Tema estará presente na palestra de Julian Nida-Rümelin, em mais uma atividade do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU
Um dos únicos pontos pacíficos nas reflexões e discussões sobre o conceito de verdade é o que não há uma só verdade. Ou seja, há muitas possíveis, segundo a construção que opera para sustentar tal verdade. Aliás, já em 1710, no Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l'homme et l'origine du mal, o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) forjou a expressão de que vivemos "no melhor de todos os mundos possíveis". Entre as tantas portas que seu complexo pensamento abre está a de que há muitos mundos e nós constituímos o nosso, afinal “a alma é um pequeno mundo, no qual as ideias distintas são uma representação de Deus e as confusas são uma representação do universo”. Isso, então, pode nos levar à formulação de que não há só um mundo, portanto, uma só verdade.
Até aí, nada de mais, pois essa discussão passa por muitas frentes teóricas, desde reflexões sobre a ideia moderna de alteridade até a metafísica. O importante é termos a clareza de que esses movimentos filosóficos partem de uma concretude para uma digressão acerca do que de fato é essa verdade, esse mundo que habitamos. Agora, imagine, se a ideia de verdade fosse já apresentada numa abstração esfumaçada que nos impossibilite de ver além. Pois os tempos em que vivemos, essa era digital, têm, entre suas disfunções, a capacidade de criar uma espécie de bruma sobre o que está diante dos olhos. O risco é termos essa como a verdade do mundo, sem nem sequer buscar outros ou tentar ver além. É mais ou menos por onde vão os debates das fake news e da pós-verdade, como aborda a edição de abril de 2018 da revista IHU On-Line, que reproduzimos abaixo.
Agora, imagine o problemão se levarmos isso para o complexo campo da democracia. “Os problemas dos países democráticos têm a ver com a relação entre democracia e verdade. Se entendermos o jogo político como um jogo de interesses ou de identidade cultural sem pretensões de verdade, então o discurso público se transforma em um grande teatro de ilusão”, aponta o professor e filósofo Julian Nida-Rümelin, em entrevista reproduzida pelo IHU em 2019. Ele ainda detalha que “enquanto se propõe um argumento em favor de um projeto político, ele é concebido como expressão de interesse ou de identidade cultural. Enquanto isso, o populismo de direita usa a desvalorização da verdade para os seus propósitos. Se tudo é ilusório, então everything goes [vale tudo]”.
Assim, não é por acaso que os populismos de direita mundo afora se apropriam largamente das lógicas do mundo digital para, em meio a essa bruma, empantufar a sociedade de uma única e restrita visão de mundo ou, no caso, de democracia. Um exemplo bem claro é a máxima de que democracia é o desejo da maioria – muito embora uma horda bolsonarista, no caso brasileiro, tem posto em xeque até isso. “A regra da maioria, por si só, não constitui democracia; caso contrário, o regime nazista na Alemanha de 1933 até o fim da Segunda Guerra Mundial teria sido uma democracia”, refuta Nida-Rümelin.
Esse jogo entre democracia e mundo de hoje, atravessado pelas lógicas do digital, é o tema central da fala do professor e filósofo dentro do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU – o futuro da democracia e o novo regime climático: ameaças (auto) críticas e potencialidades. A conferência de Nida-Rümelin, intitulada Cultura Digital e Democracia, ocorre na terça-feira, 29-11-2022, às 10 da manhã, em formato live com transmissão pelas redes do IHU.
Julian Nida-Rümelin observa, em entrevista de 2019, as transformações da democracia a partir a fricção do binômico informações e novas tecnologias. “A comunicação digital, de fato, é ambivalente. Por um lado, ela ajuda na participação política; por outro lado, leva a uma esfera pública compartimentada”, aponta. Assim, esse cenário leva ao que chama de repolitização. “Existe um processo de repolitização, especialmente dos jovens, mas não apenas, e isso ocorre nas mídias sociais. Por outro lado, as ditaduras usam meios digitais para controlar a cidadania”, diz.
Isso significa que, se por um lado, há resistências que buscam dispersar esse mundo esfumaçado que apresenta a possiblidade de uma só verdade, inclusive usando as redes e as novas tecnologias como elemento central no esclarecimento das pessoas, por outro, há também movimentos e estruturas preparadas para produzir e sustentar essas realidades nebulosas. Por outro caminho, podemos compreender os ativismos digitais, trabalhados por Danniel Gobbi, professor e cientista político, em entrevista ao IHU publicada recentemente.
Gobbi chama atenção para a ascensão do ativismo de direita que, segundo ele, “atua por meio de tecnologias digitais e mecanismos de enquadramento”. Ou seja, usa-se das tecnologias e dessa nova ambiente para enquadrar o mundo, a verdade, que quer propagar. “É possível repetir o enquadramento, mudando o conteúdo da mensagem. Quando se repete a mensagem, mesmo que o enquadramento permaneça, ocorre o seguinte fenômeno: as pessoas se acostumam a uma certa forma de dar sentido ao mundo. Por exemplo, se existe uma catástrofe e alguém diz que é preciso 'rezar para Deus' ou, em outro contexto, alguém diz 'Deus me perdoe', percebemos que há um enquadramento repetido, que é a noção de intervenção divina sobre a realidade”, explica.
Aproximando o pensamento de Gobbi ao de Nida-Rümelin, podemos pensar no papel das mídias digitais nessa reconfiguração do espaço político-democrático. Um espaço que, para o palestrante de hoje, o professor Nida-Rümelin, não é aceitável que seja ‘gerenciado’ por apenas poucas gigantes empresas de infraestrutura digital. “O resultado é que tudo é guiado por interesses comerciais. Esse é um fenômeno novo na história da industrialização, porque, nesses últimos três séculos, a responsabilidade das infraestruturas foi pública, dos Estados”, observa. Assim, aponta que “talvez já seja tarde demais para reverter essa tendência”. Ainda assim, não abandona a ideia de que “a formação digital deve se orientar pelos valores humanísticos do Urteilskraft (capacidade de juízo) e da autonomia pessoal”.
Estudou Filosofia, Física, Matemática e Ciência Política. É professor de Filosofia e Teoria Política na Universidade de Munique. Foi professor nas universidades de Göttingen e Tübingen e é professor honorário na Universidade Humboldt, em Berlim. Como professor convidado, lecionou no Instituto de Tecnologia da Califórnia, na Universidade de St. Gallen e em universidades italianas como Cagliari, Trieste, Roma.
Julian Nida-Rümelin | Foto: Wikipédia
Foi ministro de Estado da Cultura no primeiro gabinete de Schröder, presidente da Sociedade de Filosofia Analítica e da Sociedade Alemã de Filosofia. Seu foco científico é a teoria da racionalidade, filosofia política e ética.
- Eine Theorie praktischer Vernunft (De Gruyter, 2020)
- Die gefährdete Rationalität der Demokratie. Ein politischer Traktat (Edition Körber-Stiftung, 2020)
- Unaufgeregter Realismus. Eine philosophische Streitschrift (Mentis Verlag, 2018)
- Digitaler Humanismus. Eine Ethik für das digitale Zeitalter (Piper Verlag, 2018)
- Structural Rationality and Other Essays on Practical Reason (Springer International Publishing, 2018)
- Über Grenzen denken. Eine Ethik der Migration (Körber-Stiftung, 2017)
Saiba mais sobre a programação do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU