18 Março 2023
Pouco depois que um relatório do centro de pesquisas Pew de 2013 revelou que a maioria dos 1,3 bilhão de membros da Igreja Católica se encontrava agora sediada no Sul global, após um afastamento de um século de duração do centro tradicional da Igreja na Europa, o Colégio dos Cardeais elegeu o primeiro papa latino-americano.
A reportagem é de Aleja Hertzler-McCain, publicada por National Catholic Reporter, 16-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco – que antes era o cardeal Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, Argentina – vinha de um continente onde o catolicismo se enraizou como resultado de bulas papais que autorizavam a conquista colonial, a conversão e a dominação violentas.
Valentina Napolitano, professora de antropologia na Universidade de Toronto e atualmente pesquisadora visitante no Berkeley Center for the Study of Religion, escreveu sobre Francisco como um “papa crioulo” [Criollo Pope].
“Crioulo” é um termo que remonta à colonização, e o uso de Napolitano refere-se literalmente ao fato de Francisco ser o filho argentino de um pai imigrante italiano e de uma mãe descendente de italianos.
Ao longo da história da América Latina, os crioulos foram líderes de movimentos revolucionários de independência e “extremamente conservadores”, disse Napolitano ao NCR, explicando que reconhece ambos os impulsos em Francisco.
Napolitano disse que o termo “Papa Crioulo” também pode explicar por que alguns críticos veem Francisco como uma espécie de impostor. Francisco “sacode a impetuosa máquina da Igreja Católica ao descentrar e redimensionar suas sedes de poder”, escreveu Napolitano em uma coluna de jornal de 2019.
O padre jesuíta congolês Jacques Mwanga Nzumbu disse ao NCR que Francisco é o primeiro papa “que enfrenta seriamente o problema do colonialismo”.
Ao longo de seus 10 anos como papa, Francisco denunciou formas contínuas de colonialismo.
“O colonialismo não tem a ver apenas com a repatriação na arqueologia ou com a condenação daquilo que foi feito, mas se trata realmente de enfrentar os traços transformadores do colonialismo no presente”, disse Napolitano.
Mais recentemente, quando chegou à República Democrática do Congo em fevereiro, Francisco disse: “Chega de sufocar a África: ela não é uma mina a ser despojada ou um solo a ser saqueado”, referindo-se à exploração dos recursos naturais e minerais do Congo por países como a China e os Estados Unidos.
Nzumbu, que começou a estudar mineração no Congo depois de testemunhar os impactos devastadores das guerras causadas pelos minerais em seus estudantes do Ensino Médio, disse que as palavras de Francisco foram “a mensagem mais forte sobre o colonialismo e o neocolonialismo na África”.
Tania Avila Meneses, uma teóloga quíchua de Oruro, Bolívia, também elogiou os ensinamentos de Francisco sobre o extrativismo como uma forma de colonialismo, especialmente em Querida Amazonia, sua exortação apostólica de 2020, após o Sínodo dos Bispos para as nove nações da região amazônica.
Francisco declarou nesse documento: “Às operações econômicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazônia e não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime” [n. 14].
Meneses disse: “Eu acho que o papa é muito corajoso ao fazer uma aliança com as comunidades e buscar limites, autodeterminação e consentimento prévio”.
“Esse já é um processo de descolonização”, disse ela.
Meneses também destacou a declaração posterior de Francisco em Querida Amazonia de que “a colonização não para; embora em muitos lugares se transforme, disfarce e dissimule, todavia não perde a sua prepotência contra a vida dos pobres e a fragilidade do meio ambiente” [n. 16].
“Em muitas situações da Igreja, isso também ocorre”, disse Meneses. “Às vezes, com uma falsa solidariedade com os povos indígenas, começa-se a menosprezá-los e a se colocar acima das outras pessoas. Então, é preciso ter cuidado com essa atitude de disfarçar o colonialismo, até com gentileza.”
Laurel Marshall Potter, doutoranda em Teologia Sistemática e Comparada no Boston College e coautora do livro “Re-membering the Reign of God: The Decolonial Witness of El Salvador’s Church of the Poor”, de 2022, também celebrou o documento Querida Amazonia.
Ela disse que, embora muitas pessoas tenham ficado desapontadas com o fato de o documento não endossar o apelo dos bispos amazônicos à ordenação de diáconas e de padres casados para responder à falta de ministros em toda a região, ela percebeu que Francisco estava recuando em seu papel como bispo de Roma.
“Para que a Igreja realmente assuma a decolonialidade, todo o povo de Deus deve assumir a decolonialidade”, disse Potter.
“Quando Francisco hesita em impor práticas ou em fazer mudanças radicais, por mais frustrante que isso possa ser, espero que haja uma sabedoria também em permitir que as decisões sejam tomadas quando realmente haja consenso”, disse ela, chamando isso de uma prática mais “decolonial”.
Para Meneses, outra conquista importante do papado de Francisco é criar espaços de escuta. “Acho que uma verdadeira forma de enfrentar e de conter o colonialismo é permitir que diferentes vozes se expressem e se façam ouvir”, disse, sublinhando que isso vai além de “ser voz de quem não tem voz ou de dar voz ao outro”.
Nzumbu concordou, escrevendo: “A sinodalidade reduzirá a impressão de uma Igreja ainda colonial no Sul global”, acrescentando que outras instituições, como as Nações Unidas, deveriam reconhecer essa abordagem de Francisco.
Desde 2015, Francisco tem usado com frequência o termo “colonização ideológica” para criticar o modo como as sociedades do Norte global podem impor seus valores às do Sul global. Ele também usou a expressão para criticar em geral aquilo que ele chama de “teoria de gênero” ou “ideologia de gênero”.
Dani Dempsey, professora associada de Estudos Religiosos na Mount Allison University em New Brunswick, Canadá, que estudou o uso do termo por Francisco em sua dissertação, diz que Francisco usa a expressão “colonização ideológica” para se referir ao feminismo, à inclusão trans e queer, e à atração por pessoas do mesmo sexo.
No entanto, Dempsey, que usa todos os pronomes de gênero, disse que a análise de Francisco é a-histórica. Dempsey disse que a Igreja Católica Romana e outras expressões do cristianismo impuseram ideias normativas sobre “a conexão entre sexo, gênero e sexualidade” por meio do colonialismo dos primeiros colonos.
“Nascer com um pênis ou com uma vagina ditava as expectativas sociais e psicológicas desses humanos”, disse Dempsey.
Dada a compreensão de Francisco sobre o colonialismo, suas declarações bem divulgadas de acolhida às pessoas LGBTQ+ não agradam Dempsey, porque a estudiosa diz que Francisco não mudou a política oficial da Igreja em relação à identidade de gênero e às relações não heterossexuais.
“O fato de as pessoas e as mulheres queer e trans e outras minorias de gênero não terem sofrido o suficiente para justificar a intenção de uma mudança doutrinal e social institucional, sugere para mim um nível de insinceridade, pelo menos de fato, senão até em teoria”, disse Dempsey.
Dempsey espera ver a Igreja enquadrar essas questões como “uma opção preferencial pelos marginalizados” e que a Igreja comece a “levar a sério o sofrimento de alguns desses humanos”.
Mulheres católicas, incluindo algumas acadêmicas, também criticaram a posição de Francisco sobre gênero e sexualidade como confusa ou incoerente, diante do trabalho anticolonial do papa. No entanto, outras mulheres disseram que Francisco está limitado pela vigorosa oposição que enfrenta.
A Ir. Ana María Siufi, da província das Irmãs da Misericórdia em Neuquén, na Argentina, disse que, embora haja mais trabalho sendo feito nas questões de inclusão das mulheres na governança da Igreja e na reconciliação com os povos indígenas, “também não podemos acreditar que [Francisco] realizará o milagre de transformar toda a Igreja”.
Siufi disse que, em todos os setores da Igreja, há pessoas “que não entendem a responsabilidade da Igreja ou não querem ver essa responsabilidade pelo genocídio indígena ou pela colonização”.
Enquanto os católicos olham para o futuro do papado de Francisco, muitos esperam que o papa volte sua atenção para o papel histórico da Igreja em relação ao colonialismo.
“Na África, no Sul global, a Igreja tem sido uma Igreja colonial”, disse Nzumbu. “A África sofreu muito com a escravidão.”
“Será que estamos prontos para ir mais fundo na nossa Igreja para ver o que ela fez em todos os continentes, não apenas aqui na América e consertar isso?”, perguntou Nzumbu.
Em 2022, Francisco visitou o Canadá, onde Nzumbu atualmente cursa seu doutorado, e pediu perdão pelo que chamou de “obra genocida” da Igreja nas escolas residenciais do país, uma rede de internatos para povos indígenas que retirou crianças de suas famílias e forçou a assimilação na cultura dominante.
Francisco também rotulou a “Doutrina da Descoberta”, uma política papal do século XV que oferecia uma justificação teológica para a colonização, como “má e injusta”. No entanto, o papa ainda não revogou formalmente essa doutrina, embora as nações indígenas tenham visitado o Vaticano para pedir sua retratação oficial.
Outro ponto de dor para alguns povos indígenas é a decisão de Francisco de canonizar Junípero Serra, um franciscano espanhol do século XVIII que fundou missões na Califórnia. Enquanto os defensores de Serra o retratam como um defensor dos povos indígenas, os críticos de Serra destacam o trabalho forçado e os castigos corporais nas missões, assim como o dramático declínio da população indígena durante o período da missão.
Na América Latina, membros das comunidades eclesiais de base disseram ao NCR que sua prática anti-hierárquica de culto em pequenas comunidades é o caminho descolonial para a Igreja.
Rossy Iraheta, na região de Bajo Lempa em El Salvador, e Daniel Parra Toledo, em Frutillar, Chile, participam de comunidades eclesiais de base que atuam de modo autônomo em relação à Igreja institucional.
Iraheta disse que as comunidades representam uma forma de romper com as normas opressivas e patriarcais que foram transmitidas pela Igreja institucional desde que os colonizadores converteram os povos indígenas latino-americanos à força.
Nem todas as comunidades eclesiais de base funcionam de modo autônomo em relação à Igreja institucional. A Ir. Fátima Espínola, da Congregação Compañía de María, acompanha comunidades eclesiais de base em Santa María de Fe, Paraguai.
Espínola disse que, durante o papado de Francisco, a possibilidade de grandes mudanças na Igreja tem sido empolgante, especialmente no que diz respeito às esperanças de um melhor empoderamento de pessoas leigas e pobres.
A comunidade de Iraheta continua aprendendo com Francisco, estudando a encíclica Laudato si’, de 2015, e a encíclica Fratelli tutti, de 2020. Ela elogiou a oportunidade de diálogo com a hierarquia no processo de três anos, ainda em curso, para o atual Sínodo dos Bispos. No entanto, ela disse que acha que Francisco está limitado pelas suas próprias experiências de vida em sua abordagem às mulheres na Igreja.
Parra acredita que Francisco não será capaz de enfrentar adequadamente o colonialismo na Igreja, apesar de suas boas intenções. “Eu vejo que ele está lutando sozinho contra todos esses poderes, e isso é difícil. É difícil mudar uma estrutura tão grande”, disse Parra.
“Acreditamos que a única solução possível é encorajar as comunidades”, disse ele.
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“Injustiça e crime”: a postura do Papa Francisco diante do papel da Igreja no colonialismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU