28 Mai 2015
A canonização vindoura de Junípero Serra está causando polêmica na medida em que os seus apoiadores o consideram como o franciscano que trouxe o cristianismo aos índios da Califórnia, enquanto os seus opositores o veem como um conspirador para a opressão destes mesmos índios ao lado do império espanhol. O Papa Francisco irá canonizá-lo numa missa no dia 23 de setembro em Washington, DC.
A entrevista é de Thomas Reese, publicada por National Catholic Reporter, 15-05-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quem foi Serra? O que devemos pensar sobre ele?
Em busca de respostas, falei com Robert Senkewicz, professor de história na Santa Clara University e especialista em história do início da Califórnia. Senkewiczn e autor de uma série de livros sobre o assunto, incluindo o título recém-publicado “Junípero Serra: California, Indians, and the Transformation of a Missionary”, que escreveu com a sua esposa Rose Marie Beebe.
Eis a entrevista.
Quem foi Junípero Serra?
Junípero Serra foi um franciscano do século XVIII, professor de filosofia muito bem sucedido em Mallorca, Espanha. A certa altura de sua vida, ele se voluntariou para vir às missões do Novo Mundo, onde os franciscanos estavam trabalhando desde o século XVI. Serra chegou à Cidade do México em 1 de janeiro de 1750.
Passou oito anos trabalhando em uma região do México, localizada a cerca de 150 quilômetros ao norte da Cidade do México, chamada Sierra Gorda entre os índios Pame, que haviam sido evangelizados um pouco antes de sua chegada.
Em seguida, passou outros oito anos trabalhando em vários cargos administrativos em instalações missionárias na Cidade do México. Durante este período, participou também do grupo missionário viajaria e tentaria aumentar o fervor religioso em várias paróquias.
Quando os jesuítas foram expulsos da Nova Espanha em 1767, Serra foi enviado para ser o missionário líder a assumir as antigas missões jesuítas em Baja California. No ano seguinte, o governo espanhol decidiu mover a fronteira em direção ao norte: de Baja California para Alta California.
Animado, Serra se voluntariou para trabalhar aqui e acompanhou a expedição que foi de Baja California para Alta California. Passou os 15 anos restantes de sua vida como presidente das Missões de Alta California. Sob a sua presidência, nove missões foram criadas.
Qual era a finalidade das missões?
Elas tinham, inevitavelmente, uma dupla finalidade. No sistema espanhol, os missionários eram pagos pelo governo de forma que acabavam sendo funcionários tanto da Igreja quanto do Estado.
Do ponto de vista da Igreja, a finalidade das missões era difundir o Evangelho aos que não haviam sido batizados.
Do ponto de vista do Estado, as missões eram instituições que buscavam assimilar os povos nativos, fazendo-os cidadãos do império. Isso implicava, entre outras coisas, aprender a agricultura ao estilo europeu, tornar-se católico e viver em um arranjo do tipo povo congregado, tal como as pessoas na Espanha.
Grande parte das tensões neste sistema de missão resultava deste duplo propósito, pois estes dois objetivos sem sempre coexistiram facilmente um com o outro.
E quanto ao objetivo religioso? Como ele tentava converter os índios?
A estratégia missionária preferida de Serra era tentar criar uma comunidade na qual os povos nativos chegariam, aos poucos, a entender a verdade do Evangelho.
No nosso livro, Rose Marie e eu sustentamos que alguns sermões quaresmais que Serra deu a um grupo de Poor Clares, em 1744 em Majorca, delineavam tal estratégia. Neles, Serra usou, como tema recorrente, um trecho do Salmo 34 (33): “Provem e vejam como Javé é bom”.
Ele dizia que Deus é como um doce culinário, um pedaço de doce. Se nunca o provamos, não sabemos o que estamos perdendo. Mas uma vez que o provamos, adquirimos um desejo crescente por ele.
É assim que Serra pensava que o processo de conversão funcionaria. Os povos nativos seriam, aos poucos, expostos a uma comunidade cristã e, gradualmente, veriam que os seus desejos mais profundos estavam sendo realizados como membros desta comunidade.
Por que os índios realmente iam para as missões?
O povo nativo entrava para as missões na Califórnia por vários motivos. Sem dúvida, alguns estavam verdadeiramente interessados no catolicismo. Outros apresentavam os seus filhos doentes para o batismo na esperança de que o sacerdote pudesse curá-los.
Alguns vinham porque havia alimento nas missões. Isso era importante, pois o que estava acontecendo na Califórnia era que os militares e missionários espanhóis traziam grandes quantidades de cavalos, mulas, burros, ovelhas e cabras com eles. Estes animais, de forma inevitável e rápida, destruíam plantas, bolotas e bagas que haviam sustentado uma forma de vida tradicional durante séculos.
A presença colonial espanhola fez, muito rapidamente, com que ficasse quase impossível a manutenção dos modos tradicionais de vida nativa. Então, algumas pessoas vinham para dentro do sistema de missão porque os modos tradicionais de vida e de sustento que levavam estavam sendo destruídos pelos invasores coloniais.
Serra percebeu isso?
Provavelmente não.
Como este objetivo religioso das missões se enquadrava com o outro objetivo, o objetivo imperial?
Serra sabia que fazia parte do império espanhol e acreditava nele. Mas ele e outros missionários achavam que uma parte importante do papel que desempenhavam era o de proteger os povos nativos das piores tendências do império.
Sob uma maneira de avaliar o colonialismo que remonta aos dominicanos do século XVI Antonio de Montesinos e Bartóleme de las Casas, os missionários geralmente pensavam que eles protegiam os povos nativos da exploração potencial por parte de soldados, fazendeiros, mineiros e colonos.
Assim, eles em geral tentavam manter os povos nativos separados destes grupos. Ao assim procederem, eles encurtavam algumas explicações: em termos gerais, não se dava uma explicação completa aos povos nativos de que o batismo era, de certo ponto de vista, um compromisso para toda a vida e que entrar no sistema das missões era um caminho de mão única – podia-se entrar nele, mas não era permitido sair.
O senhor diria então que os índios foram escravizados pelos missionários?
Coerção e força faziam parte do sistema de missão, mas eu não diria que os índios foram escravizados. A escravatura é um sistema jurídico específico. Usar este termo no contexto americano se aproxima da forma como os africanos eram tratados no sul americano, e esta situação era de um tipo muito diferente. Os índios eram, definitivamente, considerados inferiores. Porém não eram reconhecidos como propriedade, mas como pessoas.
Qual foi a atitude e o comportamento de Serra para com os índios?
A sua atitude e o seu comportamento eram, explicitamente, paternalista. Junto com provavelmente 99% das pessoas na Europa daquela época, ele pensava que os não europeus eram inferiores aos europeus. Havia um grande debate no começo do império espanhol sobre se os povos nativos eram, ou não, seres plenamente racionais.
Na época em que Serra chegou ao Novo Mundo, muitos pensadores espanhóis acreditavam que os povos nativos das Américas estavam em um estado de “infância natural”, que eram crianças. Serra partilhava desta visão e, basicamente, tinha uma atitude paternalista para com eles.
Esta atitude paternalista poderia, por vezes, resultar em um comportamento que qualquer um hoje acharia muito difícil justificar. Se as pessoas deixassem a missão sem permissão, elas eram perseguidas e caçadas pelos soldados e por outros índios. Se eram trazidas de volta, a punição normal era a flagelação. O que os militares e missionários espanhóis achavam que estavam fazendo era que estavam punindo crianças para fazê-las entender como deveriam se comportar.
Os índios se convertiam nas missões?
Está bastante claro que, no começo, os povos nativos faziam aquilo que os europeus, os chamados “bárbaros”, haviam feito um milênio antes. Eles interpretavam o cristianismo à suas próprias maneiras, através de suas próprias deidades e espiritualidade. Assim, o que resultou nas missões foi uma mistura, um sincretismo, uma nova fusão da espiritualidade indígena da Califórnia com uma espiritualidade católica importada da Espanha e do México.
Com o passar do tempo, alguns missionários entenderam isto e aceitaram. Outros ficaram um tanto impacientes. Serra ficou, muito provavelmente, numa posição intermediária.
Serra gostava dos índios?
Enquanto pesquisávamos para a produção do livro, chegamos à conclusão de que Serra era, pessoalmente, um indivíduo muito mais complexo do que reconheceram os seus defensores ou detratores. Ele poderia ser muito discordante.
Por um lado, ele realmente gostava de estar entre os povos nativos que não haviam sido batizados, pois esta era a razão pela qual ele havia vindo para o Novo Mundo.
Por exemplo, ele manteve um diário da sua viagem de Loreto, em Baja California, até San Diego, em 1769. Para ele, um dos dias mais marcantes de sua vida foi num lugar em Baja California onde um grupo de nativos não batizados surgiu dos bosques e se apresentaram ao sacerdote. Esta era a primeira vez em sua vida que ele tinha pessoalmente encontrado um grande grupo de índios não batizados. Ele se emocionou.
Em seu diário, escreveu: “Beijei o solo e agradeci a Deus por me dar o que eu, por tantos anos, ansiei”. Para ele esta foi uma experiência muito emocionante. Depois de 19 anos aqui, finalmente estava prestes a fazer aquilo a que veio: pregar para pessoas não batizadas.
Eu penso que alguns povos nativos com os quais ele se encontrou compreenderam que Serra realmente queria estar aí. Ele de fato gostava de estar com os nativos porque sentia que a sua identidade como missionário era a coisa mais importante para ele.
Afinal de contas, Serra havia sido um professor e pregador extremamente querido. Era bem provável que ele tornaria o provincial franciscano de Mallorca. Ele desistiu de tudo isso porque achava que a sua vida acadêmica não lhe estava satisfazendo. Queria fazer um trabalho pastoral direto.
É sempre muito difícil intuir os pensamentos, os motivos e o comportamento genuíno dos povos nativos através dos escritos das autoridades coloniais, mas eu considero razoável supor que alguns povos nativos, especialmente na região ao redor da qual ele passou a maior parte do seu tempo, Carmel, compreendiam-no e o apreciavam. Serra era alguém que se alegrava ao máximo quando se via envolvido diretamente com o trabalho pastoral.
Ela não ficava feliz quando tinha que lidar com soldados e governantes. Serra nunca se encontrou com um governante militar que tenha gostado. Ele lidou com três deles e desgostou-se de todos.
Ele também tendia a ficar infeliz quando tinha de lidar com os superiores religiosos na Cidade do México. Às vezes, pensava que estas pessoas não entendiam o que ele estava tentando fazer. Os seus superiores frequentemente achavam-no impaciente demais e muito imprudente ao criar tantas missões em tão pouco tempo. Talvez esta crítica vinha junto com o território. Com efeito, o missionário jesuíta no Arizona, Eusebio Kino, experimentou restrições parecidas por parte de seus próprios superiores.
A certa altura, Serra se queixou sobre todas estas coisas: “Estou passando a metade da minha vida numa escrivaninha compondo relatórios”. Ele claramente se irritava com todo o esforço que tinha de dar para realizar tal atividade.
O que mais o alegrava era o trabalho como missionário entre os não batizados. O que o fazia particularmente feliz era quando podia trabalhar diretamente com os povos nativos. Quando descrevia esta interação humana, ele tendia não a reconhecer o fato de fazer parte de um sistema colonial mais amplo que poderia, às vezes, ser muito brutal e sangrento.
Os índios gostavam dele?
Alguns certamente gostavam dele. A cultura nativa da Califórnia não era uma cultura escrita. Era uma cultura oral. Então, os estudiosos têm tentado inferir como os povos nativos reagiam, pesquisando por meio de relatos obviamente tendenciosos de escritores espanhóis. Mesmo assim, acho que alguns realmente gostavam e tinham orgulho dele. Eles o chamavam de Padre Viejo, “Padre Velho”.
Ele gostava deste apelido. Serra era consideravelmente mais velho do que a maioria dos outros espanhóis ou mexicanos que os nativos estavam conhecendo. Ele era também menor e mais frágil que a maioria deles. Creio que alguns dos índios meio que o adotaram como um mascote.
Em dezembro de 1776, por exemplo, ele estava viajando pela região de Santa Barbara e então houve uma forte tempestade. Assim, o pequeno destacamento com o qual ele estava viajando teve de abandonar a praia em que estavam para subir o sopé, pois as ondas estavam chegando até eles. Todos acabaram atolados na lama.
De repente, do nada um grupo de índios Chumash apareceu. Eles pegaram Serra e o carregaram por cima da lama de forma que ele pudesse continuar a sua jornada. Ficaram com ele por alguns dias, e Serra tentou ensiná-los a cantar algumas músicas. Isso era o tipo de coisa que ele adorava fazer.
Outros povos nativos, por exemplo os Kumeyaay – que, em 1775, lideraram uma rebelião em San Diego que destruiu a missão e matou um dos sacerdotes –, claramente não gostavam do sistema de missão. Na verdade, depois deste episódio Serra escreveu ao seu vice-rei e pediu que, se ele fosse morto pelas mãos de um índio, este não deveria ser executado, mas sim perdoado.
Então, alguns gostavam dele e outros achavam que ele era alguém que estava destruindo a forma deles de viver. A resposta nativa à ocupação espanhola da Califórnia foi parecida com a resposta nativa às muitas incursões do colonialismo europeu nas Américas.
Para apoiar o sistema de missão os índios foram explorados?
Sim. Como consequência de certas circunstâncias, após a morte de Serra em 1784 o sistema de missão se tornou uma espécie diferente de lugar.
Em 1810 rompeu a insurgência pela independência no México, sob a liderança de Miguel Hidalgo e Juan María Morelos. Se você fosse o vice-rei à época, iria fazer qualquer coisa para derrotar tal movimento. Dessa forma, o navio de abastecimento, que todo ano chegava à Califórnia vindo do México, deixou de vir porque todos os recursos foram deslocados para a luta contra Hidalgo e Morelos.
De repente, a Califórnia não estava mais recebendo a sua reposição regular de suprimentos. As instituições na Califórnia melhor equipadas para lidar com a situação eram as missões, porque naqueles tempos elas eram os mais capacitados na lida para produzir alimentos.
Eles também contavam com ferreiros, carpinteiros e outros trabalhadores especializados. Alguns destes habilidosos trabalhadores eram índios, os quais haviam aprendido com os artesãos mexicanos nas missões, e que passariam os seus conhecimentos para as gerações seguintes. Então, as missões se tornaram o motor econômico da Califórnia, principalmente a partir de 1810.
O resultado foi que as missões começaram a chegar cada vez mais longe do litoral para captar mais nativos a fim de manter em alta os níveis de produção. No começo da década de 1820, os missionários eram quase tanto fazendeiros quanto o eram missionários. Eles vendiam os seus couros e sebos a mercantes americanos e britânicos que faziam comércio ao longo da costa litorânea.
Definitivamente, os missionários não se descreviam como fazendeiros, mas eu acho que foi isso o que aconteceu. E as preocupações concernentes à vida de fazendeiro e a atividade missionária nem sempre coexistiram pacificamente.
Por exemplo, a liberdade das pessoas de se movimentarem dentro da missão se tornou mais restrito. Um exemplo era que as meninas e mulheres eram trancadas à noite porque os missionários achavam, com razão, que alguns soldados iriam estuprá-las caso elas estivessem desprotegidas.
Mas colocar tantos indivíduos juntos em um lugar fechado e, frequentemente, apertado criou um ambiente nada saudável. Meninas e mulheres estavam particularmente vulneráveis a doenças importadas contra as quais não haviam desenvolvido nenhuma imunidade. Por essa e outras razões, tais como a carga pesada de trabalho, o índice de mortes nas missões era altíssimo e só crescia com o passar dos anos.
Obviamente, os missionários não sabiam sobre a teoria dos germes, ou algo parecido. Mas sabiam que as pessoas estavam morrendo em grande quantidade, pois eles faziam os funerais e mantinham registros completos de todos os detalhes sacramentais. Alguns ficavam extremamente chateados, enquanto outros parecem ter se contentado com a garantia de que estas mortes significavam, simplesmente, que mais almas estavam indo para o céu. É chocante e irritante ler estas palavras hoje.
Os franciscanos ou a Igreja enriqueceram com as missões? Alguma parte do lucro das missões voltava para o México ou a Espanha?
No quarto de século após 1810, as missões geravam uma renda considerável. Mas um estudo detalhado do sistema financeiro e dos livros contábeis das missões indica, muito claramente, que a esmagadora maioria desta renda – mais de 90% – voltava diretamente para as atividades missionárias, especialmente para o vestuário dos povos nativos e suprimentos litúrgicos, catequéticos e sacramentais. Muito pouco ficava retido na Cidade do México ou ia para a Espanha.
Parece infundada a acusação feita por alguns opositores das missões à época e ocasionalmente repetido desde então, de que a Igreja, em geral, ou os missionários, em particular, estavam se enriquecendo.
O que aconteceu com os índios e a terra de missão quando o governo mexicano terminou com o sistema de missões na década de 1830?
Os padres sempre diziam: “A terra pertence aos índios, e nós somos os depositários deles”. De acordo com várias leis, esta era a realidade em termos técnicos. Mas, na verdade, a terra fora dividida entre as principais famílias da Califórnia pelo governo mexicano.
Então, os índios se tornaram mãos de fazendeiros naquilo que se transformou em ranchos. Nesses lugares, muitos índios se tornaram trabalhadores valorizados por causa das habilidades que aprenderam nas missões. No entanto, às vezes as suas vidas se assemelhavam, e muito, àquela que haviam conhecido nas missões. A principal diferença era que eles poderiam deixar o local se quisessem.
Diante de tudo isso, o que se pode falar sobre a canonização de Serra?
Sou historiador, não teólogo. Mas tentei acompanhar o debate e, realmente, conheço muitos californianos nativos que se opõem decididamente à canonização do Pe. Serra. Grande parte dos argumentos são bem fundamentados, articulados, passionais e pessoais.
Acho que muitos destes posicionamentos partem de duas inquietações. Em primeiro lugar está a inquietação de que canonizar Serra significa, por implicação, aprovar o sistema de missão inteiro, incluindo todas as punições, doenças e mortes que fizeram parte dele. A segunda é que canonizar Serra é justificar e encobrir o papel da Igreja na expansão colonial – abençoar, por assim dizer, a expansão europeia nas Américas, a perda horrível de vidas dos nativos e a terra que foi parte e parcela deste processo.
No primeiro aspecto, temos uma seção em nosso livro sobre como, sob a influência do movimento de avivamento espanhol no sul da Califórnia no final do século XIX, Serra se tornou um símbolo para praticamente tudo o que aconteceu na Califórnia antes de ser anexada aos EUA. Serra foi transformado em um tal símbolo por um grupo de ingleses que procuravam levar a cabo os seus próprios objetivos.
Eu pessoalmente não acho legítimo fazer de Serra um substituto para os 65 anos de experiência missionária na Califórnia. Depois de sua morte o sistema se desenvolveu de uma maneira que ele não havia pensado ou pretendido. Então, eu particularmente não creio que, ao canonizá-lo, a Igreja pretenda dizer que está abençoando tudo o que aconteceu nas missões desde o tempo em que elas se iniciaram até o momento em que tiveram um fim. Eu não creio que uma canonização signifique que a pessoa seja perfeita ou que tudo o que aconteceu após a sua morte, até mesmo algumas consequências imprevistas ou não desejadas, foi necessariamente bom e benéfico. Se estes fossem os critérios, provavelmente ninguém nunca teria sido canonizado!
No segundo aspecto, a noção de que a Igreja não deveria ter se envolvido na expansão colonial, penso ser esta uma maneira muito simplista de ver a história. O estudo do passado é sempre um diálogo entre o passado e o presente, e eu temo que esta noção esteja demasiadamente focada no presente a ponto de negligenciar o passado.
Como disse acima, em geral os missionários pensavam que eles representavam o lado “mais suave” do colonialismo, que estavam protegendo os povos nativos de partes mais opressoras do sistema. A Igreja Católica e Serra fizeram definitivamente parte do processo colonial. Ainda que consigamos compreender as pessoas no século XXI que dizem que a religião deve ficar de fora grilagem de terras coloniais e se recusar a justificá-las, não podemos simplesmente exportar esta visão de volta ao século XVIII. O difícil de se aceitar é que parte do poder europeu estava avançando para a Califórnia, e a única dúvida da Igreja era se ela queria tentar influenciar neste processo a partir de dentro ou se queria permanecer do lado de fora e deixar de lado qualquer influência.
Aliás, sabemos o que aconteceu quando grupos religiosos não se fizeram presentes para tentar proteger os povos nativos e quando não se envolveram na expansão colonial em territórios nativos. O exemplo da expulsão dos índios de muitas regiões nos EUA do século XIX é um exemplo sombrio. Na verdade, se houve um genocídio contra os povos nativos na Califórnia, ele aconteceu durante a corrida pelo ouro, nos anos 1850, quando os americanos ofereceram recompensas por escalpos indígenas, e os povos nativos do norte da Califórnia foram brutalmente dizimados e oprimidos.
Quaisquer que sejam os seus defeitos, nunca nenhum missionário espanhol ou mexicano na Califórnia chegou próximo de proferir o refrão que se ouvia entre os norte-americanos do século XIX, de que “o bom índio é o índio morto”. E nada parecido com os massacres de Sand Creek e Wounded Knee ocorreu em conexão com as missões californianas.
Eu não sei o que o Papa Francisco pretende ao anunciar a canonização de Junípero Serra. Mas posso entender que, na disposição desse missionário em sacrificar o conforto de uma carreira muito bem sucedida, em renunciar a ascensão nas carreiras acadêmicas e eclesiásticas, para viajar meio mundo a fim de viver o resto da vida entre pessoas que ele nunca tinha visto, mas que as amou profunda e genuinamente, e sair sem as muitas vantagens que ele facilmente poderiam ter ganhado, podemos ver qualidades muito consistentes com aquilo que a Igreja, há muito, defende como indícios de santidade.
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Junípero Serra, santo ou não? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU