22 Março 2023
A sinodalidade é "um desafio porque é um modelo que implica a criação de todo um quadro institucional", afirma Rafael Luciani. Estamos perante "um desafio que implicará uma mudança de mentalidades" e juntamente com ele "a construção de um novo modelo institucional", tendo como fundamento a eclesiologia do povo de Deus na Lumen Gentium, da qual "a sinodalidade supõe uma maturação".
Para alguém que vive a teologia como uma vocação, Luciani sublinha a necessidade de uma teologia que "não pode ser considerada fora das comunidades reais e concretas", apelando a um maior investimento para que “leigos e leigas possam estudar teologia". Analisando a Etapa Continental e o trabalho realizado pela Comissão de Síntese, da qual é membro, o teólogo venezuelano vê como um desafio que "a Igreja que escuta deve ser a Igreja que aprende de agora em diante", algo só possível com "parrésia e não medo", levando a "um novo modelo institucional que tem de partir de uma nova relação entre aqueles que elaboram decisões e aqueles que tomam decisões", sabendo que "todos nós, em igual dignidade batismal, temos o direito e também o dever de exigir mudanças à Igreja".
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Fala-se muito de sinodalidade, mas será que a sinodalidade ainda é uma utopia na Igreja?
É um desafio porque é um modelo que implica criar todo um quadro institucional e ao mesmo tempo adaptar o mais possível o que existe, e por outro lado deixar estruturas que hoje já não são sinodais. É um desafio que implicará uma mudança nas mentalidades daqueles que foram formados numa visão diferente da Igreja e que implicará uma conversão em termos de mentalidades.
Por outro lado, para a Igreja como instituição, implica a construção de um novo modelo institucional. Sem um novo modelo institucional, a sinodalidade torna-se um espírito de pensamento, de ação, de um modo de ser, mas que não terá uma concretude real na vida quotidiana e prática da Igreja.
Para realizar este Sínodo, a mentalidade deve também mudar e finalmente assumir a Teologia do Povo de Deus, que o Vaticano II tem como fundamento. Como podemos passar desta teologia dedutiva para uma teologia que brota do Povo de Deus?
A primeira mudança é reconhecer a eclesiologia do Povo de Deus na Lumen Gentium como o eixo fundamental de toda a vida eclesial. Quando a Lumen Gentium foi concebida e escrita, o Capítulo II sobre o Povo de Deus tornou-se normativo. Ou seja, é a partir daí que toda a Igreja deve ser pensada.
Hoje, aquilo a que chamamos sinodalidade pressupõe um amadurecimento desta eclesiologia, e isto deve ser traduzido numa revisão da Teologia do Ministério Ordenado, bem como uma forma pela qual a Igreja tem de criar espaço para que a integração dos leigos e da Vida Religiosa seja uma parte fundamental de todos os processos de elaboração e de tomada de decisões na Igreja. Se esta eclesiologia for recuperada como central, o segundo passo, que é a renovação da Teologia e Cuidado Pastoral, pode ser dado. Mas sem esta consciência da Eclesiologia do Povo de Deus como central e como estado atual de recepção do Concílio, será sempre uma tarefa mais difícil e demorada.
Rafael Luciani | Foto: Luis Miguel Modino
Como pode alguém que é leigo, que é o povo de Deus, ajudar nesta reflexão teológica, a compreender que a Teologia não é algo próprio apenas dos ministros ordenados, mas uma reflexão para a qual todos os batizados são chamados?
Vivo a teologia como uma vocação, não como uma profissão, e que na minha vida tem sido uma experiência não só de crescimento pessoal, mas também de descobrir que só posso viver a Igreja a partir das comunidades e com pessoas que fazem esta vida juntas. Para nós na América Latina não há teologia sem ministério pastoral, não há teologia que não desembarque numa comunidade e comece a partir daí. Há toda uma conversão para a Teologia, onde a Teologia não pode ser considerada fora das comunidades reais e concretas, e estas comunidades têm de ser a fonte do nosso pensamento e do nosso trabalho teológico. É por isso que a Teologia é uma vocação e não simplesmente uma profissão.
Sente que, como leigo, a sua voz, a sua reflexão, é respeitada ao mesmo nível que a reflexão dos teólogos que são ministros ordenados?
Vivi um processo no qual, quando comecei a estudar teologia como leigo, tive o apoio da instituição onde trabalhava. Nessa altura, a relação entre leigos e leigas, e bispos e padres era muito diferente. Hoje em dia mudou e eu vivenciei-o dessa forma. No caso da América Latina existe uma relação mais horizontal no diálogo entre teólogos e bispos ou sacerdotes que também são teólogos. Noutros continentes esta relação é mais difícil e lá, um teólogo leigo encontra a relação de diálogo, de discernimento conjunto ou de integração muito mais difícil.
Um limite na América Latina continua a ser que a Igreja investe pouco em leigos formados em Teologia, e não existem espaços de trabalho suficientes para que os leigos e as leigas estudem Teologia e depois se desenvolvam em instituições que lhes permitam viver, porque esse é o grande problema, como viver numa vida que gira em torno da Teologia como um serviço.
Para alguém que faz parte da Equipe de Síntese da Etapa Continental do Sínodo na América Latina e Caribe, foi difícil chegar a um consenso sobre o que foi refletido nas quatro assembleias regionais?
No caso da América Latina é um processo totalmente novo que não foi feito noutros continentes, porque não partimos de uma única assembleia onde tudo foi feito, a celebração, a consulta, o discernimento, e depois a redação do Documento, mas na América Latina partimos de consultas com as quatro regiões. A partir daí, são construídas sínteses em cada uma destas regiões, conduzindo ao que estamos a fazer neste momento, que é a reunião, podemos falar de uma quinta assembleia dedicada à elaboração da síntese.
Há uma forma de proceder que nos ensina que a América Latina sempre foi um processo, e não simplesmente um evento onde nos reunimos para produzir um documento. O que aqui vivemos é o que foi dito na primeira fase diocesana, que agora está a ser reafirmado aqui nesta fase continental. E os pedidos do povo são muito concretos, e penso que há um reconhecimento real de que a Igreja tem de mudar. O desafio agora é que a Igreja que escuta tem de ser a Igreja que aprende de agora em diante. Se isso não for assumido, ouvir continua a ser um mero sentimento e um desejo de mudança que não virá. Mas se a Igreja passar de uma Igreja que escuta para uma Igreja que aprende, pouco a pouco começaremos a ver mudanças.
Rafael Luciani | Foto: Luis Miguel Modino
Como conseguir essa conversão numa Igreja que está habituada a ensinar e que agora tem de aprender?
Ter parrésia e não ter medo ao falar, ao fazer propostas, mas também saber que como fiéis, todos nós, com igual dignidade batismal, temos o direito e também o dever de exigir mudanças à Igreja, porque a Igreja não é algo fora da nossa vida como fiéis na Igreja. Mas se eu achar que só o bispo tem de fazer as mudanças, ou só o padre da paróquia tem de fazer as mudanças, e eu não tenho a capacidade de ser uma pessoa que move a instituição, com profecia, com parrésia, então certamente que as mudanças não acontecerão.
E como pode isto ser traduzido num novo modelo institucional eclesial?
Um novo modelo institucional tem de se basear numa nova relação entre aqueles que tomam decisões e aqueles que tomam decisões. Uma proposta, que de alguma forma experimentamos neste processo de síntese, é que os que decidem façam o processo com os elaboram as propostas, mas como outro membro dos fiéis. Em outras palavras, o bispo é mais um membro dos fiéis entre o povo de Deus. Se o povo de Deus, que somos todos nós, trabalharmos juntos na mesma mesa, olhando uns para os outros cara a cara, a elaboração de decisões irá então para os decisores, mas tendo participado no processo. Este é o grande desafio como modelo institucional.
A outra coisa seria como traduzir isto nas comunidades, uma proposta que já teve lugar em algumas dioceses. Na diocese de La Guaira, na Venezuela, encontramos uma rede de conselhos pastorais que partem de uma descentralização da paróquia, onde a liderança é dada em zonas pastorais, com conselhos pastorais que tomam decisões e estão ligados ao conselho paroquial.
E o conselho paroquial torna-se um órgão organizador para esta escuta e discernimento das pequenas comunidades. E isto, por sua vez, está ligado ao conselho pastoral diocesano, e toda esta cadeia de conselhos e comunidades assegura que as decisões sejam tomadas com os sacerdotes, o bispo, os leigos, os religiosos e religiosas. Se isto puder ser feito em qualquer esfera eclesial, veremos frutos, mas se continuarmos a tomar decisões sem considerar o povo de Deus como mais um, então será certamente mais difícil.
Encontro Episcopal Celam | Foto: Luis Miguel Modino
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Rafael Luciani: “Todos nós, em igual dignidade batismal, temos o direito e o dever de exigir mudanças à Igreja” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU