31 Julho 2015
Removida do nosso vocabulário corrente, esvaziada pela cultura pós-moderna e de massa e pelo atomismo individualista, esquecida até pela linguagem eclesial, a palavra "povo" voltou agora a uma nova vida. Na nossa memória coletiva, ela tinha permanecido estável principalmente nos anos 1970 para evocar temporadas de reivindicações populistas. Quem a desempoeirou do embaraço, quem nos restituiu essa palavra com naturalidade, que nos pertence e à qual pertencemos, foi o Papa Francisco.
A reportagem é de Stefania Falasca, publicada no jornal Avvenire, 30-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ela se assomou com ele da loggia de São Pedro desde o dia da sua eleição: "E agora começamos este caminho, bispo e povo...". Ele a repete 163 vezes na Evangelii gaudium, é o substantivo mais utilizado de todo o documento. Cento e trinta e cinco nos discursos pronunciados em sete dias na sua recente viagem à América do Sul. Só no discurso de improviso proferidos aos religiosos no santuário de Quiche, no Equador, as ocorrências são 17 e por nada menos do que 20 vezes o "pueblo" retorna no encontro com a sociedade civil no Paraguai.
E, se é verdade, como diz o filósofo Wittgenstein, que o pensamento se identifica com a linguagem, e tudo, assim, adquire sentido pleno – como pudemos ver nos dias sul-americanos do Papa Francisco – também é verdade que o espanhol, a sua língua materna, deu ao papa a possibilidade de dilatar o seu pensamento, a ponto de tornar extremamente límpidas as passagens do seu magistério, eliminando todo equívoco e removendo pseudoargumentos também de críticas pretextuosas, como justamente observou Luis Badilla no seu pertinente balanço da viagem.
Quando se diz "povo", por isso, ninguém pode dizer que não está claro o porquê dessa insistência. Não é o legado linguístico de uma visão política latino-americana datada, não. É simplesmente o Catecismo. De fato, quando o papa fala de povo, isso tem um valor teológico, antes ainda que sociológico. Essencialmente, ele se refere ao povo de Deus, assim como está escrito na Bíblia e como o Concílio assumiu para se referir à Igreja de Cristo.
Do povo, como afirma o Catecismo, e talvez convém repetir, nos tornamos membros não pelo nascimento físico, mas pelo "nascimento da água e do Espírito" (Jo 3, 3-5), isto é, mediante a fé em Cristo e o batismo. Que tem por condição "a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações o Espírito Santo habita como no seu templo" (LG 9). Que tem "por lei o novo mandamento de amar como Cristo mesmo nos amou" (LG 9). E é a lei "nova" do Espírito Santo (cf. Rm 8, 2; Gl 5, 25), que tem por missão ser o sal da terra e a luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16) "constituindo para todo o gênero humano o mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação" e "tem por fim o Reino de Deus, que, começado na terra pelo próprio Deus, deve-se desenvolver até ser também por ele consumado no fim dos séculos" (LG 9).
Por isso, é um povo sacerdotal, profético, régio que é descrito no Catecismo nos números 783-786, segundo o que foi recebido pela renovação conciliar que, no seu tratado sobre a Igreja, descreve-a precisamente segundo essa categoria.
Ao Povo de Deus, de fato, é dedicado todo o segundo capítulo da Lumen gentium. E é justamente à noção teológica de povo de Deus da Lumen gentium que Francisco se refere explicitamente quando fala de "povo fiel de Deus". Noção já contida nas primeiras palavras e no primeiro ato realizado recém-eleito inclinando-se da loggia de São Pedro para pedir a bênção ao povo.
Precisamente a Lumen gentium 8 e 12, quando afirma: bispo e povo fazem um caminho juntos, em que "a totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo 2, 20-27), não pode se enganar na fé; e essa sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, 'desde os bispos até ao último dos fiéis leigos', manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes".
É o povo no seu conjunto o sujeito ativo da evangelização e, portanto, portador da bênção divina. O povo é o protagonista da sua história e da evangelização. E a hierarquia da Igreja deve se pôr a serviço do povo e discernir aonde Deus o está chamando, para acompanhá-lo. Daí as reflexões pastorais da teologia do povo e, portanto, de uma pastoral "a partir do povo", que coloca os pobres no centro como evangelicamente privilegiados e considera as diversas culturas, porque Deus tem muitos caminhos para atrair os seus filhos, e esses caminhos dependem da cultura que cada pessoa e cada povo vive.
Daí também a não autorreferencialidade da Igreja, que não é considerada proprietária dos bens de salvação que são de Cristo. É dessa concepção eclesiológica a imagem de como um bispo pode estar no meio do seu povo, que, no horizonte histórico das grandes linhas da Lumen gentium, há mais de 50 anos desde o início do Concílio, ainda pede para ser plenamente assimilada e realizada.
Atitude doutrinal e pastoral que Bergoglio havia explicado em 2012, em Buenos Aires, em uma conversa na rádio com um sacerdote das villas miseria (ouça abaixo): "É possível ser pastor de três maneiras, e às vezes você tem que usar as três maneiras. Ou o pastor que vai na frente, marcando o caminho, ou o pastor que vai ao lado, cuidando para que o rebanho não se desgarre, que siga mais ou menos todo junto, ou o pastor que vai atrás, seguindo o caminho que as ovelhas vão marcando com o seu olfato. Muitas vezes, quem tem a bússola, o olfato, é o povo de Deus, o santo e fiel povo de Deus! E você tem que olhar para onde vai, porque o Espírito Santo é quem trabalha o coração do fiel povo de Deus". "Porque o próprio rebanho possui o olfato para encontrar novas estradas" (EG 31).
Naquela mesma ocasião, Bergoglio também explicou essa expressão particular que ele usa frequentemente, "santo povo fiel de Deus": "Eu acho que comecei a elaborá-la entre 1970 e 1972", contou. "Falava-se muito do 'povo' naquela época, mas você não sabia a que as pessoas se referiam quando falavam de povo, porque, por trás disso, os políticos falavam do 'povo', os intelectuais falavam do 'povo'. Mas o que queriam dizer? Nós, padres, temos que falar ao povo, mas a um povo muito especial. Na Bíblia, diz-se que somos um povo santo! São Pedro diz: 'Povo santo resgatado pelo sangue de Cristo'".
"Nosso povo é santo – explicou Francisco – porque está batizado e, por estar batizado, está justificado pelo sangue de Cristo. Nosso povo é fiel, porque, apesar dos pecados que todos cometemos, tenta não se apartar do caminho de Cristo. E Jesus sente que ele é fiel. Por isso eu uso 'santo povo fiel de Deus', porque está em caminho até o encontro final com Jesus."
Na entrevista de rádio, o sacerdote perguntou ainda a Bergoglio o que tinha ficado mais marcado ao longo dos anos vividos como bispo. A sua resposta: "Os momentos mais lindos como padre foram os que eu passei com as pessoas, ao 'santo povo fiel de Deus'. Ter caminhado junto com um povo que busca Jesus, ter escutado tantas coisas, ter aprendido tanta fidelidade. Essa recordação, que nasce da experiência, vai me acompanhar até a morte".
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E essa ainda é atualmente a sua estrada cotidiana. Na homilia da Quinta-feira Santa, proferida na basílica vaticana no dia 2 de abril deste ano, ele disse, dirigindo-se ao clero e aos prelados: "Nós conhecemos a nossa gente, podemos adivinhar o que está passando no seu coração; e, ao padecer com eles, vamos nos desfiando... Cristo se deixava consumir por eles... comovido, parece até mesmo comido pelas pessoas: tomem, comam. Essa é a palavra que sussurra constantemente o sacerdote de Jesus quando está cuidando do seu povo fiel: tomem e comam, tomem e comam... Eles não lhe deixavam nem o tempo para comer. Mas o Senhor nunca se secava por estar com as pessoas. Ao contrário: parecia que se recarregava..." e assim "torna os seus fiéis sempre novos; ainda que sejam idosos, renovam as suas forças, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer", escreveu ele em Evangelii gaudium (n. 11).
"Sou eu que sigo a Igreja", isto é, o povo de Deus, estimulando ainda uma séria reflexão. É o que ouvimos e vimos também na passagem pela América Latina de Francisco e continuamos a ver, nos seus gestos e nas suas próprias palavras, "como a vida sacerdotal recebe se dando no serviço, na estreita proximidade com o santo povo fiel de Deus...".
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O povo de Deus que guia Bergoglio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU