Secretário-executivo do Ministério recém-criado para atender os povos originários destaca que estas demarcações têm estreita relação com os compromissos assumidos como a preservação ambiental e tentativas de minimizar o caos climático
Desde a Constituição de 1988, a demarcação de terras destinadas a povos originários tem de ser uma das prioridades do Estado brasileiro no referente a políticas públicas para os povos indígenas. Mas, como bem reconhece o indígena, professor e jurista Eloy Terena, isso não tem sido feito, e nos últimos anos temos vivido um imenso retrocesso. É por isso que ele é enfático ao afirmar: “a demarcação de terras é a demanda primordial do movimento indígena brasileiro”. Segundo ele, que assume como secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, essas ações serão prioritárias ao novo governo Lula. “A demarcação das terras indígenas, o enfrentamento ao garimpo ilegal nesses territórios e a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato serão questões cruciais a serem encaradas”, reitera.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, poucos dias depois de ter sido anunciado como o segundo nome do Ministério, Eloy diz que, embora os indígenas sejam o público-alvo das demarcações, não são só eles que serão beneficiados. “As demarcações não afetam somente a preservação das culturas indígenas. A manutenção dessas áreas possui importância muito mais abrangente, pois são essenciais para a estabilidade de ecossistemas em todo o planeta, assegurando qualidade de vida, inclusive nas grandes cidades”, explica. Assim, as terras entregues aos indígenas de fato e de direito se convertem também em aliadas no combate ao aquecimento global.
Aliás, ao assumir compromissos de mitigar o caos climático, o governo Lula 3, na visão de Eloy, se afasta das contraditórias gestões petistas do passado, que, enquanto bradavam sobre preservação ambiental, também insistiam nos megaempreendimentos como a única forma de desenvolvimento. “Os governos do PT foram marcados por muitas situações contraditórias, como Belo Monte e outras hidrelétricas, a exemplo de Tapajós, Madeira e Xingu. No entanto, a adoção das referidas pautas como prioridade e a entrada dos indígenas nos espaços institucionais nos fazem crer se tratar de um governo que não mais tomará decisões sem consultar os povos indígenas”, avalia.
Eloy Terena (Foto: Arquivo pessoal)
Luiz Henrique Eloy Amado, ou Eloy Terena, é indígena Terena da aldeia Ipegue, em Mato Grosso do Sul. Atualmente, ocupa o cargo de secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Formado em Direito, possui doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF. Também realizou pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, em Paris.
IHU – O que representam a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a indicação de Joenia Wapichana, uma indígena, para a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai?
Eloy Terena – Representam um momento histórico de princípio de reparação no Brasil, com o envolvimento do movimento indígena em espaços de tomada de decisão, o que é fundamental para que o nosso futuro seja construído com nossa participação. É a primeira vez na história brasileira que temos as lideranças indígenas à frente das tomadas de decisão do Poder Executivo, que refletem diretamente nos territórios tradicionais.
Essas ações do governo são fruto da demanda do movimento indígena e de sua crença na importância da escuta e participação do movimento nesse momento de reconstrução da democracia brasileira, após o Golpe de 2016 e os anos de política de morte dos últimos quatro anos.
Pela primeira vez na história, a Funai será presidida por uma indígena após ter sido usada nos últimos anos para implementar políticas anti-indígenas. Assim, agora retoma sua função de proteger e garantir os direitos dos povos originários. Já a criação do Ministério dos Povos Indígenas, como Sonia Guajajara disse no discurso de posse como ministra, sinaliza ao mundo o compromisso do Estado brasileiro em combater as mudanças climáticas, em incluir e reconhecer os povos indígenas e iniciar uma reparação histórica.
IHU – A partir dessas indicações e anúncios e dos primeiros movimentos, o que podemos inferir das políticas públicas voltadas aos povos indígenas do governo Lula 3?
Eloy Terena – Elas serão retomadas. A transição de governo elaborou um diagnóstico que demonstra que estamos num estado de terra arrasada, especialmente quando se fala de políticas indigenistas. Houve um desmonte sistemático de todas as políticas de proteção, que envolvem desde a demarcação das terras indígenas à prestação de serviços básicos, como políticas de saúde.
A gestão do presidente Lula tratará os direitos indígenas como prioridade, seguindo as determinações estabelecidas na Constituição Federal, nas convenções e nos tratados internacionais e na legislação brasileira, reconstruindo o que foi destruído nos últimos anos. Espera-se que o governo Lula siga as recomendações do relatório final que o Grupo Técnico Povos Indígenas entregou para o gabinete de transição. O documento pede a revogação de leis e atos anti-indígenas, bem como possui vários pontos de alerta que devem ser observados.
IHU – Quais os três maiores desafios e resistências que o novo governo deve enfrentar para a implementação dessas políticas?
Eloy Terena – Estamos em um processo de avaliação da situação atual. De todo modo, a demarcação das terras indígenas, o enfrentamento ao garimpo ilegal nesses territórios e a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato serão questões cruciais a serem encaradas.
São graves os casos de intoxicações provocados por mercúrio dos garimpos. Inclusive, a abertura de terras indígenas para a mineração e o garimpo esteve no centro da agenda do governo Bolsonaro. Este é um dos fatos que ameaça gravemente os povos isolados, que se encontram em estado de alta vulnerabilidade e sofrem um risco iminente de genocídio.
A política anti-indígena de Bolsonaro dentro da Funai envolveu o sucateamento e aparelhamento de entidades estatais especializadas em prover proteção para os povos isolados. Esta é uma das principais reconstruções que devem ser efetivadas dentro da instituição.
IHU – Em que medida podemos considerar que a entrada de indígenas no governo representa não só um outro momento da política pública para os povos indígenas, mas também um outro momento da relação do Estado com a natureza, as outras formas de vida não humanas?
Eloy Terena – A eleição de Lula recolocou o Brasil de volta na agenda climática e ambiental, principalmente no cenário internacional, em especial por suas promessas de zerar o desmatamento na Amazônia, respeitar os povos originários e recuperar o protagonismo nacional na luta pela justiça climática. Exemplo simbólico disso ocorreu logo após a vitória de Lula, durante a COP-27 no Egito, evento para o qual o presidente eleito foi convidado por governadores da Amazônia Legal e pela presidência egípcia e no qual cobrou recursos bilionários prometidos para a preservação ambiental em países em desenvolvimento e reivindicou que a COP-30, em 2025, ocorra na Amazônia brasileira.
Esse posicionamento do novo governo e o consequente espaço institucional cedido para os indígenas é uma decisão política fundamental para a proteção e promoção das formas de vida humanas e não humanas. Tal compromisso advém do reconhecimento de que coabitamos o planeta junto com milhões de outras espécies e desprezá-las ou ignorá-las gera efeitos devastadores para o futuro de todos nós. Também se reconhece que as terras indígenas e os territórios habitados por demais povos e comunidades tradicionais, bem como as unidades de conservação, são essenciais para conter o desmatamento no Brasil e a crise climática enfrentada por toda a humanidade.
As demarcações não afetam somente a preservação das culturas indígenas. A manutenção dessas áreas possui importância muito mais abrangente, pois são essenciais para a estabilidade de ecossistemas em todo o planeta, assegurando qualidade de vida, inclusive nas grandes cidades. Daí a importância de reconhecer os direitos originários dos Povos Indígenas sob as terras em que vivem, pois estas são importantes aliadas no combate ao aquecimento global e na preservação da nossa biodiversidade.
IHU – Em entrevista publicada no IHU, Moysés Pinto Neto observa que Lula e o lulismo chegam diferentes no referente a questões ambientais, deixando de lado o desenvolvimentismo a todo preço dos tempos da descoberta do pré-sal. Como o senhor analisa essa questão? Os governos petistas do passado, que construíram Belo Monte e outros megaempreendimentos gerando muitas consequências socioambientais, ficaram para trás?
Eloy Terena – Como disse na pergunta anterior, temos um governo eleito que colocou como prioridade em sua agenda, tanto na campanha quanto na composição dos ministérios, o enfrentamento à crise climática e a retomada de políticas de proteção socioambiental. Esses devem ser posicionamentos políticos a orientar todas as demais políticas públicas a serem desenvolvidas pela gestão.
Os governos do PT foram marcados por muitas situações contraditórias, como Belo Monte e outras hidrelétricas, a exemplo de Tapajós, Madeira e Xingu. No entanto, a adoção das referidas pautas como prioridade e a entrada dos indígenas nos espaços institucionais nos fazem crer se tratar de um governo que não mais tomará decisões sem consultar os povos indígenas, por exemplo.
IHU – Como analisa a estrutura do Ministério dos Povos Indígenas? Do ponto de vista da organização estatal, o que ela representa e qual a efetividade do espaço que ocupa?
Eloy Terena – A estrutura do Ministério dos Povos Indígenas foi construída a muitas mãos, com participação intensa e protagonismo dos povos indígenas. Sua criação representa também esse protagonismo do ponto de vista institucional e será central para articulação e execução de políticas públicas direcionadas aos povos indígenas. A nova pasta recria órgãos extintos em 2019 e abarca dois importantes órgãos que até então estavam vinculados ao Ministério da Justiça e Segurança Social: a Funai, sucateada durante o governo Bolsonaro, e o Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI, extinto pelo ex-presidente.
A inserção da Funai no ministério significa o reconhecimento da necessidade de aproximar as políticas indigenistas à realidade dos povos indígenas, bem como de incluí-los nos processos de decisão política. Além disso, o foco do ministério será a retomada das demarcações de terras indígenas, o que ficou paralisado durante o governo Bolsonaro.
Para além da Funai, a política de demarcação de territórios do ministério ainda contará com o Departamento de Demarcação Territorial, que analisará os processos de demarcação encaminhados pela Funai, também cabendo ao departamento promover ações de fiscalização e desintrusão nos territórios, acompanhando eventuais reintegrações de posse.
IHU – Há a expectativa de que o Ministério dos Povos Indígenas seja peça fundamental na política intersetorial, especialmente na articulação com Ministério do Meio Ambiente, setores de desenvolvimento econômico, da educação e saúde, entre outros. Em sua opinião, quais caminhos devem trilhados para a construção dessa intersetorialidade? Podemos considerar essa uma espécie de visão ecológica das políticas estatais?
Eloy Terena – Temos mantido um diálogo de muita qualidade junto às outras pastas dos ministérios. Acreditamos que essa interlocução será responsável por manter uma visão de respeito aos direitos indígenas e socioambientais de forma estruturante e transversal. Além de outras pastas ministeriais, haverá uma atuação interseccional com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama e com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio.
Como exemplos do que se espera disso, temos a competência do Ministério dos Povos Indígenas para executar, em articulação com o Ministério das Relações Exteriores, políticas relativas aos acordos e tratados internacionais relacionados aos povos indígenas. E, também, a promoção e o acompanhamento, em articulação com o Ministério da Saúde, do atendimento diferenciado à saúde dos povos indígenas de recente contato, bem como a atuação em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, também do Ministério da Saúde.
IHU – A chamada política indigenista do Estado brasileiro sofreu muitas modificações desde a criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Como avalia essas transformações até chegar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, comandada por uma indígena?
Eloy Terena – Os povos indígenas preferem ser referidos por esse termo, em vez de “índio”, que é um termo colonial e enganoso para se referir a nós. Por isso a mudança no nome da Funai é simbólica. Além disso, ter uma liderança indígena no comando é ter alguém que entende, na sua própria vida, as demandas dos povos indígenas, por isso há uma guinada radical de muita qualidade para tratar dos nossos direitos.
Joenia Wapichana, nova presidente da Funai (Foto: Câmara dos Deputados)
No início da década de 1960, o SPI foi extinto em meio a uma crise na qual sofreu acusações de genocídio, corrupção e ineficiência, sendo substituído pela Funai. Apesar disso, durante o período da ditadura, ainda se manteve o paradigma tutelar e integracionista que regia a relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. Essa perspectiva foi formalmente abolida com a Constituição de 1988, apesar de, na prática, ainda manter-se vigente de diversas formas.
Hoje, com a criação do ministério e com a entrada dos indígenas na Funai, vemos mais um passo na direção de fazermos respeitar a nossa existência e o nosso protagonismo.
IHU – O que as figuras de Sonia Guajajara e Joenia Wapichana representam? Que caminhos devem ser percorridos para que as conquistas personificadas nessas duas figuras sejam efetivas e duradoras?
Eloy Terena – Representam a chegada dos povos indígenas nas estruturas de poder que possuem influência sobre nossas vidas e territórios. A articulação constante com as demais instituições públicas será fundamental para a concretização de políticas públicas que sejam duradouras como políticas de Estado, como deve ser por determinação constitucional, convencional e legal.
A nomeação de Sonia Guajajara, que é reconhecida internacionalmente como líder indígena ativista, é o resultado da lista tríplice da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB para assumir o comando do Ministério dos Povos Indígenas, ou seja, também é um reconhecimento das demandas do movimento indígena pelo presidente logo no início do mandato.
O nome de Joenia também fazia parte desta lista tríplice e, apesar de não ter sido indicada para o ministério, sua ocupação da presidência da Funai tem um significado imenso.
IHU – Qual deve ser a prioridade em termos de políticas públicas aos povos indígenas? Por que e como viabilizar essa prioridade?
Eloy Terena – A demarcação de terras é a demanda primordial do movimento indígena brasileiro desde antes da Constituição Federal de 1988. No entanto, as demandas indígenas são diversas, decorrendo das necessidades de cada povo. E isso deve ser considerado ouvindo-se diretamente cada povo indígena, que é o público-alvo dessas políticas.
Há diversos problemas estruturais que foram imensamente potencializados nos últimos anos e que precisam ser encarados como prioridades, como os graves casos de intoxicações causados pelo mercúrio dos garimpos e pelos agrotóxicos nas grandes lavouras do agronegócio, ou as invasões nos territórios indígenas, as condições degradantes de saúde e saneamento, o aumento da insegurança alimentar, o que inclusive resultou na morte de inúmeras crianças e idosos indígenas, além da desproteção dos territórios onde vivem povos isolados.
IHU – Qual a situação atual das demarcações e quais suas expectativas em termos de avanços?
Eloy Terena – Hoje e desde o início do governo Bolsonaro, o processo de demarcação de terras indígenas está totalmente paralisado, devendo ser retomado imediatamente. Um dos destaques do relatório final que o Grupo Técnico Povos Indígenas entregou para o gabinete de transição é a demarcação de 13 terras indígenas que devem ser homologadas nos primeiros 30 dias de governo, pois não apresentam nenhuma pendência jurídica e estão prontas para terem o processo de demarcação concluído.
IHU – Qual o impacto da eleição do atual governo para a composição do Supremo Tribunal Federal – STF nos próximos anos, especialmente no tocante à questão do Marco Temporal?
Eloy Terena – Espero que tenhamos indicações para o Supremo Tribunal Federal que respeitem o que está previsto no texto constitucional, que afirma que os direitos dos povos indígenas aos seus territórios são originários, portanto, anteriores à formação do próprio Estado brasileiro, rechaçando a tese inconstitucional do marco temporal. Durante o governo Bolsonaro, houve a indicação de dois ministros. Um deles, o ministro Nunes Marques, já chegou a votar no Recurso Extraordinário em que está sendo discutida a tese do Marco temporal, se posicionando a favor dela.
Nossa perspectiva, portanto, é de que escolhas adequadas de novos ministros pelo presidente Lula podem não somente ajudar no restabelecimento da convivência harmoniosa do Executivo com o Judiciário, mas, no que tange aos povos indígenas, impulsionar a garantia e a efetivação de seus direitos.
IHU – Como as populações indígenas veem a possibilidade de retomada de recursos internacionais do Fundo da Amazônia para a proteção ambiental?
Eloy Terena – Contaremos com o apoio da comunidade internacional para a proteção da Amazônia legal, bioma indispensável para a vida na Terra como a conhecemos. O respeito e o compromisso do governo Lula com essa agenda são centrais para a retomada da confiança da comunidade internacional no Estado brasileiro, a fim de proteger esse patrimônio da biodiversidade. Isto já vem obtendo resultados.
Após a eleição, a Noruega anunciou que vai retomar o Fundo Amazônia, programa de cooperação internacional que destina ajuda financeira ao Brasil para reduzir o desmatamento. O Fundo foi criado no governo Lula, mas em 2019 Bolsonaro impôs novas exigências que fizeram com que a Noruega e a Alemanha encerrassem transferências de recursos que chegavam a até US$ 1 bilhão. Esta é uma imensa vitória não só para a Amazônia brasileira, seus habitantes, flora e fauna, mas para a humanidade global.