja o objetivo do papa é evidente na escolha de três cardeais, expressão de sua igreja pastoral: Wilton Gregory de Washington, Blase Cupich de Chicago e Robert McElroy de San Diego.
Mas encontrar nomes fiéis à linha de Bergoglio não é simples no país onde a doutrina é vista como o último bastião de um catolicismo puro, contrariado pela própria Roma. Está causando discussão a recente declaração dos bispos dos Estados Unidos, que convida a não usar compostagem humana e hidrólise alcalina para a sepultura dos mortos porque não é "coerente com o ensinamento da Igreja sobre a ressurreição do corpo". A batalha doutrinária dos bispos estadunidenses também é esta: ir ao encontro da tradição no sepultamento dos mortos mais do que na pastoral que o papa gostaria de reservar para os vivos.
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O Papa Francisco está travando nos EUA a batalha mais dura por sua igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU