Levantamento expõe 15 táticas usadas por Trump e Bolsonaro para erodir a confiança nas urnas, atiçar hordas fascistas e atacar a democracia. Entre elas, estão dossiês falsos, pacto com militares e sabotagem eleitoral em regiões de oposição.
A reportagem é de Natalia Viana, publicada por Agência Pública e reproduzido por OutrasPalavras, 21-12-2022.
A tensão pós-eleitoral no Brasil não tem nada de espontânea. E nem de original. Ela apenas completa uma estratégia empregada desde a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 – que, por sua vez, imita a estratégia adotada pelo ex-presidente Donald Trump nos Estados Unidos.
A Agência Pública analisou algumas das principais ações adotadas pelo presidente americano acerca da sua derrota eleitoral em 2020 e as comparou com as ações de Jair Bolsonaro e seu entorno mais próximo.
Desde a produção de dossiês falsos até ações judiciais e a criação de memes com fake news sobre a votação, as semelhanças entre as ações dos dois presidentes antes e depois das eleições permitem afirmar que se trata de um Playbook – um manual que segue um roteiro para erodir a confiança no resultado eleitoral, manter o eleitorado engajado e semear o terreno para ações de desestabilização das instituições democráticas.
Esse “manual” não é replicado no Brasil por acaso. A família Bolsonaro gastou imenso tempo e esforço para construir alianças nos Estados Unidos. Eduardo Bolsonaro conheceu o ideólogo da ultradireita americana Steve Bannon em agosto de 2018 e, meses depois, foi nomeado representante sul-americano do The Movement, uma plataforma de partidos políticos de direita. Desde então, se reuniu com os principais apoiadores de Trump 77 vezes, conforme a Pública revelou.
Entre os políticos com quem ele mantém relacionamento estão figuras-chave para a falsa narrativa de que teria havido fraudes nas eleições de 2020 nos EUA, como o empresário Mike Lindell, o ativista Ali Alexander, que coordenou as passeatas do movimento “Stop The Steal” (pare o roubo) e o próprio Bannon. Todos eles passaram a espalhar para o público americano a versão fantasiosa de que as nossas eleições presidenciais teriam sido roubadas.
Em 10 de novembro, logo após a vitória de Luís Inácio Lula da Silva, Eduardo Bolsonaro viajou para os Estados Unidos onde se encontrou com Donald Trump no seu resort em Mar-a-Lago, na Flórida. Depois, ele foi para o sul da Flórida, onde almoçou com Jason Miller, CEO da rede social Gettr e que esteve duas vezes no Brasil apenas esse ano em eventos de apoio à reeleição de Bolsonaro. Além disso, ele conversou por telefone com Steve Bannon, como admitiu ao jornal Washington Post. Foi Bannon quem inventou o termo Brazilian Spring para tentar dar um caráter de “amplo movimento democrático” às manifestações golpistas no Brasil, associando-as à primavera árabe. A hashtag alcançou os Trending Topics do Twitter diversas vezes desde a eleição.
A seguir, um resumo e comparação das principais táticas de ambos os movimentos.
Pouco depois de eleitos, ambos os presidentes começaram a dizer que houve fraude eleitoral que os prejudicou, plantando uma dúvida no sistema eleitoral já no começo do mandato.
Desde 2016, quando foi eleito presidente dos Estados Unidos, Donald Trump fomenta a ideia de que as eleições americanas são marcadas pela fraude. Já no final de novembro daquele ano, apenas dias depois da sua vitória, ele começou a dizer que teria vencido também por maioria de votos populares “se você descontar as milhões de pessoas que votaram ilegalmente”. Ele repetiu essa mentira diversas vezes. A narrativa dizia que os democratas haviam empregado votos de imigrantes ilegais para chegar à votação de Hillary Clinton, que foi superior à dele no voto popular. Em uma entrevista em 2019, ele disse que o estado da Califórnia admitiu que havia contado um milhão de votos ilegais. Isso também é uma mentira.
Mas, a cada nova declaração, a imprensa repercutia – e as redes trumpistas reverberavam a mentira, sedimentando a narrativa.
Jair Bolsonaro fez exatamente a mesma coisa. Um ano depois de tomar posse, afirmou pela primeira vez “ter provas” de que ele teria ganhado no primeiro turno em 2018 se não tivesse havido fraude. “Eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito em primeiro turno, mas no meu entender houve fraude. E nós temos não apenas a palavra, temos comprovado, brevemente eu quero mostrar. Nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos”, disse em Miami, no dia 9 de março de 2020.
Ele repetiria essa mesma mentira diversas vezes em suas lives semanais. As provas, claro, nunca existiram. Mas passaram a rodar em sites bolsonaristas.
Em outubro de 2018 uma denúncia sobre divergência de dados nos votos foi protocolada pelo advogado Ricardo Freire Vasconcellos e pelo engenheiro Vicente Paulo de Lima. O TSE abriu procedimento na época e emitiu um parecer em 15 de fevereiro de 2019, julgando a denúncia improcedente. Mesmo assim, a mentira seguiu alimentando as redes bolsonaristas nos anos seguintes. Em agosto de 2020, passou a circular um vídeo afirmando que a PF teria descoberto que Bolsonaro vencera no primeiro turno com 78% dos votos. O vídeo foi desmentido pelo Aos Fatos quase imediatamente, mas continuou a rodar.
Bolsonaro voltou a dizer que teria ganho no primeiro turno nas eleições de 2018 em janeiro de 2022, em Macapá. Em 12 de julho, repetiu a mentira, acrescida de uma suposta fraude nas eleições de 2014. “Vamos mostrar 2014, eleição de 2018, onde eu ganhei no primeiro turno. Eu falo isso não da boca pra fora, tenho como provar”, disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Nos dias seguintes, ele causou furor nas redes sociais afirmando que apresentaria provas de fraude na live semanal do dia 29 de julho. Mas, durante a live, só apresentou Fake News já desmentidas, como um vídeo com uma montagem mostrando que uma urna eletrônica teria completado o voto no número do PT nas eleições de 2018.
Ambos os presidentes usaram as instituições públicas para dar respaldo à teoria furada de fraudes nas eleições.
Em maio de 2017, Donald Trump usou sua acusação infundada sobre votos ilegais fraudados pelos democratas para instituir uma comissão presidencial sobre integridade eleitoral. A Comissão foi liderada pelo Vice-Presidente, Mike Pence, e o Secretário do Estado do Kansas Kris Kolbach. Sem encontrar nenhuma prova, a comissão foi extinta em agosto do ano seguinte. Mas a própria existência da iniciativa institucional ajudou a respaldar a narrativa de fraude e alimentou as teorias da conspiração correndo soltas nas redes.
Bolsonaro fez o mesmo, em diferentes frentes, e de maneira até mais bem-sucedida que Trump. A primeira empreitada começou em 2019 dentro do GSI, tendo os generais Heleno e Luiz Eduardo Ramos como cabeças.
Segundo a Folha de S. Paulo, o técnico Marcelo Abrileri, que afirmara crer em indícios de fraude nas eleições de 2014, foi procurado em 2019 pelo general Luiz Eduardo Ramos e convidado para uma reunião com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Novamente procurado por Ramos, em julho de 2021, o técnico falou por telefone com Bolsonaro. “Durante essa conversa foi avisado que estavam reunindo várias informações sobre possível fraude nas urnas eletrônicas. O general Ramos pediu para o declarante falar um pouco sobre as informações que descobriu”, disse Abrileri à Polícia Federal.
Os dados de Abrileri foram usados por Bolsonaro em algumas lives.
A ofensiva contra o sistema de votação foi assumida pelo Ministério da Defesa após a demissão do general Fernando Azevedo por Bolsonaro, quando os comandantes das Forças Armadas também deixaram os cargos em protesto. O novo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, aproveitou um convite feito pelo TSE para participar da Comissão de Transparência das Eleições para criar fatos políticos, repetindo questionamentos sobre a segurança das urnas. Rechaçados pelo TSE com dados e fatos, teve algumas sugestões acatadas – como fazer um teste de biometria no dia das eleições – mas nada disso impediu o MD a seguir criando fatos golpistas. Além de um relatório que ao mesmo tempo que alega que não foi possível comprovar que houve fraude, “não exclui a possibilidade de fraudes ou inconsistências”, uma aberração jurídica, o MD colocou soldados para fazerem uma “auditoria paralela” das urnas em algumas zonas eleitorais.
As ações do MD pretendiam dar a ilusão que os militares teriam poder de questionar o resultado eleitoral – o que não têm. E contribuíram definitivamente para os atos golpistas que bloquearam estradas e se instalaram diante de quartéis logo depois da derrota de Bolsonaro.
Finalmente, em 18 de julho, o governo também acionou a estrutura do Itamaraty e da Secretaria Geral da Presidência para realizar uma reunião com embaixadores de países estrangeiros em que as mesmas alegações que já haviam sido desbancadas por fact-checkers foram apresentadas. O encontro foi transmitido pela TV Brasil. Mas o tiro saiu pela culatra, com a embaixada do governo americano reiterando que o sistema de votação eletrônica brasileiro é “modelo para todo o mundo” e uma mobilização da Escola de Direito da Universidade de São Paulo, conseguindo apoio de quase 1 milhão de pessoas para rechaçar os ataques às urnas eletrônicas em 11 de agosto.
Antes mesmo das eleições, Trump e Bolsonaro usaram congressistas aliados para impulsionar dúvidas sobre o sistema eleitoral.
Em 2018, os líderes republicanos da Câmara, Paul Ryan e Kevin McCarthy, apontaram quatro disputas na Califórnia nas quais os republicanos lideraram na contagem antecipada de votos, mas perderam quando as cédulas atrasadas chegaram. Usaram a tribuna para sugerir que teria havido fraude eleitoral.
No Brasil, Bolsonaro valeu-se de sua escudeira na Câmara dos Deputados, Bia Kicis, autora de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que obrigaria a impressão de votos para permitir recontagem. “Todo sistema eleitoral é passível de fraude, no papel, digital e até c/ voto impresso. A diferença é que sem voto impresso a fraude não deixa rastro, enquanto nos demais métodos, crime deixa rastro e pode haver recontagem/auditagem. Nosso sistema é como um homicídio sem corpo de delito”, tuitou a deputada em novembro de 2020. A PEC foi rejeitada no Congresso em agosto do ano seguinte.
Pouco antes das eleições, tanto trumpistas quanto bolsonaristas criaram conteúdos para redes sociais alegando que havia suspeitas de fraudes. Nos EUA, um mês antes das eleições, Trump saiu dizendo que houve cédulas de papel jogadas em um rio em Winsconsin. Em setembro de 2020, um funcionário da sua campanha já havia tuitado sobre um punhado de cédulas que haviam sido erroneamente descartadas.
No Brasil, o engajamento de posts sobre fraude deu um salto às vésperas do primeiro turno, segundo o Núcleo Jornalismo. Fakes que já haviam sido desbancadas, como o preenchimento automático de urnas com o número do PT, voltaram a circular. Quatro das cinco principais correntes de baixa qualidade monitoradas pelo Radar Aos Fatos que circularam em grupos públicos de política no WhatsApp no final de semana do primeiro turno mencionavam suposta fraude nas urnas.
Os aliados de Trump usaram vários estratagemas para impedir que eleitores com maior propensão de votar nos democratas chegassem às urnas.
Na Carolina do Norte, seus partidários foram à Justiça para pedir que as regras para identificação para votar fossem mais rígidas, o que afetaria muito mais o voto dos negros, majoritariamente democratas. Segundo um levantamento do Brennan Center for Justice, 70,9% dos eleitores brancos elegíveis votaram nas eleições de 2020, em comparação com apenas 58,4% dos eleitores não brancos.
A coisa foi descarada. Ao defender leis restritivas de voto do Arizona perante a Suprema Corte em março de 2021, o advogado do Comitê Nacional Republicano admitiu que o interesse do partido nas leis era evitar “uma desvantagem competitiva em relação aos democratas”. E ao discutir propostas para expandir o acesso à votação por correspondência, o presidente Trump afirmou que uma expansão da votação por correio levaria a “níveis de votação que, se você concordasse, nunca mais teria um republicano eleito neste país.”
Por aqui, a campanha eleitoral de Bolsonaro chegou a pedir ao TSE que limitasse a disponibilização de transporte regular pelas prefeituras do Brasil – ação que afetaria os mais pobres, que precisam de transporte público para votar. O ministro Benedito Gonçalves, do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), considerou “absurdo” o pedido. Segundo pesquisas, a vantagem do petista sobre Bolsonaro era maior nas classes mais baixas.
No dia da eleição, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou operações parando ônibus para verificar se estavam em conformidade com a legislação de trânsito. Causou atrasos na votação e incômodo a milhares de eleitores. Levantamento da Pública revelou que houve 5 vezes mais operações no Nordeste, local que deu ampla vitória a Lula, se comparado com a Região Sul, onde a maioria é eleitora de Bolsonaro.
No primeiro debate com Joe Biden, em 30 de setembro de 2020, Trump foi perguntado sobre se pediria que apoiadores “não se envolvessem em nenhuma agitação civil” durante a contagem das cédulas.
“Estou pedindo aos meus apoiadores que compareçam aos locais de votação, observem com muita atenção”, respondeu Trump. “Se for uma eleição justa, estou 100% a favor. Mas se vejo dezenas de milhares de cédulas sendo manipuladas, não posso concordar.”
Bolsonaro repetiu a frase de maneira quase idêntica várias vezes. Na sabatina do Jornal Nacional, em 23 de agosto, colocou condições para aceitar o resultado eleitoral. “Seja qual for [o resultado], as eleições limpas devem ser respeitadas. Serão respeitados os resultados das urnas, desde que sejam eleições limpas e transparentes”, disse.
Em maio, ele já havia tergiversado. Questionado se pode se comprometer a aceitar o resultado das urnas eletrônicas independentemente do resultado, mesmo que não seja reeleito, Bolsonaro não respondeu. Disse apenas: “Democraticamente, eu espero eleições limpas”.
Mais de um ano antes, em uma live em 15 de abril de 2021, ele havia dito que só aceitaria uma derrota para Lula “Se o Lula voltar, pelo voto direto, pelo voto auditável”.
Além disso, assim como Trump, a campanha de Bolsonaro chamou seus eleitores a irem para os colégios eleitorais para “fiscalizar” a votação, usando falsas alegações de fraudes como mote.
A campanha publicou um site chamado “Fiscais do Bolsonaro” através do qual qualquer cidadão poderia se inscrever para ir fiscalizar as urnas. A prática é irregular, uma vez que a lei eleitoral garante a existência de fiscais sob determinadas regras, como ter crachás assinados pelos partidos, e ter somente dois fiscais acompanhando o trabalho da mesa receptora por vez.
Na madrugada seguinte às eleições nos Estados Unidos, Trump exigiu que a contagem dos votos fosse interrompida. Segundo ele, era preciso tempo para apurar as denúncias de fraudes – inventadas e ampliadas por seus próprios partidários. Às vésperas da eleição, a campanha bolsonarista tentou um golpe muito semelhante. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, e o ex-chefe da Secom (Secretaria Especial de Comunicação) Fábio Wajngarten chamaram uma entrevista coletiva para dizer que a campanha de Bolsonaro havia sido prejudicada porque inserções de rádio não teriam sido veiculadas conforme a lei.
Fábio Faria pediu, em seguida, adiamento das eleições até que a denúncia fosse apurada – mais tarde ele diria que se arrependeu do pedido. Mas ele não foi o único. Eduardo Bolsonaro pediu o mesmo em uma entrevista, e as redes sociais bolsonaristas rapidamente viralizaram a demanda.
“Tem um candidato que está sendo depreciado e um que está sendo favorecido. Isso está ferindo a democracia. Se fosse dado todo o direito de resposta a Jair Bolsonaro é tanto tempo que seria necessário adiar essa eleição”, afirmou Eduardo, durante entrevista ao site baiano BNews. Ao mesmo tempo, o Instituto Nacional de Advocacia (Inad), uma instituição pouco conhecida, enviou um ofício à PGR requerendo o adiamento do segundo turno.
O PL pediu a investigação do caso ao TSE. Porém, o TSE prontamente rejeitou a ação, e as rádios mencionadas vieram a público contar que a própria campanha havia deixado de enviar os programas. Além disso, o relatório enviado pelo partido ao TSE contabilizou ao menos 9.764 inserções a mais do que as rádios citadas veicularam na realidade, segundo o Aos Fatos.
No seu discurso na madrugada seguinte à eleição, Trump disse com todas as letras que havia vencido a eleição e que houve fraude.
“Isso é uma fraude para o público americano. Isso é uma vergonha para o nosso país. Estávamos nos preparando para vencer esta eleição. Francamente, nós ganhamos esta eleição. Nós ganhamos essa eleição. Portanto, nosso objetivo agora é garantir a integridade para o bem desta nação. Este é um momento muito grande. Esta é uma grande fraude em nossa nação”, afirmou.
Já Bolsonaro demorou 44 horas para se pronunciar mas, assim como o americano, não reconheceu a derrota. Em vez disso, afirmou que o processo foi injusto e aplaudiu os manifestantes que já bloqueavam estradas para rejeitar a votação popular. “Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As movimentações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônios e cerceamento do direito de ir e vir.“, disse.
O mentor do populismo de direita global, Steve Bannon, foi além. “Bolsonaro não pode conceder a derrota”, disse ele, minutos depois do resultado, ainda no dia 30 de outubro, ao site de direita Rumble. “Esta eleição foi roubada em plena luz do dia… ultrajante”, escreveu ele em sua conta no Gettr no dia seguinte.
Pouco depois das eleições, Trump ligou para correligionários do partido Republicano para exigir que pedissem novas contagens de votos em determinadas regiões. São os secretários dos governos estaduais os responsáveis pela supervisão da contagem de votos.
Uma dessas conversas, em que Trump pressionava o secretário de estado da Geórgia, ordenando que ele “encontrasse” votos para reverter a eleição, foi vazada para o jornal Washington Post. “Tudo que eu quero é isso. Só quero encontrar 11.780 votos, que é um a mais do que temos. Porque ganhamos o estado”, disse. “Não tem como eu perder a Geórgia. Não tem jeito. Ganhamos por centenas de milhares de votos.”
Já Bolsonaro, antes mesmo da eleição, pressionou seu partido, o PL, a contratar uma empresa para fazer auditoria das urnas e encontrar brechas no sistema que desse base para questionamentos posteriores ao resultado eleitoral. A empresa Instituto Voto Legal foi contratada pelo valor de R$ 1,3 milhão, e apresentou um relatório dizendo que 279 mil das urnas eletrônicas, ou 60% do total, não tinham identificação e que alguns equipamentos travaram e precisaram ser desligados.
Mais uma vez, não havia nenhuma evidência de que esses fatos teriam interferido de qualquer maneira na contagem. Mas o relatório foi usado pelo PL depois para uma empreitada judicial na tentativa de anular centenas de milhares de votos.
Desde o segundo turno, conteúdos elaborados nas redes bolsonaristas apontam para datas que funcionam como “deadlines” para manter a mobilização, até que Bolsonaro, ou as Forças Armadas, ajam para reverter o resultado da eleição.
Logo no dia 31 de outubro, memes diziam que haveria uma previsão na Constituição que as Forças Armadas poderiam realizar um golpe militar se o povo se mantivesse nas ruas por 72 horas. Depois dessa data, o dia 5 de novembro, quando o Ministério da Defesa apresentou seu relatório, e o dia 15 de novembro, data da proclamação da República, foram aventados como o próximo “Dia D”. O dia 19 de dezembro, dia da diplomação de Lula, também foi apontado como um prazo que era necessário esperar para que Bolsonaro finalmente agisse.
Quando a diplomação foi adiantada para o dia 12, começaram a pipocar mensagens pedindo calma aos manifestantes, dizendo que, depois da diplomação, começaria um prazo de 15 dias para se questionar o resultado das urnas, o que seria feito. “A calma antes da tempestade”, diz um usuário do Tweet.
Foto: Reprodução
O novo prazo, agora, é o dia 1 de janeiro, dia da posse. Já houve diversas campanhas nesse sentido, e a frase “O ladrão não vai subir a rampa” chegou algumas vezes aos Trending Topics do Twitter.
Essa estratégia é típica do marketing digital, que procura buscar um sentido de “urgência” para levar as pessoas à ação. No populismo digital, essas datas imaginárias levam os apoiadores a se manterem comprometidos e mobilizados, esperando um deadline que nunca vem.
Tudo isso é uma cópia exata do que aconteceu nos Estados Unidos após a derrota de Trump. No caso americano, os “deadlines” seguiam datas importantes do complicado calendário de certificação eleitoral americano: o dia 8 de dezembro era o prazo para as autoridades eleitorais se pronunciarem sobre denúncias de fraude; no dia 14 de dezembro, os eleitores do Colégio Eleitoral se reuniram para votar, oficialmente, nos candidatos escolhidos em cada estado (a eleição nos EUA é indireta). O dia 23 de dezembro era o prazo para a certificação ser recebida pelo Congresso.
Depois disso, a principal data era 6 de janeiro, quando os deputados federais se reuniriam para confirmar os votos recebidos pelos Colégios Eleitorais. Um ritual tradicional que foi transformado por Trump em um “deadline” para colocar pressão nos congressistas republicanos para apenas contar os votos a seu favor.
Assim, o ex-presidente americano conseguiu manter seus apoiadores mobilizados até o gigantesco protesto, organizado e financiado por sua campanha, que levou à invasão do Capitólio. Naquele dia, diante de milhares de pessoas e a pequena distância do Congresso, Trump disse à multidão: “vamos caminhar até o Capitólio e vamos torcer por nossos bravos senadores, congressistas e mulheres, e provavelmente não vamos torcer tanto por alguns deles. Nunca vamos recuperar nosso país se formos fracos. Temos que mostrar força, e vocês têm que ser fortes. Viemos exigir que o Congresso faça a coisa certa e conte apenas os eleitores que foram legalmente indicados”.
Os termos do discurso, cuidadosamente preparado para ser ambíguo, é uma tática para manter os fãs ocupados, tentando “descobrir” em discussões infinitas nas redes sociais, quais seria a mensagem subliminar do líder. Ao mesmo tempo, a ausência de uma ordem clara é elaborada meticulosamente para evitar a responsabilização criminal por insuflar atos golpistas – tanto nos EUA, quanto aqui.
Bolsonaro repete a mesmíssima tática. Dois dias depois da diplomação de Lula, Bolsonaro discursou a apoiadores dizendo que “nada está perdido” e que “quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês” – fala que foi lida como uma “senha” de que, se os manifestantes manterem o acampamento nos quartéis, os militares iriam finalmente intervir.
No dia 20 de dezembro de 2020, depois de meses em que memes mostrando falsas projeções estatísticas “demonstrando” na verdade que o republicano teria ganhado as eleições, Trump tuitou: “estatisticamente impossível ter perdido as eleições de 2020…. Grande protesto em DC em 6 de janeiro. Esteja lá, será selvagem!”. Foi o primeiro chamado direto do ex-presidente à manifestação que acabaria com a invasão do Capitólio.
As redes bolsonaristas também apostaram em vídeos malfeitos explicando como “matematicamente” a contagem não faria sentido – um exemplo de desinfografia, de acordo com a classificação do Media Manipulation Casebook.
O caso mais notório foi o do site argentino Derecha Diário – cujo dono é amigo de Eduardo Bolsonaro e diz ter vindo ao Brasil pouco antes do segundo turno – que divulgou falsas alegações sobre uma diferença no novo modelo de urnas. O argentino Fernando Cerimedo usou essa mentira para descontar os votos e dizer que, na verdade, Bolsonaro teria ganhado a votação. Foi suspenso de redes sociais por espalhar fake news.
Logo no dia 4 de novembro de 2020, os advogados de Trump começaram uma batalha judicial sem precedentes questionando a votação em diversos tribunais. Nada menos que 62 processos foram iniciados com base em histórias já desmentidas. Desses, 61 foram negados por juízes federais e estaduais prontamente. Então os advogados foram à Suprema Corte para tentar questionar o resultado eleitoral em alguns estados, como a Pensilvânia. O STF americano também se negou a aceitar a empreitada judicial de Trump, levando o ex-presidente a chamar a corte de “covarde” no Twitter.
Já Bolsonaro pressionou seu partido, o PL, a entrar com ação no TSE para pedir o anulamento de votos em 60% das urnas, com base no relatório do Instituto Voto Legal, contratado pelo partido. Porém, a ação ignorava que as mesmas urnas apontadas pelo Instituto como problemáticas haviam sido usadas no primeiro turno, elegendo a maior bancada do Congresso. A ação foi prontamente rejeitada por Alexandre de Moraes, presidente do TSE, e o partido foi multado em R$ 22,9 milhões por litigância de má fé.
Mesmo assim, Bolsonaro não desistiu e há notícias de que agora ele pressiona o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, para iniciar outra ação pedindo a anulação da diplomação de Lula.
Afora a intromissão na contagem dos votos, Bolsonaro chegou a se reunir com os comandantes militares no dia em que quebrou o silêncio e fez um pronunciamento no Palácio da Alvorada. Ele perguntou aos militares o que achavam da possibilidade de judicializar o resultado das urnas sob a justificativa de que o presidente eleito deveria ser inelegível por causa das condenações na Lava Jato.
Fontes militares ouvidas pela CNN afirmaram que os integrantes das Forças Armadas, entretanto, não deram apoio ao presidente.
Dois anos antes, Trump já havia cogitado enfiar os militares no seu plano antidemocrático.
Fontes da Casa Branca supostamente disseram que Trump discutiu a imposição da lei marcial em uma medida destinada a anular o resultado da eleição de 2020.
Michael Flynn, conselheiro de segurança nacional do presidente, lançou a ideia em uma entrevista ao canal de notícias de direita Newsmax. Pouco depois, em reunião na Casa Branca, na qual Flynn estava presente, Trump perguntou a seus assessores como seria o uso da lei marcial, disseram fontes ao New York Times. A ideia era decretar estado de exceção para que os militares fizessem a recontagem de votos. Felizmente, a sugestão tresloucada não foi para frente e o Comandante do Estado Maior das Forças Armadas dos EUA atuou nos bastidores para conter o ânimo golpista de Trump.
Durante a invasão do Capitólio, considerado um ato criminoso que está sob uma investigação do Departamento de Justiça e por uma CPI no Congresso americano, os partidários de Donald Trump alegaram que o quebra-quebra teria na verdade dito promovido por manifestantes “antifascistas” infiltrados entre os trumpistas, que seriam “pacíficos” e “cidadãos de bem”. A fake news viralizou nos círculos de direita em poucos minutos e foi desmentida por checadores de fatos.
Do mesmo modo, depois da manifestação violenta em que bolsonaristas tentaram invadir a sede da PF em Brasília e colocaram fogo em ônibus, no dia 12 de dezembro, dia em que Lula foi diplomado, a mesma desinformação começou a rodar nas redes sociais. Um comentarista da Jovem Pan chegou a dizer que o quebra-quebra era uma armação “da esquerda” enquanto influenciadores como o perfil Te Atualizei, com quase 2 milhões de seguidores no Twitter, trazia fotos que supostamente mostrava que os manifestantes violentos não seriam de direita.
Foto: Reprodução
Outra fake news que começou a rodar – e que foi desmentida pela Agência Lupa – dizia que Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula, teria se infiltrado nas manifestações para causar vandalismo.
Donald Trump foi o primeiro presidente norte-americano em 150 anos que se recusou a estar presente na cerimônia de posse do seu sucessor. Bolsonaro já avisou que será o primeiro presidente brasileiro após a redemocratização a não passar a faixa presidencial.
Em ambos os casos, a estratégia rompe com um gesto simbólico importante para a transição pacífica e democrática do poder. Ambos procuram demarcar um “protesto” contra a “fraude”, deslegitimando o sucessor desde o começo do novo mandato.
Mesmo após a posse de Joe Biden em 20 de janeiro de 2021, Donald Trump manteve a versão de que foi vítima de uma fraude, usando a história para manter seu capital político e seu controle sobre o partido republicano. E também para ganhar muito dinheiro. Uma campanha de financiamento para “seguir lutando” e provar fraude eleitoral conseguiu levantar mais de 1,3 bilhão de reais. Boa parte do fundo acabou indo parar nos hotéis de Trump, segundo o jornal The Guardian.
Com mais de 50% dos eleitores republicanos convencidos de que houve fraude, a recusa da eleição de Joe Biden acabou se tornando um ativo eleitoral. Mais de 100 candidatos nas eleições de meio termo deste ano nos Estados Unidos afirmavam que as eleições foram roubadas. Embora muitos não tenham se elegido, a influência de Trump segue grande dentro do mundo da direita americana.
Bolsonaro pode usar esse “capital” para se manter na liderança na direita brasileira, ou para utilizá-lo em benefício de seu filho mais ligado aos mentores americanos, Eduardo Bolsonaro. Afinal, ele já criou um instituto que realiza congressos conservadores importados dos EUA, e que vende “cursos” para “educar criticamente” os adeptos da direita brasileira – outra grande fonte de receita dos trumpistas que dobraram a aposta nas mentiras sobre fraude eleitoral.