02 Dezembro 2022
Ugeirm promoveu nesta quarta a primeira edição do Seminário Racismo Institucional – Desafios e Perspectivas.
A reportagem é de Luís Gomes, publicada por Sul21, 30-11-2022.
A Ugeirm, sindicato que representa os agentes da Polícia Civil no Rio Grande do Sul, promoveu nesta quarta-feira (30) a primeira edição do Seminário Racismo Institucional – Desafios e Perspectivas. Organizado para marcar o mês da Consciência Negra, o seminário teve palestras de representantes de diversas forças de segurança, incluindo de outros estados, e debateu o tema do racismo institucional sob diversas perspectivas.
No início do evento, a Ugeirm prestou homenagem aos vereadores da chamada bancada negra de Porto Alegre que se elegeram deputados em outubro — Bruna Rodrigues, Daiana Santos, Laura Sito e Matheus Gomes. Na sequência, ocorreu a principal mesa da manhã, que debateu as relações étnico raciais na segurança pública e na Polícia Civil.
Membros da bancada negro foram homenageados. Da esquerda para a direita: Daiana Santos, Bruna Rodrigues, Isaac Ortiz, Laura Sito e Matheus Gomes. Foto: Luiza Castro/Sul21
Comissário de Polícia e coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU), Luiz Felipe de Oliveira Teixeira iniciou a sua fala destacando que, para entender o que é racismo institucional, é preciso entender suas origens e que, para isso, é preciso entender como as instituições deram sustentação para a escravidão. Lembrou da bula “Romanus Pontifex”, escrita pelo Papa Nicolau V, de 1455, em que a Igreja Católica autorizou escravizar africanos de forma perpétua.
Lembrou também que, durante o período da escravidão, a coroa portuguesa no Brasil se orgulhava da forma como tratava os negros, não à toa o rei D. João VI convidou artistas franceses para virem ao Brasil, em 1817, para retratarem o cotidiano brasileiro, o que deu origem aos famosos quadros do pintor francês Jean-Baptiste Debret sobre a escravidão, entre os quais o de um negro açoitado. Teixeira lembrou, então, colocando as imagens lado a lado, do caso de um jovem negro que foi açoitado em um supermercado de São Paulo pela suspeita de ter furtado uma barra de chocolate. “Isso não ficou lá em 1800”, disse.
Trazendo a questão para o tema da segurança pública, destacou, citando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, que os negros são 75,28% das vítimas de homicídio no Brasil e que não se trata apenas de uma suposta maior participação no crime, pois os negros também são a maioria entre os policiais mortos (62,7%). Além disso, pontuou que, de acordo com dados da Susepe, os negros são 33,2% dos homens encarcerados e 33,2% das mulheres. “Considerando que a população gaúcha de negros é de 18,8%, isso é o dobro”, observou.
Luiz Felipe de Oliveira Teixeira destacou as origens da estrutura do racismo. Foto: Luiza Castro/Sul21
O delegado Fernando Antônio Sodré de Oliveira, que está fazendo doutorado em direitos humanos e pesquisa o seletivismo penal na Polícia Civil, iniciou a sua fala com o questionamento: “O que é racismo institucional?”
Sodré destacou que, no senso comum, costuma se acreditar que o racismo ocorre apenas no nível interpessoal, mas que o racismo institucional se manifesta em elementos culturais arraigados na sociedade que legitimam a discriminação e o preconceito.
“Estamos falando de um racismo a partir de uma matriz estrutural. Isso quer dizer o quê? O racismo é estruturante na sociedade e estruturou a sociedade brasileira, especialmente no período de 350 anos de escravidão oficial e nos anos de segregação racial não oficial”, diz.
Sodré pontuou que, de acordo com filósofo britânico Anthony Giddens, a estruturação social acontece quando um contexto social passa de uma geração para outra, o que acaba por moldar as crenças e as visões de mundo da pessoa. “Não preciso ir muito longe para dizer que um processo de escravidão que durou 400 anos interferiu na estruturação da sociedade brasileira”.
Sodré destacou que o racismo institucional se estrutura na sociedade e reflete nas forças de segurança. Foto: Luiza Castro/Sul21
Ele pontua que essa estrutura influencia, e é influenciada, por exemplo, pelo padrão estético da televisão, que apenas recentemente deixou de ser exclusivamente da “beleza branca”. “Se você desconsiderar a questão racial no Brasil, você está desconsiderando um dos principais elementos da sociedade brasileira”, disse.
O delegado pontua que esse racismo se estruturava na sociedade, por exemplo, quando antigamente se falava que certos empregos exigiam “boa aparência”. “O que era a boa aparência? Era uma visão estética que de desenvolveu a partir do modelo eurocêntrico”, diz.
Trazendo para as forças de segurança, ele diz que essa estrutura se projeta na polícia, segundo sua hipótese, de dentro para fora e de fora para dentro. Contudo, como o racismo é tratado como uma “não questão” nas polícias atualmente, acaba por se projetar nas ações penais. “Nós vemos muitas vezes policiais negros que, em vez de ter um olhar de direitos humanos, transformam-se em propulsores de exclusão e violência”, pontua.
Para Sodré, a transformação interna nas polícias passa pela tomada de consciência da questão, o que exige a sensibilização de todos. “Não teremos democracia plena no Brasil se não discutirmos a questão racial”, diz.
Teixeira também pontuou em sua fala que o percentual de negros na Polícia Civil vem diminuindo, mas que atualmente não é possível sequer saber qual é a representação por etnia na corporação, uma vez que não existe um censo da categoria. Teixeira lembrou que, em 2012, o I Seminário da Igualdade Civilizatória na Segurança Pública, já tinha recomendado a realização de um censo sobre o número de negros e o percentual em cargos de comando nas forças de segurança gaúchas, mas isso não foi feito. “Se não tivermos dados, não teremos políticas públicas. Não saberemos como os negros enfrentam dificuldades para ascender na carreira. Também não se estabelece políticas de saúde para os servidores negros, que têm especificidades”, disse.
Na mesma linha, o escrivão e especialista em História da África e dos Afrodescendentes Abayomi Mandela Silva Felix destacou que a Polícia Civil gaúcha passou por três momentos nas últimas décadas. O primeiro, quando os concursos exigiam apenas a formação em nível médio para ingresso. O segundo, com o primeiro concurso realizado em 2000, quando passou a ser exigido nível superior. E o terceiro, mais recente, que estabeleceu a reserva de cotas nos concursos.
No último concurso, de 2017, já sob a regra das cotas, foram reservadas 17% das vagas para negros, no total de 192. Contudo, apenas 95 candidatos foram aprovados e passaram pela banca de avaliação da autodeclaração. Isto é, não houve candidatos aptos suficientes para preencher as vagas.
Abayomi Mandela pontua que, no passado, o ingresso nas forças de segurança, especialmente Polícia Civil e Polícia Militar, era visto como uma das poucos portas de saída da pobreza para as famílias negras, o que fazia com que muitos negros procurassem à área.
Ele avalia que há uma série de questões que influenciam na redução da participação do negro nas polícias. A primeira delas é justamente o início da exigência do nível superior. Em 2005, destacou, apenas 5,5% dos jovens negros estavam nas universidades.
A partir das cotas, o percentual cresceu — são 18%. segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2020. Contudo, Mandela destaca que há um discurso estereotipado nas universidades públicas que trata as polícias como inimigas dos negros, o que os levaria a buscar outros cargos e outras áreas de atuação. Combinado este fator com as novas possibilidades que os jovens que chegaram à universidade passaram a ter, as polícias deixaram de ser uma das únicas portas de saída da pobreza para a população negra brasileira.
Mandela diz que ele próprio nunca pensou em virar policial civil, pois também compartilhava dos mesmos estereótipos e que só mudou de ideia ao conviver com uma família negra de policiais civis. “Existe um problema da população negra com a polícia, mas as coisas não são tão simples quanto parecem”, diz.
Abayomi Mandela abordou os fatores que contribuem para a redução do número de negros na Polícia Civil. Foto: Luiza Castro/Sul2
Um outro fator que elenca como impactante para a queda no número de negros na polícia é o fato de os concursos para a Civil estarem entre os mais longos do País, com um período de provas que se estende por até um ano e seis meses e mais seis meses de aulas na Academia de Polícia (Acadepol). “Exige tempo e recurso”, afirma.
Ele também compartilhou a crítica de Teixeira ao fato de que não há dados oficiais sobre o percentual de negros na Polícia Civil, destacando que a Brigada Militar realizou um levantamento próprio, em 2020, que apontou que 19% da corporação se declarava negra. A BM também passou a exigir nível superior para ingresso, mas ainda não realizou nenhum concurso com a nova regra.
Presidente da Ugeirm, Isaac Ortiz avalia que o seminário foi um primeiro passo muito importante para a discussão do racismo institucional no Rio Grande do Sul. “É um tema que está no dia a dia da nossa sociedade. Tu sendo negro ou não, convive com o racismo estrutural, com o racismo institucional, isso está nas estranhas da sociedade”, diz. “Nós precisamos debater, precisamos levar mais informações e educar a sociedade”, diz.
Ortiz pontua que o poder público em geral deveria se envolver mais com o tema, especialmente durante o mês da Consciência Negra. “Era para estar todo mundo falando nisso, as escolas públicas debatendo, as universidades, os órgãos de segurança ou não, era para ser um novembro negro. As pessoas se informarem sobre o que acontece e as pessoas que são molestadas saberem como identificar e se defender de uma situação de racismo. E levar para as academias de polícia, porque tudo desemboca na segurança pública”, diz.
Palestrando durante a tarde, o presidente da Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), Adriano Bandeira, também considerou o seminário um marco e ponderou que irá levar o tema do racismo institucional para a reunião da equipe de transição do futuro governo federal sobre segurança pública, da qual participará na próxima semana. “A partir de hoje, nós vamos fortalecer essa pauta em todo o Brasil”, disse.
Ortiz destacou ainda que a participação do presidente da Cobrapol no evento pode contribuir para “nacionalizar” a pauta. “O tema do racismo institucional tem que estar nas academias, nos currículos, para quando o policial entrar numa instituição, seja ela militar ou não, essas coisas não serem uma surpresa para ele”, defendeu.
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Racismo institucional nas polícias: ‘Não existe democracia sem discutir a questão racial’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU