25 Novembro 2022
"O que nos falta hoje é justamente esse retorno entre nós da Palavra impregnada por suas ampliações no mundo de todos – e não apenas em nosso pequeno mundo, paralelo e artificial", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 17-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O primeiro artigo da série pode ser lido aqui, e o segundo pode ser lido aqui.
Das ampliações da Palavra, Paulo é a figura por excelência: será ele quem a fará transitar pela Europa, até levá-la ao centro político e cultural do seu tempo - Roma. Reivindicando para si um ministério apostólico que o iguala aos doze, embora não tendo todas as qualidades que o primeiro grupo apostólico havia determinado para pertencer a ele (cf. At 1, 21-22).
Paulo nunca esteve com eles, não tem um tempo compartilhado com o Jesus vivido junto com os seus, não esteve presente no momento de sua assunção que acende o mandato da nascente comunidade pós-pascal. Ainda assim, um apóstolo: pela vontade de Deus, não pela mão do homem, um deles em suma – mas seu reconhecimento e a legitimidade de seu ministério não serão isentos de tensões.
Precisamente por isso, Lucas nos Atos constrói uma série de ganchos que permitem ao/à ouvinte perceber a origem e a legitimidade de seu levar ao mundo a Palavra. A partir do capítulo 9, Atos é literalmente ocupado por sua figura e sua ação, mas Paulo não é o protagonista de todas as páginas que se seguem. Por mais conspícua e marcante que seja a sua pessoa, não é dele que os Atos falam, mas sim das muitas maneiras que Deus imagina e realiza para ser fiel à sua promessa.
A dignidade de apóstolo nunca é uma propriedade pessoal, mas um destino para a circulação da Palavra que cumpre a sua promessa. Por isso vocação e gênese do ministério de Paulo são intrigantes; e Lucas nos confunde quando os enraíza no coração da comunidade discipular (At 9, 1-19). É da fé comum de todos que se origina a singularidade paulina, e é nesse mesmo comum que encontra seu sentido, sua destinação e também sua legitimação para toda comunidade vindoura.
Sem saber como, de repente descobrimos que em Damasco existe uma comunidade que segue o caminho de Jesus Cristo, pratica-o como estilo de vida. Se o zelo de Paulo ainda Saulo o impele para essa comunidade que surgiu do nada, de uma Palavra que segue seu caminho gerando fé sem instituição, é porque ela representava para ele uma pedra de tropeço a ser eliminada de todas as formas, garantindo o máximo de autoridade possível em sua missão de aniquilação.
Uma comunidade na qual as mulheres provavelmente desempenhavam um papel particularmente importante, se Lucas se digna a mencioná-las entre aqueles que devem ser "conduzidas acorrentadas a Jerusalém".
A teofania que subverte a vivência de Saulo/Paulo é seca, nada de psicológico, nenhum enfeite que vá além da imaginação das Escrituras de Israel: como aconteceu com Moisés diante da sarça ardente e depois no Sinai. Paulo tinha todas as categorias para interpretar esse evento de ruptura apenas como uma manifestação do Deus dos pais.
Senhor é o nome de Deus prontamente reconhecido por Paulo: mas um Deus cuja identidade ele parece não conhecer – “quem és tu?” de fato, ele pergunta surpreso com a não coincidência entre o que ele sabe sobre Deus e quem realmente é o Deus que irrompe em sua vida.
E aqui a identidade de Deus coincide com aquela do Ressuscitado; e aquela do Ressuscitado com a fé dos discípulos e das discípulas perseguidas por Saulo. A vocação de Paulo nasce precisamente do seu impacto com a fé de homens e mulheres que vivem o estilo de Jesus, e é a comunidade de fé desses homens e mulheres que gerará um ministério apostólico sui generis: primeira e fundamental legitimação de toda a sua atividade vindoura. O singular ministério paulino é plasmado pela fé comunitária de todos, e é a ela que deve prestar conta de si mesmo.
Cada leitor e leitora dos Atos, como parte de uma comunidade cristã, está no início desse ministério apostólico – por isso podem reconhecê-lo e legitimá-lo mesmo diante da autoridade dos doze de sempre. Há momentos de gênese e passagem em que a promessa de Deus transita pelos corpos da fé para dar origem a um ministério capaz de atender seus movimentos e seu desejo.
Essa centralidade da comunidade, em relação ao ministério apostólico de Paulo, encontra confirmação na outra manifestação de Deus que caracteriza a nossa passagem. Certamente o Senhor fala com Paulo, mas também fala com Ananias. E é o mesmo Senhor: aquele que coincide com o estilo de fé praticado pela comunidade dos crentes.
Ananias é como o porta-voz dessa comunidade: um ponto de referência que deve sintetizar as diferentes formas de sentir dentro da comunidade a que pertence. A disponibilidade para a Palavra de autoridade de Deus e a preocupação com a vida da comunidade andam de mãos dadas, ambas legítimas.
E é a comunidade que deve compreender que a ampliação da Palavra que a originou coincide agora com a acolhida dentro dela daquele que quer "prender a todos os que invocam o teu nome" (At 9,14).
Há momentos em que a fidelidade à livre circulação da Palavra pede à comunidade dos discípulos e das discípulas do Senhor que talvez ouse também o risco da própria extinção – certamente aquele da própria transformação radical.
Porque é precisamente à comunidade que é confiado não só o destino de Paulo, mas também o destino do seu ministério vindouro. Desse destino Paulo nada sabe, só o conhecerá pela comunidade que aceita acolhê-lo: "porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel" (Atos 9, 15). E é sempre na comunidade que é depositada a imagem desse ministério moldada naquela experiência de Jesus que Paulo nunca conheceu.
A comunidade nascida de uma desconhecida ampliação da Palavra é chamada, por sua vez, a expandir-se hospitaleiramente, a ir além de si mesma para que a Palavra a supere e chegue literalmente a todos os lugares. Atestada perante o povo e o poder político do mundo. Mas não só. Porque essa Palavra que se alarga está destinada a retornar também à comunidade de origem de Paulo – que neste ponto é dupla: Israel e Damasco.
E Paulo vai perseguir esta dupla ampliação da Palavra, para o povo e para os filhos de Israel, pelo resto de sua vida. Mas inevitavelmente ela retornará a Israel imbuída de sua passagem entre as nações – e da mesma maneira também retornará à comunidade discípula de Damasco.
O que nos falta hoje é justamente esse retorno entre nós da Palavra impregnada por suas ampliações no mundo de todos – e não apenas em nosso pequeno mundo, paralelo e artificial.
Somente quando essa Palavra ampliada entrar em nossas comunidades cristãs, elas voltarão a se beneficiar hoje do ministério paulino – do qual ainda permanecem a origem que o fizeram nascer para serem ultrapassadas por sua missão.
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Ampliações da Palavra / 3. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU