13 Março 2023
Nesta pintura, os braços da lei são dois mal-encarados terríveis: terríveis pela inconsciência de sua própria desumanidade. É assim que Caravaggio transcende seu tempo, e também fala a nós. A nós, que hoje vemos naquele corpo todos os corpos inocentes que chegam sem vida às nossas praias.
O comentário é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 10-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estamos em San Domenico Maggiore, a grande igreja gótica que atravessou toda a história de Nápoles e que, durante séculos, irradiou uma luz de conhecimento por toda a Europa. Aqui ensinou Tomás de Aquino, aqui se formaram grandes dominicanos da dissidência, como Giordano Bruno e Tommaso Campanella. Aqui Caravaggio obteve uma grande encomenda pública: o retábulo da capela De Franchis, a primeira da nave esquerda entrando pelo portal principal.
Assim nasceu a Flagelação de Cristo, infelizmente musealizada em Capodimonte desde 1972.
“Flagelação de Cristo”, óleo sobre tela, Michelangelo Mersi, chamado Il Caravaggio, 1607, Museu de Capodimonte, Nápoles (Foto: Wikimedia)
Radiografias demonstraram que Caravaggio pensou em inserir, onde agora há um segundo carrasco à nossa direita, uma figura de joelhos, com um hábito religioso e capuz: talvez um São Domingos, uma invenção com uma longa série de precedentes desde a Idade Média em diante.
Depois, Caravaggio mudou de ideia e decidiu não colocar a coluna – a coluna do pretório de Pilatos, que se achava que havia sido levada a Roma, onde era muito venerada – no centro do quadro. Optou por violar a simetria, mesmo que depois a recompôs com o segundo flagelador.
Estamos em 1607, e Caravaggio se vale de seu próprio repertório romano: os algozes são muito próximos dos da Crucificação de São Pedro na capela Cerasi, e por outro lado o corpo de Cristo – que lembra peças muito célebres da escultura antiga, como o Torso do Belvedere, muito caro a Michelangelo – lembra aquele, já cadáver, do Cristo na Deposição de Vallicella – o quadro mais clássico, no fundo o mais fácil, de toda a sua obra.
Além de repensar a si mesmo, nesse quadro Caravaggio medita sobre os precedentes de Ticiano e de Sebastiano del Piombo: mas, no fim, encontra uma solução, como sempre, profundamente inovadora. Uma imagem muito forte, violenta, que escava as figuras do preto. Tão forte a ponto de transcender o tema sacro, desnudando o tema subjacente: a execução de uma sentença sobre o corpo de um condenado.
Só que o condenado é tão belo que parece inocente. E os braços da lei são dois mal-encarados terríveis: terríveis pela inconsciência de sua própria desumanidade. É assim que Caravaggio transcende seu tempo, e também fala a nós. A nós, que hoje vemos naquele corpo todos os corpos inocentes que chegam sem vida às nossas praias. A nós que, na brutal desumanidade dos carrascos, vemos os rostos dos ministros que acusam os migrantes de irresponsabilidade e depois os fazem morrer.
Terríveis, mais uma vez, pela inconsciência de sua própria desumanidade.
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Os inconscientes carrascos de Caravaggio. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU