21 Fevereiro 2023
"Tecendo uma trajetória tão marcadamente conturbada de visível rejeição popular, a concessão privada oferece argumentos suficientes para os parlamentares recomendarem uma mudança significativa no modelo de gestão dos serviços de água e esgoto. É necessário transitar de uma gestão mercadocêntrica e irresponsável para uma gestão pública participativa e transparente", escreve Sandoval Alves Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG), membro da Companhia de Jesus atuante no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
No último dia 15 de fevereiro, quarta-feira, um novo pedido de investigação da concessionária de água e esgoto de Manaus é apresentado à Câmara Municipal da cidade (CMM), recebendo apoio de 18 vereadores. Com assinaturas suficientes para a instalação de um inquérito contra a empresa Águas de Manaus, o requerimento é aceito pelo presidente da Mesa Diretora e será avaliado pela Procuradoria da Câmara Municipal, responsável por analisar os critérios da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Trata-se do terceiro inquérito parlamentar contra a concessão de água e esgoto da cidade de Manaus desde o ano 2000, quando esses serviços foram privatizados pelo ex-governador Amazonino Mendes (1939-2023). A privatização foi um processo tumultuado, sendo eivado de irregularidades e marcado por polêmicas. Lideranças comunitárias saíram em defesa do saneamento público, denunciando os males do empreendimento privado e evidenciando as contradições da negociação. Diziam que a população era ludibriada e recebia um presente de grego.
As lideranças comunitárias estavam corretas. A instauração dessa nova CPI agrega à história daquela concessão mais uma demonstração inegável do equivoco realizado há 23 anos. A concessão já passou pelas mãos de 4 grupos empresariais, que se interessam somente pelo retorno econômico do empreendimento, apresentando desempenhos medíocres para a população. Diante dessa deplorável atuação, as duas primeiras CPIs (2005 e 2012) recomendaram a quebra imediata do contrato de concessão e pediram a punição dos responsáveis pelo caos na cidade.
Com esse novo inquérito, mostraremos novamente não apenas a perversidade da concessão dos serviços de água e esgoto em Manaus, mas também indicaremos a hipocrisia daqueles que garantem melhorar a qualidade de vida do povo através da privatização dos serviços básicos. A investigação evidenciará a prática da cobrança fraudulenta de serviços que não são oferecidos e a concessionária terá que explicar os reajustes exorbitantes das tarifas, mesmo em tempo de pandemia, quando ocorre um forte empobrecimento da população.
A sociedade também ficará sabendo que a privatização foi realizada sob a condição de que 90% da cidade teriam hoje os serviços de esgotamento sanitário, mas somente 22% de Manaus usufruem desses serviços (SNIS 2020). Os parlamentares descobrirão que a empresa exclui do seu mapa de atuação centenas de comunidades pobres espalhadas pela cidade, por isso dizem que já universalizaram o serviço de abastecimento de água em Manaus. Ela não quer saber dessas comunidades, uma vez que elas não oferecem os retornos econômicos tão esperados pelos financistas.
Ficará evidenciado que a privatização não trouxe investimentos privados para o saneamento de Manaus. Se houve alguma expansão dos serviços de água e esgoto, ela foi realizada à custa de recursos públicos, como o Programa Águas para Manaus (PROAMA) e a ETE do Educandos. Assim, a população é extorquida duplamente: financiando obras da empresa e pagando tarifas elevadas. Trata-se de uma cruel espoliação urbana, como sinalizou o sociólogo Lucio Kowarick, referindo-se à violação de direitos dos trabalhadores de São Paulo.
Essa violação de direitos também é percebida através da negação da tarifa social para as populações mais pobres. Recentemente a empresa foi obrigada pela justiça a beneficiar pelo menos cem mil famílias em Manaus, mas sabendo que a população vulnerável ultrapassa a marca das 250 mil famílias (CadÚnico). Estudos divulgados pela Unicef (Fundação das Nações Unidas para a Infância) sugerem que grande parte dessa população vulnerável é constituída por crianças de 0 a 17 anos. A instituição informa que o saneamento básico é uma das principais carências entre as 32 milhões de crianças pobres no Brasil. Essas crianças estão presentes principalmente nas regiões Norte e Nordeste.
Essa situação tem impulsionado diversas organizações a abraçarem a bandeira dos direitos humanos à água e ao saneamento. Essa bandeira apresenta incompatibilidade com o mercado da água, visto que este último não vislumbra as necessidades das pessoas, mas obedece ao imperativo dos negócios, que se expressa na ampliação infinita dos lucros. Tal imperativo tem gerado efeitos negativos para as pessoas e para o ambiente, produzindo doenças, reforçando a pobreza e poluindo os rios e igarapés da cidade.
Tecendo uma trajetória tão marcadamente conturbada de visível rejeição popular, a concessão privada oferece argumentos suficientes para os parlamentares recomendarem uma mudança significativa no modelo de gestão dos serviços de água e esgoto. É necessário transitar de uma gestão mercadocêntrica e irresponsável para uma gestão pública participativa e transparente. A instauração da CPI da Águas de Manaus oferece à sociedade a oportunidade de uma avaliação pública da concessão privada e apresenta mais uma ocasião de os vereadores mostrarem de que lado estão jogando.
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Manaus: privatização de água e esgoto é novamente investigada. Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU