A reportagem é de Antenor Savoldi Junior, publicada por Mongabay, 07-10-2022. A tradução é de Roberto Cataldo.
As Américas têm um longo histórico de ocupação baseada na destruição da natureza e no massacre violento de povos nativos, tudo em nome de uma determinada visão de “progresso”. A ditadura militar brasileira, que durou de 1964 a 1985, assumiu essa ideologia a ponto de ter um lema específico – “integrar para não entregar” – em seu projeto nacionalista para a Floresta Amazônica. Essa mentalidade ainda está viva na proliferação sistêmica e descontrolada de estradas não oficiais na Amazônia, e o tamanho da destruição está ficando cada vez mais claro.
Um estudo da ONG Imazon identificou 3,46 milhões de quilômetros de estradas na Amazônia Legal. Os pesquisadores estimaram que pelo menos 86% da extensão dessas estradas não são oficiais, e elas foram “construídas por madeireiros, garimpeiros e assentamentos não autorizados a partir de estradas oficiais já existentes”. A extensa rede de estradas também faz com que 41% da Floresta Amazônica já sejam atravessados ou fiquem a 10 km de uma estrada.
Enquanto dois terços (em extensão) das estradas identificadas no estudo estão situados em propriedades e assentamentos privados, o outro terço está em terras públicas nas quais as estradas não oficiais se multiplicaram, principalmente em áreas sem proteção especial do governo. Nessas áreas públicas, as estradas percorrem 854 mil km, representando um quarto do total na Amazônia.
Segundo o Imazon, as estradas situadas nessas áreas indicam atividades criminosas, como extração ilegal de madeira, garimpo e grilagem de terras. O estudo também mostra que 5% dessas estradas estão dentro de Unidades de Conservação e 3%, em Terras Indígenas, percorrendo um total de 280 mil km dentro dessas áreas supostamente protegidas.
A BR-230, também conhecida como Rodovia Transamazônica, a BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, e a BR-319, de Manaus a Porto Velho (mostrada aqui), são estradas oficiais que cortam a Amazônia e deram origem a uma rede de ramificações ilegais (Foto: Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes/DNIT)
“São artérias de destruição”, disse à Mongabay o coautor do estudo, Carlos Souza Jr., pesquisador associado do Imazon que coordena o programa do instituto para monitoramento da Amazônia. “As estradas são abertas para extrair madeira, e as ramificações se espalham a partir da linha principal, onde estão os caminhões e as máquinas pesadas.” Ele acrescentou que a degradação é seguida pela ocupação dessas áreas, em um padrão que se tornou muito conhecido na Amazônia.
Segundo Souza, estudos anteriores estimavam a extensão de estradas oficiais na Amazônia brasileira em cerca de 80 mil km, incluindo federais, estaduais e municipais, bem como estradas localizadas em assentamentos oficiais, todas elas fazendo parte da infraestrutura planejada.
Mas os números oficiais são muito mais baixos. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) disse à Mongabay por e-mail que reconhece 23.264 km de estradas pavimentadas e não pavimentadas na Amazônia Legal. Essa é uma pequena fração dos mais de 3 milhões de quilômetros de estradas, em sua maioria não documentadas, que o Imazon identificou na região.
“As estradas criadas sem planejamento por municípios, estados e o Governo Federal não aparecem nos mapas oficiais”, disse Souza, “mas acabam sendo incorporadas à rede municipal, exigindo dinheiro público para sua manutenção”.
O estudo do Imazon, publicado em julho na revista Remote Sensing, utilizou imagens de 2020 do satélite Sentinel-2, disponibilizadas pela Agência Espacial Europeia. Os pesquisadores aplicaram um algoritmo de inteligência artificial criado pelo Imazon para analisar as imagens.
Em iniciativas anteriores para identificar estradas a partir de grandes quantidades de imagens de satélite, os pesquisadores levavam meses analisando essas imagens. Desta vez, o algoritmo do Imazon reduziu o tempo de análise para apenas sete horas, permitindo aos pesquisadores se concentrarem nos dados. Estudos usando os métodos anteriores já indicavam que o avanço das estradas não oficiais contribuía para o desmatamento na Amazônia, mas essa pesquisa permitirá aos cientistas recriar uma série histórica com dados de anos anteriores, usando o novo algoritmo para toda a região amazônica.
Uma estrada ilegal corta o Corredor Socioambiental do Xingu a partir do Rio Iriri, dentro da área supostamente protegida da Estação Ecológica Terra do Meio (Foto: Rede Xingu+)
Souza disse que mapear e monitorar a extensão das estradas é crucial para identificar ameaças à floresta, a seu povo e às comunidades tradicionais. Estudos anteriores já mostraram que 95% do desmatamento ocorrem a 5,5 km de uma estrada; e 85% dos incêndios a cada ano, a 5 km. Contabilizando apenas a malha viária oficial, o desmatamento estaria a pelo menos 50 km da estrada mais próxima, e os incêndios a 30 km.
“Isso prova que o mapeamento de estradas clandestinas melhora os modelos de previsão de desmatamento e risco de incêndio, e pode ser usado como ferramenta para evitar a destruição da floresta”, disse Souza. “O monitoramento geralmente procura o desmatamento depois que a floresta já foi derrubada. Se esse monitoramento se concentrar nas estradas, o potencial para evitar o desmatamento é enorme.”
Souza e a equipe do Imazon também estão construindo uma rede para implantar sua ferramenta em florestas tropicais no mundo todo, com o objetivo de mapear a pegada das estradas em outras áreas sob pressão, como a Bacia do Congo e a Indonésia. A ferramenta de previsão de desmatamento PrevisIA já está usando o novo banco de dados. De acordo com a última análise do Imazon, 75% do desmatamento ocorreram dentro de 4 km das previsões da PrevisIA.
Tanto em extensão quanto em densidade (razão entre área ocupada e extensão), as estradas não oficiais na Amazônia estão concentradas nos estados de Mato Grosso, Pará, Tocantins, Maranhão e Rondônia. Os dados mostram que a zona conhecida como Arco do Desmatamento, no limite sudeste do bioma, continua sendo a mais visada, mas também apontam para um aumento no sul do Amazonas, bem como no oeste do Pará e na região conhecida como Terra do Meio, na parte central do estado.
Souza disse que, embora a maioria das estradas em áreas privadas e sem acesso público esteja muito bem conservada, órgãos reguladores como o DNIT devem trabalhar com agências de proteção ambiental para restringir o tráfego nessas estradas.
A rede de estradas na Amazônia compromete a conectividade florestal e intensifica as ameaças à fauna nativa, como esta cobra morta em um atropelamento na BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, uma das principais vias oficiais que atravessam o bioma amazônico (Foto: Marcio Isensee e Sá | Amazônia Real via Flickr)
Um exemplo de estrada ilegal que representa um perigo para uma das mais extensas florestas contíguas da Amazônia foi detectado pela Rede Xingu+, um grupo de ONGs conservacionistas. A organização avistou uma estrada não oficial com 42,8 km de extensão em duas importantes áreas de conservação: a Estação Ecológica Terra do Meio e a Floresta Estadual do Iriri. A estrada ameaça dividir o Corredor Socioambiental do Xingu, uma faixa de 28 milhões de hectares de floresta nativa que abriga 21 Terras Indígenas e nove Unidades de Conservação.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), a estrada ilegal começa em um polo de desmatamento dentro da Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu. Partindo dali, está prestes a completar a ligação entre os municípios de Novo Progresso e São Félix do Xingu, centro de comércio ilegal de madeira e ouro. Com apenas 10 km de floresta a serem atravessados em Iriri, a estrada poderá chegar em breve ao Rio Curuá, dentro da Floresta Estadual, completando a conexão e cortando o corredor do Xingu, e assim, aumentando drasticamente a vulnerabilidade de suas florestas.
“A ameaça é iminente”, disse Thaise Rodrigues, analista de geoprocessamento do ISA, “e até agora não temos conhecimento de nenhuma ação legal para detê-la”. A Rede Xingu+ identificou a estrada pela primeira vez em janeiro deste ano. Seu avanço foi interrompido durante alguns meses quando ela chegou a um garimpo dentro da Estação Ecológica Terra do Meio. A partir de maio deste ano, as obras foram retomadas e atingiram a Floresta Estadual do Iriri. Em julho e agosto, o monitoramento mostrou 575 hectares de desmatamento ao redor dessa estrada.
“Quando uma grande massa de floresta é desagregada, ela se torna vulnerável. As estradas causam fragmentação, o que intensifica o desmatamento”, disse Rodrigues. O ISA tem criticado tanto o estado do Pará quanto o Governo Federal por sua inação, já que ambos são responsáveis pelas áreas protegidas dentro do corredor do Xingu. A estrada ilegal aumenta o que é conhecido como “efeito de borda”, em que áreas de floresta expostas a clareiras, como estradas, tornam-se mais vulneráveis a ameaças. E o desmatamento causado por essas ameaças aproxima a Amazônia de um “ponto irrevesível” a partir do qual a floresta tropical perde sua capacidade de autorregeneração e se transforma em uma savana seca.
A pavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) está nos planos do Governo Federal há alguns anos (Foto: Marcio Isensee e Sá | Amazônia Real via Flickr)
Uma estrada ilegal corta o Corredor Socioambiental do Xingu a partir do Rio Iriri, dentro da área supostamente protegida da Estação Ecológica Terra do Meio (Foto: Rede Xingu+)
Segundo o ISA, o corredor do Xingu contém cerca de 16 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, e sua massa de vegetação exuberante é responsável por gerar os “rios voadores” de vapor d’água que trazem chuva para o resto do continente. A divisão de faixas de floresta com estradas também causa perda de conectividade, que tem um impacto direto sobre a migração de animais selvagens aquáticos e terrestres, ao mesmo tempo em que acelera a desertificação do solo. O ISA aponta para outro risco grave: a abertura da floresta tropical aproxima os humanos das 3 mil espécies conhecidas de coronavírus das quais os morcegos da Amazônia são portadores, aumentando ainda mais a probabilidade de outra pandemia global.
Próximo à Floresta Estadual do Iriri, a Terra Indígena Baú já sofre forte pressão do garimpo e da frente de desmatamento que avança a partir do município de Novo Progresso.
“Quanto maior a rede de estradas ao redor e dentro das áreas protegidas”, disse Rodrigues, “maior o acesso para a consolidação dessas atividades ilegais”.
Ela acrescentou que as áreas públicas desprotegidas são ainda mais suscetíveis à grilagem de terras. “A delimitação de áreas protegidas ajudaria, mas o poder público precisa mostrar interesse em proteger essas áreas e as comunidades que vivem nelas.”
Souza, do Imazon, disse que a criação de áreas protegidas é a maneira mais rápida de conter a expansão dessas estradas, já que os grileiros têm poucas chances de obter o título legal da terra designada como protegida.
“O desmatamento é um negócio caro”, disse ele, “e ninguém vai gastar dinheiro se não tiver chance de ser dono dessa terra no futuro”. Isso se aplica até mesmo a áreas onde as estradas já foram abertas, pois elas seriam menos atrativas aos especuladores.
Os pesquisadores do Imazon usaram inteligência artificial para identificar, a partir de imagens de satélite, estradas ilegais na floresta, como esta que corta o Corredor Socioambiental do Xingu (Foto: Rede Xingu+)
Especialistas dizem que o Brasil também deve repensar a construção de estradas pelo governo. Um exemplo é a BR-230, projeto idealizado na ditadura militar que se tornou uma criança-problema para sucessivas administrações. A estrada, conhecida como Transamazônica, começou a ser construída em 1969 e foi inaugurada em 1972, apesar de não ter sido concluída. Hoje se estende por mais de 4 mil km na Amazônia, a partir do litoral nordeste do Brasil, com longos trechos ainda não pavimentados e completamente intransitáveis durante a estação chuvosa. A combinação de custo, logística e a dificuldade inerente à construção de uma infraestrutura colossal no meio da floresta faz com que ela ainda esteja incompleta, 50 anos após sua inauguração.
Além da Transamazônica, há a BR-163, que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no norte do Pará, e a BR-319, de Manaus, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. A expectativa é de que ambas cruzem a Amazônia brasileira em direções diferentes. Especialistas dizem que, apesar de serem projetos aprovados oficialmente, o planejamento precário por trás deles aumenta os riscos ao meio ambiente da região.
Um estudo de 2020 avaliou 75 projetos de rodovias na Amazônia, incluindo Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru, em um total de 12 mil km de estradas planejadas, e mostrou que, se construídas nos próximos 20 anos, as estradas causariam o desmatamento de 2,4 milhões de hectares de floresta. Além dos danos ambientais, 45% dos projetos também gerariam perdas econômicas. Cancelar esses projetos inviáveis economizaria 7,6 bilhões de dólares e salvaria 1,1 milhão de hectares de florestas, mostrou o estudo.
A pesquisa também sustenta que a escolha criteriosa de um número menor de projetos poderia proporcionar 77% dos benefícios econômicos com apenas 10% dos danos socioambientais.
“Qualquer projeto vai causar danos ambientais em algum grau”, disse à Mongabay a coautora do estudo, Thaís Vilela, economista sênior do Conservation Strategy Fund, com sede em Washington. “Mas há um subconjunto de projetos que têm retorno financeiro positivo com menores impactos ambientais e sociais.”
Apesar de seu estado precário, a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, é uma das principais estradas oficiais que cruzam a Amazônia, além da BR-230, a Transamazônica, e a BR-163, que vai de Cuiába a Santarém (Foto: Gustavo Faleiros/Amazônia Real via Flickr)
A pesquisa considerou variáveis como custo inicial do projeto, desmatamento, relevância ecológica da área, acesso a escolas e postos de saúde, e descumprimento de normas ambientais.
“Muitas vezes, quem toma as decisões considera apenas os custos e benefícios financeiros do projeto”, disse Vilela, “e há demandas políticas que muitas vezes não seguem a lógica econômica”.
A pesquisa mostra que as perspectivas econômicas de um projeto deixam de ser positivas e se tornam negativas quando se contabilizam os potenciais impactos ambientais e sociais. Para pavimentar 2.234 km da Rodovia Transamazônica, por exemplo, seriam destruídos 561 mil hectares de floresta. Em termos de impacto sobre biodiversidade, água, armazenamento de carbono e integridade de áreas protegidas, a BR-163, a BR-230 e a BR-319 causariam os danos mais significativos ao meio ambiente, segundo o estudo. A pavimentação de 496 km da BR-163, por si só, geraria 400 milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono até 2030.
Por mais terríveis que esses números pareçam, a verdadeira extensão dos danos seria ainda maior por causa das estradas não oficiais que brotariam dessas rodovias principais, disseram os autores do estudo. Segundo eles, a construção e a melhoria dessas estradas primárias “podem levar à construção de estradas secundárias, terciárias e até ilegais na região, promovendo impactos adicionais”.
“As estradas não oficiais geralmente vêm das oficiais”, disse Souza, do Imazon. Ele responsabilizou avaliações de impacto ambiental de má qualidade por permitir essa proliferação, acrescentando que as principais estradas oficiais também prejudicam áreas protegidas e territórios indígenas.
“Há áreas onde não deveriam ser construídas estradas, pois os danos ambientais e sociais seriam maiores do que os benefícios potenciais”, disse Vilela. “O ideal seria que a definição dessas variáveis envolvesse todos os indivíduos diretamente afetados pelo projeto.”
O DNIT disse à Mongabay que sua responsabilidade se limita às estradas federais listadas no banco de dados do Sistema Rodoviário Nacional, que não inclui estradas não oficiais. A Mongabay também entrou em contato com o Ibama a agência brasileira de proteção ambiental e o ICMBio, o órgão do governo que supervisiona as áreas protegidas, mas não havia recebido resposta aos pedidos de comentários até a publicação desta matéria.