22 Outubro 2022
Uma convocação nacional (convention citoyenne) na França para atualizar a lei sobre o fim da vida, a censura parcial do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a aplicação da lei da eutanásia na Bélgica e a ampliação do debate sobre o assunto em muitos países, especialmente europeus: são os vestígios de um conflito moral que atravessa o Ocidente.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 18-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A convocação nacional francesa está nas mãos de uma comissão do Conselho Econômico e Social (CESE). Ela abrirá suas sessões no dia 9 de dezembro e será composta por cerca de 150 cidadãos, escolhidos por sorteio com base nos critérios habituais (idade, localidade, sexo etc.). Eles estarão envolvidos nisso durante dois fins de semana por mês até o dia 19 de março de 2023, com a tarefa de oferecer ao governo e ao parlamento suas conclusões.
A convocação terá de responder à pergunta: “O sistema de acompanhamento ao fim da vida está adaptado às diferentes situações encontradas ou é preciso introduzir eventuais mudanças?”.
Ao mesmo tempo, o parlamento, o governo e o Comitê Consultivo Nacional de Ética realizarão encontros e debates com as equipes médicas envolvidas, os voluntários, as associações pró e contra a eutanásia e as religiões.
O atual quadro legislativo e normativo está ligado à lei Claeys-Leonetti de 2016, que havia se estabelecido sobre alguns pilares: não à obstinação terapêutica, não à eutanásia, sim à “via francesa” coerente com os valores republicanos, sim à generalização dos tratamentos antidor e paliativos.
A lei retomava a anterior de 2005, ampliava seus vínculos, mas respeitava suas orientações de fundo.
Em abril de 2021, um novo projeto de lei foi apresentado à Assembleia Nacional. Ele se inspirava na legislação belga, uma das mais permissivas em circulação, abandonando as referências da tradição nacional. Não chegou a ser aprovado, mas foi um sinal da disponibilidade de muitos círculos políticos e culturais para a aprovação da eutanásia.
Uma deriva que se alimenta de algumas “evidências” de comunicabilidade imediata: na França, as pessoas morrem mal; as pesquisas favoráveis estão em crescimento; os países vizinhos como Bélgica, Luxemburgo e Holanda já legislaram sobre isso; a sedação profunda nada mais é do que eutanásia; melhor morrer do que se comprometer com sofrimentos intoleráveis ou sobrecarregar as finanças dos parentes e da sociedade; estende o princípio da liberdade individual; é uma questão da dignidade de morrer. Chega-se a defendê-la como resultado e complementação dos cuidados paliativos.
O Comitê Consultivo Nacional de Ética se manifestou a favor de uma diretriz no sentido da eutanásia. Seu presidente, Jean-Louis Touraine, confirmou a abertura “à ajuda ativa a morrer. É preciso se preparar para esse avanço, com um severo enquadramento para evitar desvios. Para alguns, levará tempo para evoluir, mas não há dúvida de que se familiarizarão com as ideias do mundo moderno”.
No entanto, nota-se que, no mesmo documento, a mudança está condicionada à avaliação aprofundada da lei atual e ao desenvolvimento dos tratamentos paliativos. A primeira ainda está por fazer, e os cuidados paliativos estão ausentes em um quarto dos departamentos do país.
“No momento da legalização da eutanásia – observa o sociólogo Tanguy Châtel – um discurso tranquilizador começa a circular em todos os países. Fala-se de uma lei de exceção com defesas significativas. Mas suas fronteiras têm a vocação de se alargarem. No Canadá, Espanha, Holanda: todos os sistemas foram envolvidos nisso. Como se quiséssemos fazer as leis evoluírem até anular os sofrimentos, até mesmo os existenciais.”
Um não explícito à eventual lei da eutanásia veio da ordem dos médicos e dos bispos católicos. O presidente da ordem, François Arnauld, disse: “A ordem não é a favor da eutanásia”. “Se uma assistência ao suicídio for aceita, deveremos ter muito cuidado: o médico poderá ser o acompanhante? Certamente. Mas também aquele que executa? Acho que não. Não é o papel dele.”
Sem questionar a vontade do paciente, deve-se reconhecer ao médico a possível objeção de consciência.
O comunicado dos bispos, publicado em 24 de setembro e antecipado pelo jornal Le Monde no dia 16, destaca a participação nos sofrimentos dos doentes e de seus familiares. “Ouvindo os doentes, os cuidadores, as famílias, os atores dos cuidados paliativos, sentimos que a necessidade essencial de um número muito maior de pessoas é de serem consideradas, respeitadas, ajudadas, acompanhadas e não abandonadas. Seus sofrimentos devem ser aliviados, mas seus apelos expressam a necessidade de relações e de proximidade. A expectativa mais profunda de todas é a ajuda ativa para viver, em vez da ajuda ativa para morrer. Depois de décadas, progressivamente foi encontrado em nosso país um equilíbrio para evitar a obstinação terapêutica e para promover os cuidados paliativos. Essa ‘via francesa’ fez escola e expressa algo do patrimônio ético do nosso país.”
Um equilíbrio muito caro aos profissionais de saúde, que recentemente enfrentaram a pandemia com grande coragem, expondo-se para salvar o maior número de pacientes. Um autêntico discernimento democrático deverá ouvir acima de tudo eles, os doentes e seus familiares, os filósofos e as tradições religiosas.
A Bélgica descriminalizou a eutanásia desde 2002, estendendo-a, depois, aos doentes psíquicos, aos menores e às crianças (2014). De poucas centenas nos primeiros anos, as demandas subiram para 2.700.
A dose letal pode ser administrada tanto no hospital quanto em casa, no caso de sofrimento físico ou psicológico insuportável, constante e não aliviável.
O “modelo belga” encontrou recentemente dois obstáculos: a condenação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em um caso de eutanásia de 2012 e as discussões que acompanharam a divulgação da notícia da eutanásia de uma jovem que sobreviveu ao ataque terrorista de fundamentalistas islâmicos em 22 de março de 2016 no aeroporto de Bruxelas.
Tom Mortier levou ao Tribunal Europeu o caso de sua mãe, que foi suprimida em razão de uma doença mental. A Corte condenou o país pela violação do artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Não se trata de uma crítica explícita à lei, mas da censura do sistema de controle e de avaliação, assim como da demora da justiça diante da denúncia.
Além das condições para usufruir a lei, somam-se os controles ex-post que se mostraram insuficientes para os magistrados. “A questão deixa claro o problema de uma comissão (de verificação) que mais parece um clube restrito e que se dá muitas liberdades na interpretação da lei” (jesuíta Marc Desmet).
A lei não é posta em causa, assegura o presidente da associação pelo direito a morrer: “Os juízes imputam à comissão uma aparente não independência que pode ser facilmente resolvida”.
Para Erwan Le Morhedec, advogado e militante antieutanásia, “enquanto o modelo belga é frequentemente citado como exemplo pelos ‘pró-eutanásia’, a sentença ilustra perfeitamente o fato de que o sistema está longe de ser imparcial e acima de qualquer suspeita”.
A jovem belga Shanti De Corte escapou milagrosamente do atentado de 22 de março de 2016, mas a sua já frágil consistência psicológica nunca se recuperou e levou-a a pedir repetidamente a eutanásia, que ocorreu no dia 7 de maio passado. No Facebook, ela escreveu que partia em paz, e “saibam que já sinto falta de vocês”.
Seu caso se enquadra naquilo que a lei prevê, mas a questão dos sofrimentos psíquicos e de seu limite provoca acirrados debates entre os profissionais. Podemos nos contentar com algumas consultas a fim de tomar uma escolha tão dramática? Thierry Baubet, psiquiatra especialista em traumas coletivos, escreve: “Quando nos sentimos impotentes diante de um transtorno psiquiátrico, podemos rever o diagnóstico, procurar outro especialista, passar para outra comissão etc., mas não se leva a cabo o ‘trabalho’ do terrorista ou do agressor”.
O debate na França e na Bélgica anda de mãos dadas com o que está acontecendo na Itália e em Portugal.
Na Itália, a Corte Constitucional convidou o parlamento a legislar sobre o assunto em 2019, e foram apresentados vários projetos de lei, que a atual maioria de direita provavelmente não facilitará. A Consulta declarou inadmissível o pedido de referendo sobre o assunto em 15 de fevereiro passado.
Em Portugal, a lei voltou ao parlamento depois das observações do chefe de Estado. A esse respeito, o presidente da Conferência Episcopal, Dom José Ornelas, disse: “Não podemos impor uma lei nem nos contentar com a simples oposição. Devemos saber argumentar a nossa oposição no nível do debate civil. Não é apenas uma questão religiosa, mas um fato da civilização. Quando o Estado não oferece cuidados paliativos e apoio aos moribundos e não garante dignidade na doença, a eutanásia torna-se uma proposta injusta e desresponsabilizante. A contribuição da Igreja não é em nível jurídico, mas no de formação das consciências e de uma cultura da vida”.
Na Suíça, a gestão do suicídio assistido é confiada a associações como Lifecircle, Eternal Spirit, Exit Deutsche Schweiz. Ele é condicionado pela capacidade de discernimento do paciente.
A comissão nacional de Justiça e Paz escrevia em 2016: “É preciso perceber os novos desafios ligados à morte. As Igrejas também devem se reposicionar diante dos desafios da velhice e da morte. Entre outras coisas, isso significa não condenar imediatamente, mas levar a sério as expectativas, os medos e as necessidades das pessoas. A busca por uma boa morte hoje precisa de respostas novas e credíveis. Ela deve reconhecer o desejo de uma boa morte também no pertencimento a uma organização de assistência ao suicídio ou no desejo de um suicídio assistido”.
A Espanha descriminalizou a eutanásia em 2021. Quem sofre de uma doença grave, crônica e incapacitante pode se beneficiar dela.
Na Alemanha, a Corte Constitucional endossou em 2020 o “direito de escolher a morte”. Direito que inclui a liberdade de tirar a própria vida ou de pedir a ajuda ao suicídio. O parlamento é chamado a discutir a esse respeito.
Pode parecer paradoxal, mas as referências tanto de quem defende o suicídio assistido quanto de quem se opõe a ele aparentemente são as mesmas: a autodeterminação, a liberdade, a qualidade de vida. O que os distingue e determina opções contrapostas é o quadro antropológico (e teológico) geral: a autonomia desprovida de relações, por um lado, a vida como dom recebido e dado, por outro.
Além da retórica que confunde os termos deliberadamente, um caso de cartilha é a referência aos cuidados paliativos. Eles são invocados pelos favoráveis à eutanásia como premissa para o gesto de assistência ao suicídio. Na realidade, eles são a sua refutação, pois colocam a relação humana no centro do tratamento.
Eles representam uma revolta à ideia de onipotência da medicina. Respondem à questão de dar continuidade ao tratamento e dignidade no momento da morte. Rejeitam a morte solitária e dolorosa como o gesto ativo de induzi-la: uma “terceira via” que muitos ignoram.
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Europa e novos direitos: eutanásia em debate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU