17 Novembro 2022
"Desaparecer é uma forma radical de separação. Quando faltam as palavras, quando a dor é demais, quando tudo parece comprometido, quando tudo se tornou impossível de suportar, quando estamos no limite de nossas forças, quando o irremediável aconteceu, quando algo em que acreditamos profundamente morre, então a separação pode assumir a forma clara e gélida do desaparecimento", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 15-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Desapareço". Pelo que contam alguns de seus alunos, essa teria sido a última palavra de Jacques Lacan. Fim do jogo, placar zerado, desaparecimento. Não é por acaso que o último de seus famosos Seminários traz o título premonitório de Dissolução. Anúncio não só do fim da sua Escola - que dissolverá, justamente, pouco antes da sua morte -, mas também do fim da sua presença neste mundo. Anúncio, de fato, de seu iminente desaparecimento.
Desaparecer é uma forma radical de separação. Quando faltam as palavras, quando a dor é demais, quando tudo parece comprometido, quando tudo se tornou impossível de suportar, quando estamos no limite de nossas forças, quando o irremediável aconteceu, quando algo em que acreditamos profundamente morre, então a separação pode assumir a forma clara e gélida do desaparecimento.
"Desapareço" significa cortar para sempre os laços com o mundo como eu o conheci.
O machado do tempo cortou de um só golpe a corda que nos prendia à vida. Só resta desaparecer, acabar com tudo, desligar tudo. No caso da morte, esse desaparecimento não é - exceção dos suicidas, que decidem a própria morte - o resultado de uma escolha, mas de uma condenação, de uma imposição sofrida. Nunca sou "eu" quem decide desaparecer, mas é a lei da morte que o exige. Não há mais tempo para mim, não há mais tempo para minha vida. A morte obriga-nos a desaparecer, a dissolver-nos, a retornar, como diria o bíblico Eclesiastes, ao pó de onde viemos. O círculo se fecha: o ser, vindo do nada, retorna ao nada. Acontece com os homens, como Eclesiastes novamente nos lembra, da mesma forma que acontece com cavalos, cachorros, formigas, leões, pássaros no céu.
Quantas vezes ouvimos: “Desapareceu”, como a ressaltar que quem se foi dissolveu todos os laços conosco, já não está disponível, alcançável, já não pode ser contatado. E quantas vezes tivemos dificuldade em encontrar as palavras certas para comentar esse anúncio. De fato, é impossível encontrá-las. Melhor ficar calado. Não é por acaso que Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, descreveu a separação como o afastamento no espaço de duas espaçonaves que não podem mais interceptar as mensagens uma da outra. Afastamento sideral, distância intransponível, desaparecimento do radar. Desaparece-se como o avião que caiu em Ustica ou como o perturbado Coronel Kurtz de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. É verdade: o desaparecimento, se quiser mesmo ser um desaparecimento, deve ocultar o rastro, deve impedir ser encontrado ou retornar.
Também tenta desaparecer seguindo essa modalidade o protagonista de um conhecido romance de Georges Simenon intitulado A fuga do senhor Monde, que da noite para o dia decide deixar abruptamente a ordem burguesa e indiferente de sua família. Ele saca todo o dinheiro que tem na conta e pega o primeiro trem, sem dar explicações a ninguém. É o que acontece com o protagonista de Dissipatio H.G. de Guido Morselli que, após ter tentado o suicídio, volta à sua cidade pronto para recomeçar a viver, mas, zombeteiramente, não encontra mais ninguém: toda a humanidade (H.G. significa Humani Generis) no meio tempo se dissolveu, dissipou-se sem motivo algum, desapareceu da face da terra.
O desaparecimento é uma separação que é empurrada para as suas profundezas mais escuras. Não há mais vestígios dos que se foram, não haverá mais contatos, não haverá mais nenhuma possibilidade de encontro. Isso significa que quem desaparece realmente foi embora sem deixar nada de si, sem desejo de retornar nem esperança de ser reencontrado, com a vontade determinada de não mais pertencer ao mundo a que pertencia.
Tudo isso parece ressoar na última palavra atribuída a Lacan: “Desapareço”. Levar embora tudo que alguém já foi, nenhum vestígio, nenhuma sobra, nenhuma nostalgia.
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O luto e a luz que nos faz renascer. Somos feitos para viver. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU