25 Março 2023
"Pergunto-me: não será também que, ao enfatizar a escuta (escutar e escutar e escutar), também escondemos de nós mesmos o défice de debate, de opinião pública na Igreja? De fato, registra-se uma ausência de um verdadeiro debate intraeclesial. Uma ausência que, por sua vez, deriva da falta de uma autêntica opinião pública dos crentes católicos", escreve Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, em artigo publicado por Settimana News, 17-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde que começou a temporada sinodal na Igreja Católica, o mantra da escuta é repetido obsessivamente. É verdade, sofremos de um déficit de escuta. Deveríamos aprender a escutar. Com a cabeça e sobretudo com o coração, com a alma. A escuta liberta da autorreferencialidade, exige mais empatia e desinfla nosso narcisismo sem freios.
É certo que repitamos esse compromisso e seria ainda mais certo que começássemos a colocá-lo em prática. Os “canteiros de obras” sinodais estão contribuindo para gerar uma prática de escuta cada vez mais difundida.
No entanto, pergunto-me: não será também que, ao enfatizar a escuta (escutar e escutar e escutar), também escondemos de nós mesmos o défice de debate, de opinião pública na Igreja? De fato, registra-se uma ausência de um verdadeiro debate intraeclesial. Uma ausência que, por sua vez, deriva da falta de uma autêntica opinião pública dos crentes católicos.
Precisamos de pessoas capazes de escuta, mas ainda mais pessoas que ousem dizer mais. É bom escutar, mas também se posicionar: avaliar, refutar, propor, criticar, argumentar. Com os bispos, com os irmãos sacerdotes, com os leigos, próximos e distantes, de dentro e de fora.
É isso que valida os processos de tomada de decisão e aumenta a probabilidade de fazer escolhas adequadas. Que, afinal, é hoje o principal problema: num mundo cada vez mais difícil e complexo, as decisões são tomadas mais facilmente se muitos, primeiro, discutirem e compartilharem. Ou seja, juntarem competências, ideias e experiências.
Chama-se confronto. E, para além da retórica, está em jogo (deveria estar em jogo) a velha e conhecida dialética. Que tenta, primeiro, valorizar (não reprimir) e, depois, compor (sem sufocar) as diferenças: para chegar a sínteses mais fundamentadas, mais sólidas e ricas. Que tornam as decisões e as realizações consequentes mais eficazes e sustentáveis.
Claro, para que isso aconteça, o outro também deve estar presente, se expor. Tomar uma posição. Afirmar a si mesmo. Expressar opiniões, ideias, avaliações. Não se limitar a concordar, confirmar, calar. Mas explicar, argumentar e discutir.
O problema é que, na maioria das vezes, o outro não está presente. Se ele usufrui de poder formal, comanda. Mostra o título, o uniforme, o cargo. Transmite, não comunica. Faz retórica. Passa slogans. Impõe-se: não fala, deixa falar o título, o status.
Em suma, talvez devêssemos parar de confundir o filme com o cinema: assistir ao filme em vez de filmá-lo. Com um pouco de esforço: nem que seja para ter e expressar as nossas posições. É o ofício de viver; e, sobretudo, de conviver. Menos espectadores, mais atores.
Caso contrário, o mantra redundante da escuta parece a enésima fuga retórica: na falta de ação (muito exigente), nos consolamos repetindo palavras tranquilizadoras, envoltas em rótulos altissonantes: conversa espiritual. Poder-se-ia falar de uma leitura entre nós, uma leitura de uma "Igreja para burgueses"[1].
Os dois documentos Síntese e Canteiros de obras, insistem muito no método da conversa espiritual. Uma modalidade considerada funcional para os encontros na medida em que cria um ambiente "que evita lógicas de contraposição ou debates superficiais", além disso "a atenção às ressonâncias profundas com a exclusão de formas de debate ou discussão" permite não se sentir julgados e leva a “entrar em contato com o plano das emoções e dos sentimentos” considerado “mais profundo do que o da lógica e da argumentação racional”.
Esse método – aliás, sugerido também pelo Vade-mécum para consulta do Sínodo dos Bispos e que parece mais apropriado, na sua dinâmica, para encontros de troca espiritual como o próprio nome sugere (conversa espiritual) -, apresenta alguns limites e expressa um temor[2].
O medo é que possam surgir conflitos e contraposições dentro de comunidades que, de fato, não estão acostumadas ao confronto livre. Sobre o conflito a Evangelii gaudium (n. 226-228) observa que "não pode ser ignorado ou dissimulado" e que deve ser "resolvido e transformado" num processo de amadurecimento que permita "desenvolver uma comunhão nas diferenças".
Aqui está o limite. Querer excluir formas de debate, - para ficar no plano das experiências, das emoções e dos sentimentos -, pensando em evitar os conflitos, limita a possibilidade de amadurecer juntos visões da Igreja em possam enfrentar o quanto a Síntese apresenta como “as eternas questões que dificultam o caminhar".
Considero que, na Igreja, seja preciso urgentemente retornar à cultura do debate que existia nas suas origens, sob pena de se reduzir à museologia ou formas de aconselhamento espiritual. E assim tudo fica mais opaco e são silenciadas as questões que emergem urgentemente da profundidade através de uma proposta de leveza epidérmica. O debate é expressão e fundamento da razoabilidade crítica e do antiautoritarismo.
Não devemos ter medo das discussões, sempre houve discussões, até os Atos dos Apóstolos falam delas. As controvérsias são sempre um sinal de intensa participação. Aqueles que, socialmente divididos, estavam reunidos pela Igreja primitiva, eram convidados a dialogar, discutir, propor, debater. Como debater hoje, como assumir o risco das divergências e tentar, apesar de tudo, viver já a condição dada pelo batismo de irmãos e irmãs de Cristo, e de filhas e filhos do mesmo Pai?
Os termos unidade, fraternidade, comunhão, geradores pelo tudo que prometem, muitas vezes se tornaram palavras-escudo na Igreja, usadas para evitar toda forma de discussão. Tornaram-se palavras-totem, palavras-amuleto na boca das autoridades eclesiásticas, mas também de praticantes da sensibilidade devocional ou que tudo querem espiritualizar, que impedem de expressar livremente o ponto de vista pessoal e de exercer o sentido crítico.
Uma vez que a escuta é enfatizada, todas as vozes na Igreja hoje devem poder ser ouvidas. Com sua raiva, com seu sofrimento, com sua impaciência, com suas paixões ou preconceitos.
Sim, o debate envolve sofrimento, o de levar um encontrão, ser ferido por opiniões opostas. Também envolve um sentimento de culpa, o de se chocar e ferir com opiniões opostas. Sim, o debate abala a tranquilidade de uma identidade herdada, de um modo de relacionar-se, dentro da Igreja, que ainda muitas vezes torna os batizados - e também os presbíteros - usuários passivos, indivíduos deferentes e dóceis, e não pessoas livres.
Não pode haver unidade, fraternidade, comunhão na Igreja sem passar pelo debate, sem que o debate seja buscado, promovido, instituído, organizado, conduzido de forma confiante, livre e democrática. Debater na Igreja hoje é entender que a intuição dos fiéis, o bom senso – o sensus fidei – não pode ser confundido com imaturidade, inexperiência, imprudência, incoerência ou irresponsabilidade.
O Concílio destacou o sentido da fé dos batizados, um conceito outrora utilizado pelos Padres da Igreja, mas por muito tempo esquecido. Essa expressão designa uma espécie de inteligência espiritual, de instinto cristão, de sentido da Igreja (segundo o Concílio de Trento) que se baseia na vocação batismal e pertence à identidade cristã. O sentido da fé é uma ideia profundamente tradicional e não uma reivindicação democrática, ou seja, suspeita, surgida tardiamente na modernidade. O Concílio especifica que o sentido da fé nunca se exerce isoladamente, mas na comunhão da Igreja e graças ao Espírito Santo.
Essa noção – evocada em seis oportunidades pelo Vaticano II – apresenta necessariamente dificuldades de aplicação. Do lado do povo cristão, existe o risco de permanecer com um olhar demasiadamente local e parcial das questões. Do lado do magistério episcopal, reconduzir o papel dos fiéis a uma pura submissão. Grande é a tentação da autoridade de ver a aplicação do sentido da fé apenas em um movimento descendente. Esse movimento unidirecional, hoje dificilmente seria suportável.
Uma Igreja na qual a palavra é confiscada ainda poderia ser percebida como uma Igreja de Pentecostes para o mundo dos nossos dias? É urgente dar-se a possibilidade de adquirir aquela cultura do debate para que a Igreja viva, se reinvente, se refunde, esteja ao serviço de todos.
O medo assombroso do debate na Igreja, em nome de uma suposta unidade a ser preservada a todo custo, é destrutivo e suicida. A Igreja nasceu dos debates. Renascerá dos debates. É urgente libertar a palavra. É preciso voltar a acreditar novamente na força pneumatológica da palavra[3], sem excessos metodológicos que arrisquem mortificar os conteúdos. É sabido que a ausência de debate mata a criatividade.
Por fim, mesmo que no momento sejam sufocadas, algumas questões não tardarão a renascer novamente.
Além disso, há também um problema do conformismo da informação. Prefere-se relatar sem comentar, ou comenta-se superficialmente, ou ainda se tende quase automaticamente a reverenciar e obsequiar. O resultado é evidente. A falta de uma opinião pública se traduz num grave déficit para a vida eclesial.
Todos os estímulos que poderiam vir, em particular, dos fiéis leigos são abafados na origem e, quando alguém se comporta como um cristão adulto e ousa pensar por si só, eis que dispara a repreensão por parte dos outros leigos que bancam os juízes e defensores oficiais da tradição e da autoridade, enquanto em muitos casos são apenas defensores do hábito e do poder.
A liberdade de expressar as próprias ideias sem medo é a condição prévia para a existência de uma opinião pública, mas se diante dos comentários mais livres disparam imediatamente as acusações, os insultos e a marginalização, como se pode imaginar ter uma opinião pública? Em vez disso teremos, muito mais facilmente, fileiras de bajuladores.
Muitas vezes em nossos contextos eclesiais "falta fôlego", como afirmaram há alguns anos em seu belo livro Saverio Xeres e Giorgio Campanini [4]. A comunicação dentro da Igreja geralmente é unidirecional: desce de cima para baixo. Nada sobe de baixo. Ou, quando algo sobe, a mensagem encontra tantos obstáculos e travas que qualquer tentativa é frustrada.
Faltam espaços de discussão igualitária e aqueles que poderiam realizar essa função tornaram-se megafones do magistério, contribuindo assim não para a formação de uma opinião pública, mas, pelo contrário, para um processo de clericalização cada vez mais acentuado.
A consciência contemporânea geralmente considera que uma convicção só é digna de estima se for livremente ratificada e não derivar da tutela de um mestre. Além disso, considera que essa convicção só é credível se for capaz de sustentar um diálogo leal com um interlocutor que esteja, ao mesmo tempo, em desacordo e de boa vontade.
No entanto, o que mais surpreende não é a indiferença da Igreja em relação às interpelações externas, mas a forma como ela se imuniza contra o debate interno. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se abraça a ideia da Igreja ad extra (em saída), permanece-se indiferentes à necessidade de debate ad intra.
O pensamento independente não parece ter direito a um espaço próprio dentro do catolicismo. Mais precisamente, parece impensável hoje tentar resolver os inconvenientes ligados ao discurso do magistério com discussões públicas, pacíficas e construtivas. Em nome da unidade, a explicitação do dissenso é demonizada e a obediência cega é sempre preferida.
É tempo de sonhar com uma Igreja intelectualmente adulta, ou seja, capaz de questionar suas escolhas ao invés de censurar a dissidência e se comprazer na autocelebração. O risco da temporada sinodal que estamos vivendo é o de gerar uma ecclesio-selfie. É justamente do selfie o caráter do autorretrato, exatamente como aquela atividade de autorreflexão da Igreja, uma espécie de compulsão na tendência a se auto avaliar.
Não se trata de definir suas convicções a partir apenas da discussão: já que as convicções são concebidas como resposta a uma palavra que vem de mais longe do que os homens. Mas para purificá-las e investi-las na busca comum da verdade.
Assim como há quatro evangelhos com teologias distintas e em busca de si mesmas, assim como os Atos dos Apóstolos e as Cartas de São Paulo colocam em cena incessantes controvérsias internas, a cultura do debate público e do espírito crítico seria uma oportunidade para o mundo eclesial.
Devemos saber falar e discutir criticamente, com liberdade, fraternalmente, sem medo. É urgente que se afirme na Igreja Católica uma opinião pública, com serenidade, no respeito mútuo, sem anátemas. Infelizmente, muitas vezes faltam espaços sistemáticos para o debate público em nossas dioceses.
Raros são os momentos para discutir juntos e livremente sobre questões reais, sentidas pelo presbitério e pelo povo de Deus. Mesmo assim, muitos leigos e presbíteros sinceros gostariam de se encontrar para discutir abertamente o futuro da Igreja, sem submeter a palavra humana a processos de liofilização ou adoçamento espiritualizante.
“A prática da sinodalidade exige a superação de uma visão idealizada do diálogo: sempre há desentendimentos e mal-entendidos entre os participantes; são possíveis distorções entre aqueles que pensam na verdade como um poder sobre os outros ou aqueles que afirmam fazer de sua autoridade um substituto da verdade e, portanto, exigem obediência inquestionável e acrítica, censurando as vozes dos dissidentes, praticando e justificando uma cultura de segredo".[5].
[1] Cfr. Disponível aqui. (Acessado em 4 de março de 2023).
[2] Cfr. Disponível aqui. (acessado em 28 de fevereiro de 2023).
[3] Cf. F. Ebner, La parola e le realtà spirituali. Frammenti pneumatologici, San Paolo, Cinisello Balsamo (MI) 1998.
[4] Cf. S. Xeres – G. Campanini, Manca il respiro. Un prete e un laico riflettono sulla Chiesa italiana, Àncora, 2011.
[5] S. Noceti, In comunicazione generativa. Conversazione, consensus, conspiratio, in R. Luciani – S. Noceti – C. Schickendantz (edd.), Sinodalità e riforma. Una sfida ecclesiale, Queriniana = BTC 211, Brescia 2022, p. 272.
Marco Ansalone, 17 de março de 2023.
Acho que há uma diversidade de posições e orientações na Igreja e isso pode ser percebido pelo enxame de sites católicos não institucionais e pelos debates que eles alimentam. A web tornou-se o lugar virtual para expressar as posições pessoais, porque em nível institucional de base não há lugares para expressá-las. Na minha diocese não houve um debate livre para o caminho sinodal e ficou para os especialistas no tema. De nada adianta se a escuta fica para poucos ou se depois da escuta continua-se a agir sempre da mesma maneira.
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Não só escuta: a opinião pública na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU