Tema central do 13º Congresso da Abrasco, o binômio saúde e democracia foi visto como caminho para equidade e justiça social, num grande movimento de reconstrução dos sistemas de assistência à população
“Ficou muito claro que o caráter autoritário, necropolítico e negacionista deste governo piorou muito as condições de saúde da população brasileira”. A constatação é da presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, Rosana Teresa Onocko Campos. Essa clareza de que ela fala tem a ver com o que vivemos durante a fase mais aguda da pandemia de covid-19 no Brasil. Mas vai além. Sem um solo propício para a democracia enraizar, a saúde pública míngua. Ou seja, para além da pandemia, o SUS foi duramente negligenciado e atacado ao longo dos últimos anos. “A saúde precisa de um aumento orçamentário. Há estudos apontando como esses recursos poderiam crescer paulatinamente até atingir 6% do PIB ao longo dos próximos quatro anos”, completa.
Não à toa, o 13º Congresso da Abrasco, o Abrascão, realizado em novembro deste ano, teve como título “Democracia é Saúde: Diversidade, Equidade e Justiça Social”. A ideia, segundo explica Rosana, é que sem um ambiente democrático, que compreenda e respeite a diversidade, é impossível a construção da equidade e justiça social e, logo, o acesso à saúde pública de qualidade é interditado. “Saúde como direito requer necessariamente se articular com o usufruto de outros direitos: seguridade social, alimentação, moradia. E isso só é possível na plena vigência do regime democrático”, resume, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Ao longo da entrevista, Rosana comenta alguns dos pontos destacados nos debates do Abrascão. Um deles concerne à questão ambiental, cujo desequilíbrio já pode ser medido em impactos na saúde coletiva. “Há cada vez mais estudos mostrando a imbricação da crise sanitária e ecológica, não somente no Brasil, mas no planeta como um todo. A invasão de biomas por políticas extrativistas, a produção de commodities de forma intensiva tem alterado a circulação de vírus, tem aparecido bactérias cada vez mais resistentes etc.”, detalha.
Além disso, como não poderia ser diferente, a proteção e reconstrução da seguridade social como forma de garantir a saúde da população esteve presente em inúmeras sessões e debates. Para Rosana, é urgente pensar a rearticulação entre o SUS e o Sistema Único de Assistência Social. “A determinação social do processo de saúde-doença é inegável e requer operacionalizar todos esses outros direitos sociais para avançarmos na produção de saúde”, enfatiza. “Concordo com o presidente Lula, em que o combate à fome deve ser prioritário. Existem outras fontes potenciais de recursos para a saúde: a retirada de algumas desonerações, a eliminação de subsídios ao setor privado e uma ampla reforma tributária para transformar o caráter regressivo da atual tributação”, defende.
Rosana Teresa Onocko Campos
Foto: Geroge Magaraia | Abrasco
Rosana Teresa Onocko Campos é presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco. Possui graduação em Ciências Médicas pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, especialização em gestão hospitalar pelo Instituto Technion, de Israel, e mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Desde 2004, é professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. É também professora visitante no Departamento de Psiquiatria da Universidade Yale.
IHU – A partir dos debates e reflexões do 13º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o Abrascão, que diagnóstico é possível fazer da saúde coletiva no Brasil?
Rosana Onocko – A saúde coletiva está muito profícua e engajada com os problemas atuais e crônicos do Brasil. Ela se mostrou uma área de pesquisa muito produtiva e com importante renovação geracional.
IHU – No Abrascão, também foi lançado o Dossiê Abrasco Pandemia de Covid-19. Quais as principais conclusões do estudo? O que podemos esperar da pandemia de covid-19 nos próximos anos e como enfrentá-la?
Rosana Onocko – Esse dossiê foi elaborado por mais de 300 pesquisadores de nossa área. Ele traça o percurso da pandemia no Brasil, os erros e os aprendizados.
Aponta a necessidade de recompor, articular e qualificar várias políticas públicas que vão desde a área trabalhista até a articulação entre Sistema Único de Saúde e Sistema Único de Assistência Social.
Com relação a ações futuras referentes à pandemia, entendemos que a vacinação e a vigilância devem ser retomadas, inclusive a vigilância genômica para acompanhar as novas cepas. Esse é um dos pontos que tratamos em detalhe no dossiê.
IHU – Na sessão de abertura do congresso, ficou claro que os sistemas de saúde precisam de democracia para se desenvolverem. Pode recuperar essa ideia e apontar os três maiores desafios para efetivação dessa perspectiva no contexto brasileiro?
Rosana Onocko – A questão de que saúde é democracia está colocada desde a 8ª conferência nacional de saúde. Escolhemos retomar esse tema neste 13º Abrascão, pois ficou muito claro que o caráter autoritário, necropolítico e negacionista deste governo piorou muito as condições de saúde da população.
Saúde como direito requer necessariamente se articular com o usufruto de outros direitos: seguridade social, alimentação, moradia. E isso só é possível na plena vigência do regime democrático.
IHU – Como a crise ecológica tem impactado a saúde coletiva?
Rosana Onocko – Há cada vez mais estudos mostrando a imbricação da crise sanitária e ecológica, não somente no Brasil, mas no planeta como um todo. A invasão de biomas por políticas extrativistas, a produção de commodities de forma intensiva tem alterado a circulação de vírus, tem aparecido bactérias cada vez mais resistentes etc. Nunca houve tanta clareza e consenso sobre a estreita relação entre saúde humana e animal.
IHU – No que consistiriam ações em resposta à crise ecológica do ponto de vista da saúde coletiva? Quais os desafios para a implementação dessas ações?
Rosana Onocko – As respostas devem vir por meio de políticas que estimulem o emprego em atividades “verdes”, valorização e estímulo à produção local e familiar e medidas para reduzir drasticamente o aquecimento global. A mudança climática afetará fronteiras e economias de forma dramática e deveremos estar preparados.
Contudo, esses desafios também abrem uma potencialidade de liderança ao Brasil em um mundo globalizado. O Brasil pode se tornar exemplo de energias renováveis, de uso científico da biodiversidade etc.
IHU – A concepção do Sistema Único de Saúde vai muito além do tratamento de doenças e atendimento de urgências e emergências. Quais os desafios para rearticular o sistema com ações multissetoriais, como saneamento básico, água potável, erradicação da fome, geração de emprego e renda?
Rosana Onocko – Essa articulação foi sempre um desafio, pois requer transversalidade e recursos financeiros, muitos dos quais deveriam ser alocados em outras pastas que não a da saúde. A determinação social do processo de saúde-doença é inegável e requer operacionalizar todos esses outros direitos sociais para avançarmos na produção de saúde.
Contudo, é mister salientar que a defesa do SUS passa inexoravelmente pelo aumento de recursos para o sistema assistencial e que, muitas vezes, esse discurso que apela aos determinantes aparece como forma politicamente correta e eufêmica de negligenciar o ponto orçamentário fundamental.
IHU – A chamada PEC da Transição, que visa criar formas de superar o teto de gastos, tem sido amplamente debatida, mas sempre sob o ponto de vista de assegurar recursos para programas de assistência social, entre eles a transferência de renda. Embora tenham relações estreitas com o campo da saúde, os impactos diretos sobre a saúde não vêm sendo trazidos à luz. O que esse silenciamento revela?
Rosana Onocko – A saúde precisa de um aumento orçamentário. Há estudos apontando como esses recursos poderiam crescer paulatinamente até atingir 6% do PIB ao longo dos próximos quatro anos.
Mas não devemos permitir que nos façam brigar entre nós. Concordo com o presidente Lula, em que o combate à fome deve ser prioritário. Existem outras fontes potenciais de recursos para a saúde: a retirada de algumas desonerações, a eliminação de subsídios ao setor privado e uma ampla reforma tributária para transformar o caráter regressivo da atual tributação.
IHU – Diante do teto de gastos, contingenciamento de recursos e a ditadura do ajuste fiscal, muitos municípios têm formado consórcios que custeiam atendimentos médicos, exames e procedimentos hospitalares. Como analisa esse cenário? Esses consórcios representam uma ameaça ou, pelo menos, uma forma de desarticulação com do SUS?
Rosana Onocko – Consórcios e fundações têm falhado em permitir a articulação da Atenção Primária à Saúde e a efetiva implantação de redes assistenciais ágeis e resolutivas. Essas formas todas não têm conseguido fixar os trabalhadores, coordenar as ações de saúde, nem dar agilidade ao acesso para os níveis secundário e terciário de atenção. Não menos importante é o fato de que aparecem frequentemente envolvidas em casos de corrupção local.
IHU – Em outra frente, o SUS sofre com as investidas neoliberais. Como fortalecer o sistema e fazer frente a essas perspectivas?
Rosana Onocko – O fortalecimento do sistema passa por vários pontos. Em nosso documento “Fortalecer o SUS”, apontamos oito eixos. Além disso, desenvolvemos uma campanha com a possibilidade de assinatura on-line de uma petição. Para detalhes, basta acessar aqui.
IHU – O que fica do Abrascão 2022? Quais os principais apontamentos da Carta de Salvador?
Rosana Onocko – Ficou a certeza de que a área da Saúde Coletiva está muito produtiva e engajada para ofertar soluções aos problemas de saúde da população. Trata-se de uma área madura cientificamente e, ao mesmo tempo, muito engajada na conjuntura atual. Recebemos acima de 6 mil trabalhos das mais variadas áreas e de uma qualidade incrível.
IHU – Como analisa os debates acerta do SUS e da saúde pública em geral neste processo de transição de governo? Já temos compromisso ou políticas de saúde claras a serem adotadas pelo governo eleito?
Rosana Onocko – A Abrasco e outras entidades da saúde, articuladas na Frente pela Vida, têm acompanhado a equipe de transição. O presidente Lula se comprometeu em agosto, ainda candidato, em que no seu governo a área da saúde seria considerada um investimento e não um gasto. Recentemente, ele tem manifestado sua sensibilidade para resolver os obstáculos de acesso da população tanto à atenção primária como às especialidades.
Penso que a pandemia colocou a saúde no centro das atenções. Mas há interesses muito fortes em torno das despesas da saúde, sempre prestes a se apropriar do recurso público. Por isso, a mobilização política permanente será necessária. Estaremos sempre prontos para colaborar e, também, vigilantes.